INTERDISCIPLINARIDADE: LIMITES E POSSIBILIDADES



INTERDISCIPLINARIDADE: LIMITES E POSSIBILIDADES
Monique Santos

Resumo: O mundo no qual vivemos está doente, ele sofre os males de uma crise de paradigmas. Seria a interdisciplinaridade o próximo rumo para as ações educativas e, por quê não, para as ações humanas? Seria uma revolução na forma de ver o conhecimento ou apenas uma mudança na estrutura curricular ou na forma como os conteúdos são passados? È uma prática antiga deixada para traz ou algo que nunca deixou de existir, estando apenas emaranhada na massificante educação vigente até hoje? Não importa, seja o que for, é uma questão polêmica, salvadora e destruidora, que revela a necessidade intrinsecamente humana de se conhecer e de conhecer o mundo à sua volta. Boa sorte para nós nessa constante busca.
Palavras-chave: Interdisciplinaridade; Didática; Conhecimento.


I. O contexto

Nos dias atuais há quem diga que nos encontramos no contexto de uma crise de paradigmas, na eminência de uma nova era, a da pós-modernidade. O espiral do conhecimento continua dando suas voltas, derrubando e re-construindo o que já foi dito e reafirmando o que ainda não teve outras respostas. Dessa vez a produção e a transmissão das informações ocorrem numa velocidade extraordinária. A modernidade finalmente pode cumprir as promessas embutidas em seu projeto civilizatório.
O mundo em que vivemos padece de uma doença muito grave que tem seu antídoto e cura no refúgio da totalidade do pensamento, na unidade do saber que foi perdida pela disciplinaridade, pelo fracionamento, pelas acriticas especializações. A racionalidade científica desnatura a natureza, desumaniza o homem, ignorando sua inteligência essencialmente interdisciplinar.
No século XVI, com o Renascimento e com as palavras de Descartes, o indivíduo e sua razão iluminadora são exaltados para depois serem massificados pela industrialização e, mais tarde, renascer das cinzas com o pensamento marxista, que o fez descobrir-se manipulável, perdendo-se em sua história.
Segundo o pensamento freireano, a todos deve ser dado o direito de conhecer o que não se conhece, de conhecer melhor o que se conhece e de ser construtor do conhecimento para socializá-lo, mas como isso pode ser feito, se o conhecimento é apresentado de forma desconexa, fora da realidade e, por quê não, de forma chata?
O discurso da vez, que traz a solução para todos esses problemas, vem sob o romântico slogan da interdisciplinaridade. Herói e vilão nesses tempos de perguntas ou apenas o silêncio nessa ânsia por respostas, ainda não se sabe, há controvérsias, mentiras e manipulações como em todo paradigma, que já nasce para ser quebrado.
Esse contexto histórico, vivido nessa virada de milênio, exige a retomada do antigo conceito de interdisciplinaridade, que esteve sufocado pela racionalidade cientifica positivista e pela revolução industrial. A complexidade do mundo em que vivemos nunca esteve tão "globalizada", sentida e vivida de forma interdependente. Tudo está em permanente mudança e, a escola, nos moldes exclusivamente tradicionais, já não atende às necessidades do homem de hoje. A nova concepção de ensino e currículo deve atender o processo de aprendizagem presente no funcionamento do cérebro humano, baseando-se na interdependência entre os diversos campos do conhecimento.
O debate da interdisciplinaridade surge a partir da teoria do conhecimento, opondo-se ao capitalismo epistemológico de determinadas ciências e frente à alienação da Academia face à organização curricular que privilegia a especialização, o que estimula o aluno a ver numa única ótica, separando os objetos de seu contexto o que, conseqüentemente, compromete a produção do conhecimento. Segundo FAZENDA, o eixo teórico que alimentou essa reflexão data dos anos 30, quando as teorias organizaram as suas idéias numa direção exclusivamente disciplinar. Na época, tudo convergia para a sala de aula.
Os enunciados morais apareceram inicialmente no discurso pela interdisciplinaridade, em sintonia com a onda antibélica e anticientificista do pós-guerra, frente à luta pelo progresso científico na Guerra Fria que, de forma antagônica, também aderiu a esse discurso, na busca de traçar o caminho para o desenvolvimento.
Em 1961, o filósofo Georges Gusdorf apresentou um projeto de pesquisa para as ciências humanas à UNESCO, onde sugeria o diálogo entre as áreas do saber. Segundo FAZENDA, os anos 70 marcaram a busca pela explicação filosófica, a definição de interdisciplinaridade. Os anos 80 trazem a discussão sobre o método, numa diretriz sociológica e, os anos 90, propõem um projeto antropológico, a teoria da interdisciplinaridade. FAZENDA diz ainda que, nos anos 70, o modismo afetava a reflexão sobre a realidade nacional, o que tornava o discurso menos científico, carregado de preceitos apaixonados.
O movimento pela interdisciplinaridade atraiu boa parte dos educadores brasileiros, não só pelas promessas e esperanças de seu conteúdo programático, mas também pelo simples fato de ser uma novidade que não estava ainda pronta ou acabada, tinha de ser construída com a ação pedagógica, constituindo-se num excitante desafio.
O fim da Guerra Fria não altera o impulso inicial para o discurso da interdisciplinaridade, segundo VEIGA-NETO, "esse ainda se considera com razões de sobra para continuar existindo", pois "é sempre possível ver o perigo iminente a nos rondar" (2005, p.78), seja nas guerras religiosas, no terrorismo, no crime organizado, corrupção, crises energética e ecológica, as novas epidemias, etc. A escola surge então como redentora e, em seu mau uso, como vilã.
"A justificativa mais comum é o argumento do ?mundo real?. A vida, segundo esse argumento, é ?naturalmente? interdisciplinar reflete o ?mundo real? de maneira mais eficiente do que a instrução tradicional". (KLEIN, 2001, p.117). Para KLEIN, este argumento é uma "supersimplificação", já que os fenômenos ocorrem num agrupamento neutro e, é o homem quem os ordena, assim como foi o homem quem dividiu temas e projetos a serem estudados por classes seriadas, em aulas de 45 a 55 minutos, por disciplinas. Mas não deixa de ser fato que a aula, numa perspectiva interdisciplinar, acontece num movimento de mão dupla, recebendo a realidade, trabalhando-a com a ciência e permitindo o retorno à ela com uma nova concepção para a sua transformação.

II. Interdisciplinaridade, uma dimensão intrinsecamente didática

Interdisciplinaridade é uma palavra do século XX, deriva da palavra primitiva disciplinar (que refere-se à disciplina), por prefixação (inter ? ação recíproca, comum) e sufixação (idade ? qualidade, estado ou resultado da ação). A disciplina pode ser a ordem social ou a "matéria" escolar. A interdisciplinaridade pressupõe a existência de uma interação, não é contrária à perspectiva disciplinar e, inclusive, não pode existir sem ela e alimenta-se dela numa ação recíproca entre as disciplinas. É prática política, dialética, para a construção do saber unitário.
Para LENOIR (2001, p. 48), "a interdisciplinaridade é mais um indicador de uma orientação de nossas sociedades ocidentais do que a emanação dessa tendência". Na educação escolar, ela pode ser objeto de pesquisa, ser ensinada e ser praticada.
LENOIR define três concepções epistemológicas da função da interdisciplinaridade: a abordagem relacional (estabelece ligações entre os conteúdos); a ampliativa (preenche o vazio entre duas ciências); e, a radical (que substitui a estruturação disciplinar).
A interdisciplinaridade escolar coloca em pratica as condições para a apropriação dos conhecimentos, enquanto produtos cognitivos, fazendo as ligações entre teoria e prática. Segundo LENOIR, a interdisciplinaridade não é apenas pedagógica, ela é curricular, didática e, por fim, pedagógica. Desconsiderando essas dimensões corre-se o risco de chegar a perigosas divagações, que vão do pot-pourri à polaridade. No primeiro caso não se vai além de um amontoado de amostras de cada disciplina e, no segundo, numa unilateral decisão, isto/ou aquilo, caracterizando uma atitude antidisciplinar.
A interdisciplinaridade curricular (disciplinar) constitui toda interdisciplinaridade didática e pedagógica, quando forma o percurso e a ordem do ensino ministrado, segundo as orientações integradoras. Não ignora, portanto, as disciplinas, vistas como indispensáveis para uma troca rica de conhecimentos.
A interdisciplinaridade didática (interdisciplinar) trata da planificação, organização e avaliação da intervenção educativa. Ela é mediadora entre os planos curriculares e pedagógicos.
A interdisciplinaridade pedagógica (transdisciplinar) caracteriza a atualização em sala de aula da interdisciplinaridade didática. È a prática que vem interferir e afetar a situação didática interdisciplinar, através da gestão da classe e de seus conflitos, levando em conta o estado psicológico dos alunos, suas concepções cognitivas e projetos pessoais, alem do estado psicológico do educador e suas visões.
Há uma complementaridade necessária entre a didática e a perspectiva interdisciplinar. A função da didática construtivista é mobilizar conhecimentos geradores e produzir os elementos cognitivos presentes nas diferentes matérias escolares, que tem poder de associação e complementaridade, para facilitar as aprendizagens dos conteúdos. Porque é, no mínimo, inviável "querer ensinar os conhecimentos escolares segundo trabalhos disciplinares e proceder ao estabelecimento de uma separação entre as didáticas [o que seria] contestar o funcionamento cognitivo da criança, senão de todo ser humano". (LENOIR, 2001, p.64). Não se trata também de fazer um amontoado eclético de dados, porque "a função da didática é conceber as situações às quais os estudantes poderão dar sentido, situações que lhes permitirão agir e refletir sobre sua ação e sobre seus resultados." (idem, 2001, p. 63)
O que se vê é que os conteúdos e as práticas didáticas não se integram, eles se acumulam por justaposição, ignorando o saber enquanto construção histórica de um sujeito coletivo.

A superação da fragmentação da prática da escola só se tornará possível se ela se tornar o lugar de um projeto educacional entendido como o conjunto articulado de propostas e planos de ação com finalidades baseadas em valores previamente explicitados e assumidos, ou seja, de propostas e planos fundados numa intencionalidade. Por intencionalidade está se entendendo a força norteadora da organização e do funcionamento da escola provinda dos objetivos preestabelecidos. (SEVERINO, 2001. p. 39)


Segundo SEVERINO, "se o sentido do interdisciplinar precisa ser redimensionado quando se trata do saber teórico, ele precisa ser construído quando se trata do fazer prático". (idem, 2001, p.41). Observa-se uma grande variedade de práticas nos diferentes níveis de ensino que levantam a bandeira da interdisciplinaridade mas, muitas vezes, não passam do discurso vazio ou da prática sem fundamentos. A "prova de fogo" da instrução que se diz interdisciplinar é a integração, que visa um entendimento mais amplo, holístico. São algumas formas de interdisciplinaridade: o currículo baseado em problemas; a organização de um seminário integrador comum, baseado em um tópico específico; o currículo elaborado a partir de um tema central, etc.
O que normalmente acontece é que os professores trabalham com os mesmos matérias e com os mesmos temas sem saber disso, desperdiçando uma oportunidade de promover a interação, ficando numa repetição vazia e cansativa para os alunos.

III. A interdisciplinaridade é princípio de unificação e não unidade acabada

O movimento pela interdisciplinaridade tem grande visibilidade no cenário educacional mundial mas, para estabelece-lo enquanto teoria de ensino, deve-se atender à algumas questões, como a pedagogia apropriada, o processo integrador, a mudança institucional e a relação entre disciplinaridade e interdisciplinaridade. Como já foi dito, professores que usam o rótulo interdisciplinar não estão necessariamente engajados em práticas interdisciplinares, já que estas ainda não estão definidas claramente, aparecendo mais como uma aspiração, uma necessidade, um sonho. Não se pode esperar que os alunos integrem qualquer coisa que o corpo docente não possa fazer ou faça ele mesmo, a atitude interdisciplinar é dialética.
Uma pequena mudança institucional pode ser uma grande batalha, que envolve valores, além de ser uma questão pedagógica. A própria escola é uma das instituições mais resistentes à mudança. Deve-se começar perguntando por quê a mudança é desejada e o que se espera alcançar através dela. Esse é um trabalho delicado, porque o que não forma pode deformar.
Dividindo-se a interdisciplinaridade em duas perspectivas pode-se optar pela construção de pontes, o que já é de certa forma comum e menos difícil, já que preserva as identidades disciplinares ou, pode-se escolher e reestruturação radical de todo o conhecimento.

A relutância dos professores em se engajar na educação interdisciplinar não é apenas uma questão de não saber como, apesar da literatura abundante, ou da força dos obstáculos, apesar da multiplicidade de estratégias e modelos já provados. Ela também surge da socialização disciplinar, que leva os professores a acreditar que não estão fazendo o seu trabalho da maneira como foram treinados para faze-lo.(KLEIN, 2001, p.123)

O mesmo acontece com os estudantes, que são socializados para aprender por uma visão tradicional. A desculpa é que a instrução interdisciplinar não fornece aprendizados essenciais e negligencia o domínio dos conteúdos das disciplinas, não sendo uma educação "real".
A consecução de currículos interdisciplinares não é tarefa fácil, talvez nem seja uma tarefa possível, se considerar os moldes que o movimento escolheu para si. Para VEIGA-NETO, a interdisciplinaridade precisa superar o "aprisionamento epistemológico" porque, partindo de uma "epistemologia transcendental", ela apenas não pode compreender e muito menos dar soluções para as crises da humanidade, nas quais assenta sua origem. Os estudos interdisciplinares, para ele, "têm adotado uma perspectiva internalista, às vezes saindo da moldura para buscar mais elementos a fim de enriquecer o quadro, mas sem propriamente questiona-lo sob um olhar externo". (2005, p. 85)
O otimismo do movimento pela interdisciplinaridade intervém no currículo com novos conteúdos, novas combinações e novas formas de trabalhá-los, para mudar o aluno, o cidadão, a sociedade, o mundo.
Enquanto à dicotomia disciplinar/interdisciplinar, o que se sabe é que o bom projeto curricular vai englobar ambas. Um aluno, por exemplo, vai usar matemática para resolver problemas de ciências ou de estudos sociais, o que vai ocorrer é uma relação complementar. É muito difícil e até impossível se imaginar um processo de educação escolar sem uma estrutura curricular baseada em categorias,

se chamem como quiser essas unidades e sejam elas quais forem ? disciplinas, temas, eixos temáticos, núcleos conceituais, conceitos-chave etc. ?, pelo menos uma delas sempre estará presente, como parte do arcabouço do currículo. (...) mesmo imaginando um saber não dividido segundo disciplinas, talvez sempre tenhamos um saber dividido segundo outros "elementos", outros "eixos", outros "tipos" de categorias. Se for mesmo assim, então fica bastante problemático pretendermos alcançar uma totalidade do saber. (VEIGA-NETO, 2005, p. 91).

A impossibilidade de uma teoria geral traz conflitantes reivindicações. A exemplo de outros profissionais, os professores lidam em contextos de complexidade, com incertezas, singularidade, instabilidade e conflito de valores, eles precisam de uma epistemologia da prática, caracterizada pela união reflexiva do pensar e do fazer e, sem dúvidas, a capacidade interdisciplinar é central nessas condições. Toda mudança dói, incomoda, desinstala, mas não é pretexto para buscar desesperada e inconseqüentemente por uma solução, é tempo de pensar.
Existem também os que pensam que a interdisciplinaridade dará às ciência humanas sua maturidade e seu estatuto, outros dizem que darão o pretexto para continuarem existindo, como diz VEIGA-NETO (2005, p. 85): "se por um lado a pedagogia paga há mais de 100 anos um preço à epistemologia, é para, pelo outro lado, auferir o lucro de poder se movimentar ?impunemente? por outras áreas do conhecimento".
A filosofia interdisciplinar propiciará a máxima exploração das potencialidades de cada ciência e, por quê não, de cada indivíduo, agora com seu pensar autônomo, holístico, harmonioso e integrado, um saber total. Nascerá uma raça rigorosa de ciências humanas para ler o mundo real e uma legião de ciências exatas que se decidirão por serviços mais humanos.
Diante dessas aspirações, é preciso não mistificar, messianificar, massificar essas vinte e uma letras, mesmo sabendo que, a exemplo dos paradigmas anteriores, ela via surgir como uma contradição, numa aparente inexpressão e, provavelmente, exigirá a morte dos paradigmas anteriores. Mas podemos toma-la como uma consciência (de preferência sem amnésia), somada ao que já foi dito e feito, que poderá contribuir para a construção do ser humano como um todo.

Referências Bibliográficas



ANDRADE, Rosa Maria Calães de. Interdisciplinaridade um novo paradigma curricular.

KLEIN, Julie Thompson. Didática e interdisciplinaridade. Ivani C. A. Fazenda (org). (Coleção Práxis). 6.ed. Campinas, SP: Papirus, 2001. (p. 109-191)

LENOIR, Yves. Didática e interdisciplinaridade. Ivani C. A. Fazenda (org). (Coleção Práxis). 6.ed. Campinas, SP: Papirus, 2001. (p. 45-66)

SEVERINO, Antônio Joaquim. Didática e interdisciplinaridade. Ivani C. A. Fazenda (org). (Coleção Práxis). 6.ed. Campinas, SP: Papirus, 2001. (p. 31-43)

SIQUEIRA, Holgonsi Soares Gonçalves; PEREIRA, Maria Arleth. A interdisciplinaridade como superação da fragmentação. Caderno de pesquisa nº 68, set. 1995, UFSM.

SOUSA FILHO, Severino Gomes de. Comunicação e interdisciplinaridade.

VEIGA-NETO, Alfredo. Currículo: Questões atuais. Antonio Flavis Barbosa Moreira (org.). (Coleção Magistério Formação e Trabalho Pedagógico). 11.ed. Campinas, SP: Papirus, 2005. (p.59-99)

Autor: Monique Santos


Artigos Relacionados


Interdisciplinaridade: Uma Nova Atitude Docente

Interdisciplinaridade

Japiassú E Margaret Shäffer: Dois Olhares Sobre A Interdisciplinaridade

A Interdisciplinaridade Como Um Movimento Articulador No Processo Ensino-aprendizagem

Interdisciplinaridade

Projeto Arborístico: Perspectiva De Ações Interdisciplinares

Interdisciplinaridade E Liberdade Em Ivani Fazenda