Torta de Maçã



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TORTA DE MAÇÃ

 Bang! Bang! Bang!.

A arma soou repetidas vezes. O atirador soprou o cano com um olhar fleugmático e ficou olhando para a vítima, caída ao chão.

Nando levantou-se bruscamente e gritou para o outro:

- Assim não vale! Pr´á mim chega! Só eu que morro!

Era de ser rir, ver aquela figurinha rechonchuda e rosada, nos seus mais que saudáveis nove anos, com um chapelão de palha  remanescente, por certo, de algum carnaval passado  já pendurado no ombro e chegando-lhe aos calcanhares, castigados sustentáculos de quase quarenta quilos em pouco mais de um metro de altura.

A vítima continuou. O suor lhe escorria pelas faces ruborizadas:

- Vou-me embora. Chega de ser bandido. Vocês são todos uns bobos. Só querem que o César seja mocinho. Não brinco mais. Pronto.

O galã, embora meio espantado com aquela rebeldia, logo se refez. Um mocinho como ele não podia ser passado para trás por um gorducho qualquer. E bastou que Nando virasse as costas para ele gritar:

- Vai, Bolão. Tá com medo de apanhar da minha quadrilha, né? Bo-lão! Bo-lão!

Bolão...Nando não respondeu. Seria inútil. Prosseguiu com passo firme para sua casa, a última daquela vila de São Cristóvão. A meio caminho, ainda ouviu a voz do Zeca:

- Ele não tá com medo, não. Ele quer é comer torta de maçã.

Aquele Zeca era insuportável. Ainda mais depois que tinha entrado para a escolinha de judô ali do Vasco. E Nando, gordo daquele jeito, não tinha chance de bancar mesmo o bandido e solapar aquele xerife folgado.

Apressou o passo. Afinal, o Zeca tinha razão. Estava na hora da torta de maçã. Quatro da tarde. Dona Alice, sua mãe, deveria estar tirando agorinha a travessa do forno. Aquela mesma travessa onde ele, depois de aguardar um ano com ansiedade, apreciava o cozimento do peru de Natal.

Momentaneamente, esqueceu suas preocupações  as normais em um guri de sua idade  e sorriu, lambendo os beiços com prazer, na expectativa de um bom pedaço de torta com sorvete.

E a turma, lá atrás, em coro:

- Bolão! Bolão! Bolão!

Aquilo lhe doía fundo. Cada grito era como que uma punhalada. Punhalada de bandido, como ele. Daquelas de sangrar índio.

Nando sabia que era gordo. Mas, nos seus nove anos incompletos, pouco ou nada isso poderia perturbá-lo. Até pelo contrário. Era com orgulho que se sentava à mesa, comendo de fazer gosto. Nessa hora é que se vingava dos outros, ao ouvir sua mãe comentando com as mães de seus companheiros da vila. Elas viviam reclamando: Meu filho não come. Pedrinho está tão enjoado. Ih. Acho que o Zeca vai entrar na injeção.

Ah! Que prazer ele sentia, ao ver os mocinhos morrendo de medo do castigo materno mais terrível: o óleo de rícino.

Ah! Aí ele ria. Por tais torturas nunca iria passar. Nada de xaropes ou tônicos infantis. Também, almoçando dois bifes, não era para menos. E a sopa do jantar, também...Nisso consistia sua desforra das gozações. Pobres caubóis tratados a Biotônico... Mas chamá-lo de bolão, ah, isso não.

- Manhêêê...

Dona Alice abriu a porta e Nando correu para a cozinha, jogando em cada canto uma peça do vestuário de bandido  o revólver de plástico, o sombreiro, o cinturão...  tudo, alguns minutos antes, tão necessário e agora já esquecido, superado por uma apetitosa torta de maçã.

A porta bateu com estrondo. O coro da turma foi diminuindo: Bo-lão! Bo-lão! Bo... E Nando nem se lembrava mais da briga.

Atrás dele, naquele latido franzinho, próprio de cães recém-nascidos, Xuxu, o pequenino collie, há pouco adquirido pelo doutor Mário, pai do garoto.

Dona Alice, calmamente, dava fim à balbúrdia feita pelo pequeno na saleta ainda há pouco encerrada e arrumada.

- Tenha calma, sim, mocinho? A torta já vai sair. Por que você não chama seus coleguinhas para lancharem aqui também?

Nando levantou Xuxu à altura do peito e começou a acariciar-lhe as orelhas. O cachorrinho abanava o rabo, satisfeito, tentando lamber as mãos de seu dono. Xuxu era uma das paixões do pequeno. Ele mesmo escolhera o nome. Sempre quisera ter um cão, mas só agora realizara o sonho antigo. E como antes, para suprir a falta de um cachorrinho, a empregada lhe fizesse, vez por outra, um de chuchu, Nando decidira dar ao real o nome que ele achava ser da matéria prima com que eram feitos os anteriores, sem vida própria, mas latindo e correndo como verdadeiros collies, na imaginação do menino.

Que nome para um cachorro  dizia sempre dona Alice  Xuxu. Por que não Rex? É mais bonito e próprio.

Mas ele batia o pé: Vai ser Xuxu  e acabou-se.

Havia ainda duas paixões mais. Duas que ele guardava em silêncio, por ter a certeza de que nunca as conseguiria.

A primeira era Sandra. Ah, Sandra! Como ele a via em sonhos...

Chegava até a acordar mais cedo para assistir à sua saída de casa, na hora do colégio. Infelizmente, dona Helena, mãe da garota, não gostara muito da idéia de eles irem juntos. Idéia, por sinal, que ele próprio propusera. Pois se era só atravessar a rua... E a empregada sempre o levava até a porta... Ah! Como ele sonhava com a cabeleira negra de Sandra... E os olhos? Azuis, azuis... Linda! Um dia, ela o olhara de frente, na escola. Ele ficara tão encabulado, que quase pusera o dedo no apontador, em vez do lápis. A pequena dera uma gargalhada e Nando jamais esquecera suas palavras: Você é tão gozado, gordão, assim...Quê  que você tanto enche essa merendeira? A do César é que é bacana... E ele traz sempre aqueles chocolates...

A esperança brilhara apenas por um segundo, para dar lugar à decepção. Ele arriscara um princípio de resposta, mas César ia passando e Sandra saíra correndo: Ei, César, me dá um chocolate?

E os dois seguiam, na forma, de mãos dadas, para a mesma sala de aula. Como Nando invejava o rival: Na mesma sala de Sandra. Aquele bobão. Se fosse eu...

Mas a sineta implacável de dona Hermengarda, a inspetora, já dera fim ao recreio, trazendo de volta a realidade das aulas, e Nando seguira resmungando para a sala: Um dia ainda escondo aquela sineta e eles vão ver só. Se não fosse ela eu tinha conversado com a Sandra.

Isso, porém, nada mais era que a compensação de uma timidez inata, como ele próprio depois viria a recordar. Uma timidez erradicada momentaneamente. Mais cedo que ele pudesse supor.

A última paixão do menino era uma metralhadora de brinquedo. Vira-a numa vitrine da Mesbla, no inicio daquele ano, quando passeava pela cidade, com o pai. Era mesmo um sonho. Feita no Japão. Pai, como é que o Japão, de tão longe, manda brinquedos pra cá?

O senhor Mário sorrira e iniciara uma explicação que o filho nem ouvira, pois já tinha o rosto colado ao vidro: Que sonho! Toda de metal! Trabalha com pilhas! Olha lá, Pai. A gente aperta ali, os dois canos começam a mexer e as luzinhas acendem, dando a impressão de fogo! E tem aquela fita cheia de balas de plástico, que vão rodando.

- Pai, me dá aquela metralhadora no Natal?

- Vou fazer o possível, meu filho. Ela é muito cara e seu pai tem que fazer economias. Mas você tem certeza de que é isso mesmo que você quer? Até lá ainda há tempo... Você pode mudar de idéia...

- Não, pai. Eu quero aquela metralhadora, tá bem? O senhor dá? Promete? Se eu estudar e tirar boas notas, o senhor me dá? Hein, pai?

Era inútil tentar dissuadi-lo. Ele argumentava com aquela teimosia já característica. A mesma que o levava a obrigar a mãe a cozinhar diariamente a famosa torta de maçã. A mesma com que induzira todos a aceitar como Xuxu o nome do pequeno collie. A mesma que, um dia, ele tinha certeza, o levaria a deixar de ser bandido e fazer de Sandra a sua mocinha. Talvez não bem uma teimosia. Quem sabe, uma pertinácia...Quem sabe, um ideal...

O pai se rendeu: Dou, dou sim, meu filho...

Naquela tarde, Nando chegara em casa satisfeito, sorridente. A mãe até estranhara que ele, após a ceia, quisesse estudar. Mas aquela metralhadora merecia.

Agora, o Natal estava perto. E a satisfação nascida da promessa do brinquedo já não era a mesma. Nando pilhara uma conversa dos pais, em que só pudera entender frases soltas. Era noite. Em seu quarto, o pequeno sonhava acordado com as aventuras programadas para o dia seguinte. Mais uma vez ele seria o bandido. Foi quando percebeu a conversa dos pais, na saleta contígua: O dinheiro está curto... Mas ele merece... É tão claro, Alice... Você não acha melhor um terninho?

A idéia de um terninho, em lugar do brinquedo, fizera Nando verter copiosas lágrimas, em silêncio, no travesseiro. Será que os pais não compreendiam? Ele precisava daquela metralhadora. Não, era bobagem... Eles nunca poderiam entender... Eles não brincavam de mocinho, nem tinham um César para lhes atrapalhar os planos. E só com a metralhadora ele poderia fazer morrer de inveja o adversário e toda a turma. E nunca mais seria o bandido. Seria sempre o bom, e quem cairia no chão para fingir de morto seria o César. Ele mocinho e Sandra a mocinha. Que show! Ambos montados no mesmo pedaço de muro que servia de cavalo, puxando o Zeca, o Paulinho, o Mauro e principalmente o César, por um barbante, à guisa de laço. E a metralhadora na mão, gloriosamente. Sem emprestar a ninguém. Jurava que não. Jurava sem cruzar os dedos. Palavra de honra. Ninguém, ninguém, ninguém. Era só dele. Os pais dos outros que comprassem uma igual, se pudessem. Só ele podia apertar o gatilho e gozar a admiração da turma estupefata. Nem a Sandra? Nem a Sandra?... Bem... Se ela pedisse, talvez, só um bocadinho... Não. Ora, essa... Mas se era a chance de ir à forra... Se ela quisesse, teria primeiro que jurar nunca mais olhar para o César. Juramento de piratas, daqueles que eles só faziam quando o assunto era muito grave. E assinado com sangue, como na história de um tal de Tom não sei de quê, que o Tonico, primeiro da classe, vivia dizendo ter lido e se gabava de ter o mesmo nome do herói. Tom Sóuier, ou Sáuier, sei lá, um nome esquisito à beça. Só o Tonico, mesmo...

E o juramento tinha quer ser lá na caverna onde ele tinha seu esconderijo de bandido. A caverna era um velho medidor de gás, abandonado, onde mal cabiam ele e o outro de seu tamanho, agachados.

Ele está ficando com as roupas apertadas... E já está ficando um homenzinho... Viu no batizado da Lulu? Todos os meninos de terninho, e o Nando... Outra vez o maldito terninho. Esse Natal ia ser duro... Natal... Presentes... Sandra fazia anos no Natal. Que sortuda. Ganhava sempre dois presentes. Puxa, vida! Queria ser a Sandra... Que nada. E eu lá queria ser mulher? Elas são muito gaiatas. Ficam o dia inteiro brincando de boneca e pulando amarelinha...Quá, quá, quá! Que maricas! Eu posso ser bandido, mas pelo menos sou valente. Não me rendo assim, não...

Sandra vai fazer oito anos... Se eu tivesse dinheiro, comprava uma caixa daquele chocolate do César, de que ela tanto gosta. Não, os do César, não. Tinha que ser muito mais gostoso. Aquele da Gerbô, talvez... Hummm... Só assim ela esquecia de uma vez por todas aquele cara tão chato. Chocolate, doce, torta de ma...

A voz de dona Alice irrompeu bruscamente, tirando o menino de suas divagações:

- Nando! Não ouviu o que eu perguntei?

- Que foi, mamãe?

Nando ficara um tempão pensando em Sandra, na metralhadora, no Natal, enquanto acariciava Xuxu. Esquecera-se por completo da torta. Incrível!

- Por que você não traz seus amigos para lancharem aqui?  indagou mais uma vez a paciente dona Alice.

Os olhos dele brilharam. Era a sua chance. E dada pela própria mãe. Ah, que boa mãe ele tinha... Neca de chocolate. Sandra ia ganhar é um pedaço de torta de maçã, daquela que sua mãe fazia. Um pedaço, não. Uma torta inteira. Inteirinha, só para ela. Seria o seu presente de Natal. Muito melhor, até, que aqueles torrões de açúcar eternamente desejados pela criançada, que ia admirá-los e suspirar na porta da padaria...

- Ta bem, mãe. Vou chamar.

Correndo tão rápido quanto aquelas banhas prematuras lhe permitiam, Nando voltou ao ponto de reunião da turma, no portão da vila. Mas era lógico que ele não iria convidar a todos. Só a Sandra, é claro. Afinal de contas, aquilo era torta de bandido. Para mocinho, era pior que veneno. Era o seu argumento para não chamar os rivais até a sua casa. Mocinho não podia comer, que morria.

- Como é, Bolão, já lanchou? Quantos barris de leite você já tomou?

Era o Zeca, outra vez. Todo prosa, mostrando o quimono de judô. Que droga!

A menina estava ninando uma boneca.

- Sandra, minha mãe está convidando você para lanchar lá em casa. Você vem?

- Não, não vou, não. Acabei de lanchar na casa do César. Mas diga a ela que muito obrigada.

E, sem sequer olhar para Nando, voltou a fazer as vezes de mãe da boneca, enquanto uma dor infinita fazia corar ainda mais as faces do menino.

- Ih! O Bolão tá pegando fogo!

- Será que dá pra fritar um ovo?

Não quis ouvir mais nada. Voltou para casa lentamente, respirando com dificuldade, face ao esforço despendido na correria.

Dessa vez, a porta não fez ruído ao se fechar. A mãe estranhou, ao vê-lo chegar em silêncio. Nando trazia, agora, Xuxu colado ao rosto.

- Meu filho, não pegue no cachorrinho assim. Ele pode estar sujo... Mas o que há? Eles não vêm comer a nossa torta?

O menino respondeu com dificuldade:

- Não... eles... já lancharam  ao mesmo tempo que colocava o cachorrinho no chão.

A mãe sorriu:

- Tanto melhor. Assim sobrará mais para nós, não é, meu gulosinho? Acho que você não quis foi chamar ninguém, para comê-la toda sozinho. Mas vamos logo, antes que ela esfrie, meu filho.

Nando sentiu-se reconfortado. Era tão bom estar ao lado de alguém que não o chamasse de Bolão, nem o tratasse como Sandra o tratara. Sorriu. E, naquela filosofia de gentinha ainda com muito feijão para comer, passou rapidamente do amor platônico para o gastronômico. Mas um bom observador notaria, no pescoço do filhote de collie, uma umidade já quase totalmente absorvida através do pêlo farto e que, sem dúvida alguma, não provinha de banho, ou muito menos de chuva. Parecia mais ser oriunda de alguma nascente. Uma nascente pura como os olhos de Nando, ora vermelhos e denunciantes...

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Naquela manhã de novembro, César não foi à escola. Como sempre, isso era o maior motivo de alegria para Nando. Era a sua chance de conversar com Sandra...

- Bom dia, Sandra. Êi! Onde você arranjou esse chocolate? O César não está aí...

- Quer mesmo saber? Pois eu não digo. Não digo, não digo!

Nando não entendeu aquela resposta. Mas, tão acostumado estava a essas tiradas, que simplesmente deu de ombros: Ela que se dane, afinal. Ora, bolas.  filosofou.

Durante uma semana, o rival de Nando não apareceu. Comentava-se, em tom misterioso, nas reuniões da turminha, que ele estava com sarampo.

Zeca já tinha tido sarampo. Foi grande a importância que assumiu ao afirmar, reiteradas vezes, a gravidade da sua doença. E não sem inveja, os outros ouviam suas palavras: O meu é que foi fogo. Tive quarenta graus de febre!

Em sua lógica infantil, Nando compreendeu que, quando César voltasse a brincar, teria mais um motivo para ser olhado com respeito: ele tinha tido sarampo!

- Manhêêê! O quê que eu faço pra pegar sarampo?

A mãe estranhou aquilo, mas acabou achando graça. E proibiu-o de visitar o doente.

A essa reprimenda, Nando se sujeitou com alegria. E ria consigo mesmo: A mamãe tem cada uma! Vê lá se eu vou visitar o César! Que idéia! Gente grande não entende nada, mesmo...

Para gáudio seu, o rival prolongou a ausência por mais alguns dias  convalescença, diziam  mas, inexplicavelmente, Sandra continuava a trazer, na merenda, o maldito chocolate. Que coisa!

Bem que Nando arriscava perguntar a origem daquelas gulodices. Mas a resposta era implacável: Não lhe interessa, seu Bolão!

Era estranho... Será que ela ia visitar o César? Mas como? Se fosse isso, ela também já deveria estar com sarampo...

Sem saber se movido pela curiosidade ou pela chance de materializar seus sonhos de mocinho, Nando resolveu investigar. Era a sua ocasião.

Já estava próximo o mês de dezembro. As provas iriam se iniciar naquela semana. Só havia um jeito. Era espiar onde Sandra ia antes de chegar à escola: Vou pegá-la em flagrante  disse lá com seus botões.

Depois de fazer seus planos, Nando estipulou o dia da grande descoberta, antegozando a surpresa que Sandra teria.

Afinal, chegou a hora. Despediu-se rapidamente da empregada, à porta da escola. Lá vinha Sandra, caminhando para o mesmo lugar. Será que ela já trouxe o chocolate?  interrogou-se ele, num princípio de decepção.

Engano seu. Na esquina do quarteirão onde ficava o Grupo, Sandra dobrou, enveredando por uma rua que ia ter à Quinta da Boa Vista.

Nando espantou-se: Então não é o César quem dá os chocolates... Quem mora ali é o Zeca... Será que é ele?

E chegou a dar uma gargalhada, pensando na cara que o César faria ao saber que a Sandra o estava traindo... E logo com quem... O famoso lutador de judô... Ah, ia ser muito gozado...

Olhou o relógio da igreja. Ele já sabia ver horas. Eram sete e dez. Tinha vinte minutos... Deixaria a pasta naquele cantinho e então...

Esgueirando-se do olhar severo de dona Hermengarda, saiu de fininho pelo portão lateral da escola, que ia dar bem na rua onde Sandra entrara. E lá ia ela, muito prazenteira.

Para um rasteador de índios como ele, seria barbada seguir a menina. Por sorte, a rua era arborizada e ele podia correr de um flamboyant a outro, sem que Sandra o visse. Mas era bom não afastarem muito, senão... Êi. Ela já passou da casa do Zeca... Sim, sim! Agora me lembro! Ele já estava na escola quando eu saí! Então não é ele! Quem será?

E Nando logo imaginou um atrevido qualquer, vindo de outra parte do bairro. Ou, quem sabe, lá da Tijuca. Aqueles caras da Tijuca que apareciam lá, de vez em quando, para visitar os avós, eram metidos...

Mas a sua curiosidade não levou muito tempo para ser satisfeita. Sandra parara em frente a uma árvore grande. Encostado nela, estava um   homem grisalho, muito alto. Nando se lembraria depois, com angústia, de que ele era realmente muito alto. Será que é avô dela? Não, não é possível...

Àquela pouca distância que os separava, pôde ver que o homem alisava os cabelos de Sandra. Que canalha...  murmurou  Ah, se eu fosse grande...

Sandra sorria. O estranho tirou do bolso um pequeno embrulho.

Nando fixou mais a vista. Era o famoso chocolate... Então é esse o misterioso dador de presentes...

Nisso, o homem se afastou, não sem antes estender a mão para que Sandra a beijasse, o que fez com solenidade e respeito. Será que ele é padre? Mas padre não anda de terno, ora essa...

O homem vestia um terno cinza. Nando recordaria muito bem esse fato, mais tarde... Lá vem Sandra. Vou apanhá-la de surpresa. Vai ser agora.

Agachou-se mais atrás da árvore e esperou. No exato instante em que ela cruzou seu esconderijo, o menino saltou-lhe à frente, quase gritando:

- Peguei!

O susto foi grande, mas a pequena logo se recompôs.

- Nando! Isso é coisa que se faça? Você não tem jeito, mesmo. Vai embora, vai! Não quero saber de conversa com gorduchos!

Mas aquele detetive de última hora não estava com muita vontade de dar o braço a torcer e replicou:

- Não vou, não. Se você não me disser quem é esse cara, eu vou contar a todo mundo o que vi. E vou dizer à sua mãe também. Pronto. Quero ver agora, sua valentona.

A menina titubeou. Aquilo não lhe parecia direito. Pensou um pouco e decidiu-se.

- Está bem. Mas você jura que não diz nada à minha mãe? Jura?

- Juro, ora essa, mas só se você contar.

- Eu conto. Não é nada demais. Aquele senhor é dono de uma loja de chocolates, lá na Quinta. Ele disse para eu ir lá amanhã, que ele vai me dar uma caixa cheia. Mas eu tenho que ir sozinha e não posso contar a ninguém, senão todo mundo vai querer ir lá para ganhar doces. É só isso.

Nando ficou meio espantado com aquilo. Não lhe parecia boa coisa.

- Mas como é que você vai lá? Só se você não vier à escola amanhã. E se você não vier, dona Hermengarda vai até sua casa saber o que houve...

- Você é bobo, mesmo, Nando. Eu já combinei tudo. Às nove horas eu vou pedir à professora para ir ao banheiro. Logo depois é o recreio. Eu vou e volto correndo. Chego aqui um pouquinho antes da sineta tocar. E ninguém vai dar pela coisa.

- Puxa! Você é muito esperta mesmo. Mas onde vai esconder os doces?

- Ora, Nando. Na minha merendeira, é claro. Aquela que tem um furo embaixo, feito pelo seu Xuxu, aquele danadinho. Roeu o couro todo. E não fui eu quem bolou tudo isso, não. Foi o seu Roberto...

- E quem é seu Roberto?

- É o homem dos doces, ora essa...

Nando gravou bem aquele nome. E, mas tarde, quando lhe perguntassem, ele viria a responder com convicção, embora poucos acreditassem.

Depois das aulas daquele dia, Nando voltou para casa pensativo. Nem ligou para Xuxu. Tampouco tomou conhecimento de um fabuloso pedaço de torta de maçã que a mãe colocara à sua frente, de tarde.

- Mamãe. Eu... Não, não é nada...

Por pouco não revelara o segredo de Sandra. Que perigo! Quebrar juramento é pecado mortal... Mas de repente uma idéia brotou em seu cérebro:

- Mamãe!

- Mas o que é, hein, doutor? Será que você não me deixa acabar de fazer o jantar?

- Mamãe, eu prometi à Sandra uma torta feita pela senhora, para ela merendar amanhã. A senhora faz? Faz, hein, mãe, faz?

- Hummm... Para a Sandra, é?...Isso está me cheirando a namoro... E logo agora que o César está doente...

- Faz, mãe, faz?

- Está bem, Nando, faço, sim. O que é que eu não faço?

O pequeno esfregou as mãos, contente. Agora, sim. Ele embrulharia a torta num guardanapo de papel, cuidadosamente furado em um dos cantos. Quando Sandra colocasse a torta na merendeira furada, o doce iria se esfarelando e caindo no chão. Assim, ele teria uma pista para seguir a menina de longe... Finalmente aquelas histórias em quadrinhos tinham tido uma serventia bastante útil...

- Que boba. Ela mesma deu a idéia de como sair da escola sem dona Hermengarda descobrir... Ah! O tal de seu Roberto vai ter que me dar uma caixa de doces, também. Vai ser a minha vingança...

Naquela noite, Nando foi dormir satisfeito. No dia seguinte ele teria uma grande aventura. Também, só um bandido como ele poderia imaginar tal plano.

Deitado na cama, Nando sonhava acordado: Só quero ver a cara do César, quando souber... Não... Duvido que ela conte... Vai morrer de vergonha... Depois, o chocolate... Xuxu gosta de doces... Metralhadora... Sandra é tão boni...

E adormeceu sorrindo.

Às nove horas da manhã, Nando pediu para ir ao banheiro. Nunca fizera isso antes. E foi com certa vergonha que o fez. Vergonha e medo. Ele estava nervoso. Afinal, era chegada a hora de sua grande aventura.

Dada a permissão pela professora, o menino desceu rapidamente as escadas que conduziam ao portão. Chi... dona Hermengarda está lá. Como é que vai ser?

O olhar da inspetora o seguiu enquanto ele se dirigia para o banheiro. Mas logo a idosa senhora se retirou. É agora  pensou. E num pulo estava na rua. Seja o que Deus quiser  murmurou, imitando um de seus mocinhos favoritos das novelas de rádio.

Algo no chão estampou-se em sua vista. Era um pedaço de torta. Então, dera certo o plano. E ele recordou, sorridente, como tivera que convencer a menina a colocar o doce na merendeira. Quase que ela estraga tudo...

Um quarteirão à frente, ele distinguiu Sandra. Lá ia a pequena, pela mão de seu Roberto. Vou deixar que eles se afastem bastante. Não podem me ver. Depois, é só seguir os farelos da torta. Se assim disse, melhor o fez. O plano era perfeito. Perfeito até demais, para uma criança. E esse foi seu erro. Em sua mente infantil, criou uma aventura, movido  diriam os adultos  pela gulodice. Mas, para ele, era importantíssimo, naquelas horas, ser o astro da situação.

Assim pensava Nando. E, por isso, envaideceu-se. Mas esse breve orgulho  tão justificável  logo se desvaneceu, ao ver o último farelo de doce em frente à porta de um quiosque abandonado. Em seu alvoroço, ele não percebeu que tinha dado voltas pelos recantos mais solitários do parque. As árvores altas sombreavam o ambiente.

Estancou, curioso, naquele local tão ermo. Não teve tempo de pensar... mas não demorou muito a perceber que aquela mão que abrira a porta e o puxara violentamente para dentro pertencia ao dono da loja de doces.

Numa fração de segundo, percebeu tudo. Não fosse ele o pior bandido da turma: seqüestrado.

Tentou gritar. A mão pesada de seu Roberto atingiu-o em cheio nas faces. O mundo veio abaixo. Tudo começou a rodar de repente: Xuxu, a torta, a escola, o homem estranho, a metralhadora, Sandra, Sandra, San... E não viu mais nada.

Acordou, de súbito. Sandra estava à sua frente. Tinha faces muito pálidas. Os olhos congestionados, as mãos trêmulas.

- Sandra, eu... Tentou falar, mas a voz não saía.

Inexplicavelmente, Sandra lançou-se a ele, abraçando-o com força. Ela estava chorando.

Nando sentiu uma angústia terrível. Queria chorar também. Mas não podia. Fez força para não deixar uma lágrima teimosa rolar-lhe pelas faces, ainda doloridas da pancada.

Olhou ao redor. Estava escurecendo. Procurou identificar o ambiente. Era um aposento meio circular, bastante carcomido pelo tempo. Pelos cantos, sacos vazios, pedaços de corda, uma bicicleta velha e outros trastes.

Estavam sós. O homem tinha saído. Agora ele deve ter ido pedir resgate a nossos pais  pensou Nando, acostumado que estava a brincar de seqüestro, só que agora... não era mais brincadeira.

A lembrança dos pais fê-lo sentir um frio no coração. Que horas seriam? Maldita hora em que resolvi seguir Sandra  resmungou. Mas logo essa idéia lhe pareceu por demais egoísta e Nando fitou com pesar aquela menina, que agora se lhe apresentava tão desprovida de orgulho.

Pensou em sua mãe e a angústia foi maior ainda. E Xuxu... E a torta... Teve idéia de rezar.

- Sandra  murmurou bem baixinho, quase choroso  Vamos rezar?

Ela voltou o lindo rostinho para o pequeno. As olheiras eram profundas. Quase automaticamente deram-se as mãos.

- Vamos fazer como dona Letícia ensinou no catecismo  disse ele  Eu recito a primeira parte e você responde: Ave Maria, cheia...

Era inútil. Sandra começou a soluçar e ele não se conteve mais. Chorou, também, abraçado àquela que ele sonhara tento abraçar, e em que condições viera a fazê-lo.

As lágrimas o reconfortaram. Conseguiu cochilar.

Pouco mais tarde despertou, sobressaltado. Estava completamente escuro lá fora. Meu Deus. Que horas serão?

Continuavam sozinhos.. Aos poucos sua visita foi se acomodando ao escuro. Lá estavam, nos mesmos lugares, aqueles trastes.

Súbito, um objeto chamou-lhe a atenção. Mais uma daquelas suas idéias luminosas começou a comichar-lhe o cérebro: Será?...

A menina também adormecera. Tentou despertá-la:

- Ei, Sandra, acorde  ele falava bem baixinho.

Não conseguira despertar a garota. Puxou-lhe delicadamente os cabelos. Aqueles mesmos cabelos que eram sua paixão. Parecia inalcançável poder um dia pentear aquelas madeixas. Entretanto, elas, agora, nada mais lhe representavam que o meio de despertar Sandra.

Finalmente ela se levantou, assustada. Nando não deu tempo a que recomeçasse a choradeira.

- Tenho uma idéia. Vamos ver se dá certo? Mas você tem que me ajudar.

Ela nada respondeu. Encolheu os ombros e fez menção de reiniciar o pranto. Mas Nando estava disposto demais a executar o novo plano, para permitir que Sandra o estragasse. Enraiveceu-se:

- Ora, Sandra, você, também... Puxa... Então você acha que se ficar aí chorando feito uma boba vai conseguir alguma coisa? Será que você não...

Interrompeu-se bruscamente. Viu que tinha sido rude.

Tentou consolá-la:

- Por favor, Sandrinha...

Quase sem sentir, ele a chamara de Sandrinha... Isso era o privilégio do César... Entretanto, não sentiu nada de diferente ao falar assim. Nem ela.

- Quê que você quer que eu faça, Nando?  Seus lábios tremiam e, a essa resolução, Nando vibrou.

De repente, sem saber por que, algo dentro de si o reanimou. Enfim, chegara o dia. Era a hora de mostrar o seu valor. O momento de colocar em prática, na vida real, os seus conhecimentos de bandido. Sentiu-se importante. Sua missão era elevada: salvar a Sandra. Ele era homem, podia morrer em combate. Mas Sandra tinha que ser salva. Nem que fosse por uma vez na vida, ele ia ser o mocinho da pequena. Compenetrou-se. Sentiu-se potente. Ele tinha que cumprir aquela missão. Pensamentos negros tentavam dissuadi-lo. Mas Nando os espantou  embora a custo  e quase gritou para Sandra:

- Procure uma corda.

A menina obedeceu. Quase instantaneamente, Nando agarrou o objeto que lhe chamara a atenção: uma barra de ferro. Não tão pesada que ele não pudesse vibrá-la com força. Mas o suficiente para adormecer o inimigo.

- Pronto, Nando. Ali, naquele canto, estava esta corda.

Ele examinou o achado como um mecânico que examinasse um motor. Pareceu satisfeito com o exame:

- Está um pouco podre, mas acho que agüenta.  Deu uns puxões. Ela resistiu.

- Agora, Sandra, preste atenção.  E aproximou-se da menina, sussurrando-lhe o plano. Ela parecia desanimada, mas Nando estava disposto a salvar a situação.

- Pelo menos nós vamos tentar. Se não der certo... Bem, é melhor nem pensar nisso, Sandrinha...

Sem que ele esperasse, a menina, surpreendentemente, beijou-o na face.

- Puxa, Nando, não sabia que você era valente assim... Se não fosse você...

Não concluiu suas palavras. Tampouco Nando pôde desfrutar do encanto daquele momento. Ouviram passos do lado de fora e ele apertou fortemente a mão de Sandra

- Que Deus nos ajude  pronunciou baixinho.

E seus lábios roçaram por um instante o rosto da pequena. Quase um beijo. Um beijo puro como seus coraçõezinhos. Depois disso, se ela voltar a falar com o César, eu tenho que me mudar da vila  pensou Nando.

Mas logo voltou à realidade, porque a porta estava sendo aberta. A claridade da lua penetrou no velho quiosque, o bastante para que eles reconhecessem, no homem que entrava, a figura do seqüestrador. Mas não bastou para que seu Roberto percebesse a corda esticada no chão. Além do mais, a bebedeira em que se encontrava não lhe garantia muito equilíbrio.

Mais tarde, o estranho se recordaria vagamente das últimas palavras que ouvira, antes de perder os sentidos:

- Agora, Sandra...

O tropeção fora eficaz. E ele nem pudera se refazer do susto, tamanho o golpe que o pequeno imediatamente desfechara em sua cabeça. Destruído. Dominado por duas crianças.

- Conseguimos, Sandra! Conseguimos!

A euforia de Nando era total. Não se conteve. Estreitou sua heroína, com força, nos braços roliços. Ambos riam e choravam. Que vitória! Nando dava pulos, abraçado à menina, sem se aperceber de que estava realizando o grande sonho de sua vida. Felizes. Tão felizes, que não repararam na multidão que os cercava, sorridente, na observância daquele gesto tão puro.

O ruído da sereia retirou-se do êxtase. À volta dos heróis, dois carros de polícia, ambulâncias e mais uma porção de gente. Ele se esquecera que o pai de Sandra era da policia. Reconheceu alguns vizinhos. E não entendeu bem os gritos que ouvira, pois foram dados por duas mães angustiadas, a correr de um carro que acabara de parar, chamando, ao mesmo tempo, por eles.

A paz que o dominou foi infinita, ao sentir, em redor de si, os braços  de dona Alice  e do pai. E outra vez o mundo começou a girar em meio às luzes vermelhas e brancas dos carros da polícia. Mamãe... Sandra... O homem... Xuxu... Sandra... César... Sandra... Sandrinha... San...

Depois, muito depois, ele viria a saber como o homem pedira o resgate e como o pai da garota os descobrira. E sentiria sobre si os olhares orgulhosos dos pais, dos amigos, quando o delegado viesse a chamá-lo de pequeno herói.

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Vinte e cinco de dezembro. A turminha já abriu os presentes há muito tempo. É hora de reunião lá na porta da vila. Cada um quer mostrar o que ganhou.

- Puxa, olha a monareta do Zeca!

- Que nada! Bacana mesmo é o jogo de boliche do Paulinho!

- Lá vem o Juca com uma bola!

- É o César? O que ganhou?

Todos os olhares se voltam para um grupinho animado. César, cercado por três pequenas, exibe uma metralhadora. Elas elogiam o brinquedo, mas  naquela velha tática feminina, já cedo desabrochada  sabem o que lhes interessa: o dono, não o brinquedo.

Zeca cobiça o presente do companheiro.

- Puxa, com aquela metralhadora eu também fazia a Neidinha, a Marisa e a Regina ficarem gamadas... Feita no Japão! Olha lá! É com pilhas! Quando se aperta o gatilho, os dois canos começam a mexer e as luzinhas acendem, dando a impressão de fogo! E tem aquela fita cheia de balas de plástico, que vão rodando... Ué? A Sandra não está ali? Que é que houve?

- Deixa de ser bobo, Zeca. Então você não viu que depois daquela confusão ela não larga o Nando?

- É mesmo. E ele, onde estará?

A conversa recai sobre o ex-bandido. Sim, ex-bandido. Os garotos pronunciam seu nome com respeito:

- Ele é um verdadeiro herói...

Mas Nando não quer saber de nada. Não ganhou a metralhadora no Natal. Entretanto, ele próprio assim o decidira. Preferira um conjunto de química. A metralhadora que se danasse. Não precisava mais dela, para mostrar que era valente.

Hoje, Nando não virá ao portão. Tem algo mais importante a fazer. Ele e sua secretária. Ah!, sim, ia me esquecendo. Sandra agora é a sua secretária.  Debaterão sobre importante fórmula que descobriram. E é um gozo vê-los  o avental da empregada à guisa de jaleco  muito compenetrados, ambos, a experimentar as reações coloridas nos tubinhos de ensaio. Xuxu os observa intrigado. Não pode entender aquilo. E Nando está satisfeito. Bem mais magro. Bem mais elegante.

Bolão? Pois sim. Nem o Zeca, com todo o seu judô, tem coragem de lhe falar nesse tom.

Volta e meia o chamam para brincar de mocinho. Ele dá de ombros:

- Você quer ir, Sandra?

- Não, Fernandinho. Hoje nós temos que ver o que vai dar aquela experiência...

E saem ambos, as mãozinhas dadas, para o pretenso laboratório. Xuxu atrás, sabedor de que, daqui a pouco, ganhará um pedaço de torta de maçã.

Mas a vida na vila continua. Se Nando não pode ser o bandido, alguém terá que sê-lo! Assim fala Zeca, em sua autoridade de lutador. Agora ele é o líder. Decidiu-se. Afinal, aquela metralhadora estava atrapalhando o seu prestígio.

- Olha, César, isso aí é arma de bandido. De agora em diante, você é que vai ser perseguido.

O galã de outrora se sente vexado. Mas tem que aceitar. Quem sabe, um dia, ele não terá, também, uma chance como a do herói da vila?

Nando, hoje, se considera feliz. Não tem a metralhadora. Mas tem Sandra, o que é muito mais compensador.

Em parte, conseguiu realizar seus sonhos. De vez em quando ainda brinca de mocinho. Invariavelmente é o chefe. Exerce função de importância. Não é soldado que combate. É general que planeja. Sempre com a secretária ao lado, para ciúme dos companheiros.

Às quatro horas, invariavelmente, reúne toda a turma em sua casa. Dona Alice tem que fazer mais tortas com sorvete.

Está feliz. Tão feliz, que nem chega a reparar na cena: Zeca cavalga o mesmo pedaço de muro. Em suas mãos, a metralhadora.

- É preciso desarmar o bandido, ora essa  diz ele, piscando alegremente os olhinhos brejeiros.

Atrás do cavalo imaginário, as mãos atadas por um barbante que serve de laço  um olho em Sandra, outro na torta, Nando nem se dá conta  quem vai? O César...  

 

 

 

 

 

 


Autor: Gil Ferreira


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