O Dia da Criatura



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O DIA DA CRIATURA

Hoje é sábado, amanhã é domingo.

        Não há nada como o tempo para passar.

                                           Foi muita bondade de nosso Senhor Jesus Cristo.

                                           Mas, por via das dúvidas, livrai-nos meu Deus de todo mal.

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                                           Todos os maridos estão funcionando regularmente.

                                           Todas as mulheres estão atentas.

                                            Porque hoje é sábado.

(Vinícius de Moraes  O dia da criação)

O enterro foi concorrido. Não é todo dia que morre a esposa de um executivo. Dentro de um automóvel incendiado. Reconhecida pelas restaurações dentárias. Com mais alguém, na direção. Que não era eu, obviamente. Voltei às pressas de Belém, para onde havia viajado na véspera. Sou mergulhador, nas horas vagas. E foi a caça submarina que me levou até lá.

Interessante, a burocracia desaparece à medida que se sobe no establishment. Corretores de seguros, polícia, agentes funerários, coroas. A empresa cuidou de tudo. Todos me esperando no aeroporto. Assine aqui, assine ali, mil despachantes, amigos, parentes, conhecidos e desconhecidos, jornalistas, todos querendo transmitir os sentimentos.

Não dou uma palavra. Fujo dos repórteres.

Circulo pelo Rio até escurecer. Passo duas ou três vezes em frente ao meu edifício, até me certificar de que o grupo de curiosos já abandonou totalmente a portaria.

Subo pelo elevador de serviço. Aperto o botão direto, para evitar encontros inoportunos. E chego à cobertura.

Entro no apartamento vazio. Sou um viúvo corno. E agora, José?

É. Só resta tentar recomeçar a vida sem Lucíola. Quanto ao rapaz que estava com ela...

Melhor deixar por conta dos advogados. O essencial, agora, é uma dose de uísque.

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Há um renovar-se de esperanças

                                                        Porque hoje é sábado

                                             Há uma profunda discordância

                                                        Porque hoje é sábado

Há um sedutor que tomba morto

                                                        Porque hoje é sábado

                                                        Há um grande espírito de porco

                                                        Porque hoje é sábado..

(Id, op. cit.)

 

Sirvo-me de uma generosa dose. O malte puro das Highlands é um néctar. Ligo o ar condicionado central, acendo um Davidoff. Aciono o gravador e começa o replay em minha mente. Lucíola.. Ah, ah, ah... Acabou-se Lucíola.

Os primeiros telefonemas anônimos. As cartas sem remetentes. As indiretas de alguns conhecidos mais audaciosos. O contato com o detetive particular, num cinema do centro, à tarde... Rocambolesco...

Tudo muito planejado... A maricota para gravações telefônicas, contrabandeada por dentro da bainha do sobretudo.. Como deu trabalho instalá-la no aparelho, puxar uma extensão de fio, muito bem disfarçada, até o grande gravador, trancado em meu console... Doze horas de gravação... Eu saía às oito, voltava as dezenove...Ah, ah, ah! As conversas que descobri... A empregada com o namorado... Minha filha recebendo convites para festinhas... Meu filho marcando encontros com piranhas. Ah! Esse mundo vai mal... E os telefonemas do amiguinho de Lucíola. Ah, Flávia e Rodrigo, meus filhos, se vocês pudessem imaginar... Sinto interromper suas férias na fazenda em Mato Grosso... Mas eu tinha que mandá-los para um lugar de onde vocês só pudessem voltar uns três dias depois do acidente... E o presidente da empresa fez esse convite tantas vezes... Resolvi aceitar... Vocês gostaram... E as dificuldades de comunicação com a fazenda são grandes... as disponibilidades de transportes, poucas... Assim, pelo menos, vocês não veriam o corpo carbonizado de sua mãe... junto com um amiguinho...

Os assessores já se incumbiram de tentar comunicação com o escritório em Mato Grosso... Daqui a pouco as crianças estarão sabendo da triste notícia... Mas não saberão do amiguinho.

Ah, ah, o amiguinho... pelas gravações, vi que falavam em código. Um código primário. O detetive particular logo o decifrou... Nunca freqüentavam o mesmo local... Cada dia um hotel diferente... E a escolha era banal: ordem alfabética dos nomes... Foi fácil elaborar uma lista...

Mas o melhor mesmo foi quando presenteei Lucíola com aquele carrão cinza, vidros escuros... agora, era saber se os dois iam ter coragem de usá-lo para esse fim... Ah, Lucíola, se você pudesse me ouvir, para eu lhe contar tudo...

Os serviços dos detetives particulares andam cada vez melhores... Foi fácil identificar o carro do seu amiguinho, o endereço... Ouvi a gravação na terça-feira... O encontro deveria ser no sábado... Foi tão bom eu ter começado a vida como mecânico de automóveis... Seu amiguinho estacionava o carro bem no centro da cidade... Não naqueles terminais rodoviários, mas em uma ilhota da avenida Beira-Mar. Ele saía as dezoito... Ás dezessete, saí da empresa, na sexta-feira... Andei a pé, foi bom... O movimento era grande, ninguém prestou atenção em mim... Deixei o terno no escritório, o telefone desligado, um recado com a secretária para não ser incomodado e sai pelo elevador particular. A saída é no subsolo, discreta, e logo este ex-mecânico já tinha corrido ao estacionamento, e em quarenta segundos o fusquinha do seu amigo estava aberto...

Meio quilo de açúcar no tanque de gasolina... Ele andaria no máximo uns três quilômetros logo sofreria um entupimento fabuloso... Pelo menos uma semana para consertar... Sim, é claro que eu estava de luvas cirúrgicas, aquelas descartáveis, compradas a dinheiro numa farmácia bem distante de nossa casa, onde ninguém me conhecia...

Voltei ao escritório, ninguém me viu entrar... Ninguém soube que eu saí... Dispensei a secretária e os demais funcionários... Coincidência, não? O presidente em férias em Mato Grosso, eu respondendo pela diretoria... Um terço dos funcionários também em férias... Tudo favorável... Ninguém para usar o elevador particular, nada de chamadas urgentes.

No sábado, aquela minha saída cedo foi providencial. Ainda comentei que só voltaria à tarde... Para  ouvir o gravador, é claro... Depois da pescaria...

Como me diverti ao ouvir a fita... Seu amiguinho estava com o carro enguiçado e a oficina só lhe entregaria o automóvel no fim da outra semana... Tudo certinho... E Lucíola resolveu usar o seu carrão... Como eu queria...

O telefonema gravado na terça... Minha explicação de que aquele era um carro de difícil manutenção e que eu o levaria à concessionária na quarta-feira... Lucíola nunca entendia nada disso... Só que não o levei a concessionária alguma, mas à nossa casa de campo, em Teresópolis... E a empresa ficou pensando que fui fazer contatos com futuros clientes estrangeiros... É bom responder pela presidência...

A preparação do automóvel foi a parte mais interessante... Aquele sistema de exaustão de ar acima do banco traseiro se liga a um tubo de borracha, passando pelo porta-malas... Foi fácil colocar um pequeno espelho ali, desligar o tubo e transformá-lo em pequeno periscópio... Assim eu poderia, de dentro da mala, observar todos os seus movimentos a ter a certeza de que vocês iriam mesmo para o motel previsto pela seqüência alfabética... Por uma reportagem numa revista, eu vira as garagens individuais, com portas pantográficas...

E a mala do carro: o trinco pode ser facilmente aberto por dentro, com uma pressão ligeira dos dedos em um ressalto metálico... E dobrando-se a lâmina que pressiona o interruptor, eis que temos luz no interior, com a tampa abaixada... Só faltava o ar, que viria do aqualung, é claro... a mala é imensa!

Para ouvi-los retirei o alto-falante traseiro, também afixado por dentro do bagageiro... Com a grade por cima, é impossível saber se o alto-falante está lá ou não...

Desfaço as ligações do rádio, por precaução... Finalmente, a fechadura seria entupida por fora, na hora em que eu entrasse, com um fragmento de chave... Eu entraria, bateria a tampa... Sim, mas se furasse um pneu? Como você era ingênua, Lucíola... Acreditou no enguiço do fecho e ainda aceitou o spray para enchimento de pneus que lhe entreguei caso um pneu furasse e a mala não pudesse ser aberta...

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Há damas de todas as classes,

                                                         Porque hoje é sábado.

                                                         Umas difíceis, outras fáceis,

                                                         Porque hoje é sábado:

                                                         Há a sensação angustiante,

                                                         Porque hoje é sábado,

                                                         De uma mulher dentro de um homem,

                                                         Porque hoje é sábado.

(Id, op. cit.)

E o sábado chegou... Enquanto Lucíola acabava de se vestir para o jogo de bridge, eu trancava o escritório, deixava o gravador tocando relativamente alto e descia pelos fundos, apondo um bilhete na porta do quarto: Estou trabalhando, divirta-se, distraia-se, até a volta. Entrei no carro, entupi a fechadura e fiz um longo trajeto..

Pelo periscópio constatei que o motel era o esperado. Ouvi-os descer e entrar no quarto... Dei um intervalo de dez minutos, abri o porta-malas por dentro e bati à porta do apartamento...

O rapazinho custou a atender. Não lhe dei tempo de pensar... O revólver o assustou bastante... Lucíola quase desmaiou...  E os fiz beber, cada um, metade de uma garrafa de conhaque que o mesmo levara... até cair... Não houve problemas com garçons: o drinque de cortesia ainda não tinha sido pedido... E os dois bebendo, bebendo... ah, ah, ah, lembro-me dos dois caídos e de como apliquei, na veia de cada um uma injeção de ar... Ah, as coisas que se aprende em mergulho... embolia gasosa... Morte quase instantânea, sem sangue...

Foi muita sorte o amiguinho de Lucíola ter um tipo físico parecido com o meu... Vesti as roupas dele... E pela primeira vez usei aquela mulher de borracha, trazida de uma viagem, e de que você tanto reclamava, Lucíola... Vesti-a com suas roupas, depositei seus corpos no porta-malas, esperei umas três horas... Pedi a conta, paguei... E o porteiro, no escuro, jamais imaginaria que ao meu lado ia uma mulher de borracha... Depois, o caminho até aquele desvio na Rio-Santos... as placas do carro intencionalmente sujas de lama... Baixa velocidade, faróis baixos... Nada de problemas com a polícia... Estou de luvas desde a hora em que saí de casa... A entrada no desvio... É madrugada... Ninguém por perto... Rapidamente visto o amiguinho com suas próprias roupas, recoloco as minhas, visto Lucíola... O poço abandonado ali está... Testei sua profundidade antes... E lá dentro ficarão sepultados o aqualung  e outros acessórios... Com um imã desentupo a fechadura... Não há impressões digitais: limpei tudo... O aqualung é antigo, não tem marcas... Eu ia mesmo jogá-lo fora... Desfaço os gatilhos que adaptei no carro... Tudo perfeito, subo a serra em direção a Guaratiba... Agora, a meu lado, está o corpo de Lucíola... O amiguinho, deitado no banco traseiro... E chego àquela curva perigosa, exatamente onde está faltando a grade de proteção, sobre o precipício... Sei exatamente a distância percorrida por um carro, ao ser freado a uma velocidade de 120 km/hora, antes de parar totalmente... Marco a distância na pista, a partir da beira do precipício, para trás... De lá engreno primeira e conduzo o carro com o pé no freio até a borda... As marcas de borracha ficam no chão... a perícia avaliará a velocidade... Transfiro o amiguinho para a direção... Algo escorre dos lábios de ambos... Solto um dos cabos de vela... A máquina agüenta dar partida ainda assim... Furo a tubulação plástica do carburador, coloco um dos pés do rapazinho sobre a embreagem, engato a quinta macha... O outro pé vai sobre o freio... Basta um leve tranco no carro... e pronto! Um carrão despencou na estrada... O incêndio que procurei provocar iniciou-se antes do previsto... Ótimo!

Genial a idéia de ter deixado uma bicicleta dobrável no bagageiro do teto do carrão... Desço com ela até o Recreio dos Bandeirantes: lá está o meu próprio automóvel... Eu o deixara próximo a um restaurante, pela manhã, na pretensa pescaria, e voltara de ônibus... O porteiro do prédio me vira chegar a pé, à tarde... Contei-lhe que a pik-up havia enguiçado e que mais tarde eu voltaria para buscá-la..

Abandono a bicicleta... Calmamente abro meu carro e volto para casa... De uma cabine pública ligo para a portaria do edifício e peço ao porteiro da noite que abra o apartamento vazio, abaixo do meu... Alego ter ouvido ruídos estranhos ali... Ele pensa que estou em casa sozinho: já sabe que sou corno... Digo-lhe que o telefone interno não está bom... dá um risinho... Estou no orelhão mais próximo...

Vejo-o subir pela frente e entro na garagem antes que ele perceba... subo pelos fundos: as entradas são independentes... e entro em casa a tempo de abrir a porta da frente, pois o solícito empregado vem me tranqüilizar... Não há ninguém no apartamento abaixo...

Guardo a arma, que não usei. São cinco horas. Às seis e trinta, o motorista da empresa me conduz ao aeroporto, rumo a Belém...

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Na verdade, o homem não era necessário.

Nem tu, mulher, ser vegetal, dona do abismo,

Que queres como as plantas, imovelmente e nunca saciada.

Tu que carregas dentro de ti o vórtice supremo da paixão.

(Id, Op. Cit.)

 

Acabou-se o scotch. Essa opressão no peito... Batem à porta. Provavelmente mais um assessor. Pelo olho mágico vejo um homenzinho bem mal trajado.

- Polícia  ele diz

Polícia? Meras formalidades, certamente. Preciso me acalmar.

-Boa noite, doutor Fernando. Inspetor Gustavo. Desculpe incomodá-lo a esta hora... Mas o senhor compreende... Há certas formalidades...

Ele fixa o olhar no meu. Sustento-o por alguns instantes, desviando-o com o pretexto de convidá-lo a sentar.

- Doutor Fernando, sentimos o doloroso transe que o senhor passa agora, mas há algumas perguntas que precisamos lhe fazer, para encerrar o inquérito. Como o Senhor sabe, a empresa cuidou de tudo enquanto o senhor viajava, mas há alguns detalhes que se fazem necessários para...

- Está bem, está bem  respondo um pouco irritado.

Ele observa a garrafa e o copo de uísque vazios, o cinzeiro cheio, o gravador tocando...

- A que horas o senhor saiu, doutor Fernando? Digo, para o aeroporto, quando viajou para Belém?

- Cerca de seis e meia.

-E não notou a ausência de sua esposa?

Procuro me manter calmo. A opressão no peito aumenta.

 - Há algum tempo que dormimos em quartos separados. Não quis incomodá-la. Vi a porta fechada, ouvi o barulho de ar condicionado, sabe, nós não...

Calei-me. Falei em demasia. E lembrei-me de como eu deixara propositalmente o ar condicionado ligado e a porta do quarto fechada.

- Mas o senhor não estranhou encontrar o aparelho funcionando agora, no regressar?

-Não, não, julguei... agora que sei que ela  não regressaria mais, que, ao se vestir para sair, ela houvesse esquecido o aparelho ligado.

Deixo transparecer um sorriso irônico. Já é público que Lucíola me traía.

- Doutor Fernando, o senhor sabe que... bem, isto é um pouco chocante, mas... que eles foram a um motel?

- Inspetor, eu não tenho a mínima idéia de onde eles foram. Mas é claro que não iam parar na praia, certo?

- Já viu isso, doutor Fernando?

Ele não presta atenção em mim. Puxa do bolso um chaveiro metálico, meio carbonizado, mas onde se lia perfeitamente, em letras esculpidas em alto relevo, o nome do motel.

Sinto um frio na espinha. Abro outra garrafa de uísque, ofereço-lhe uma dose. Ele recusa. Está de serviço. Insisto. Ele acaba aceitando. E continua:

- As chaves do carro de sua esposa estavam presas  neste chaveiro. Foi só o que conseguimos salvar. É um brinde oferecido pelo motel.

O idiota colocara as chaves no chaveiro brinde... e eu não vira...

- O senhor freqüenta motéis, doutor Fernando?

Eu o censuro com o olhar.

- Perdão, doutor Fernando. Perdão. Não queria ofendê-lo. Mas, ao periciarmos o carro, encontramos esse chaveiro... E, naturalmente, investigamos o motel... Apesar de toda a discrição, eles nos deram muitas informações. Não houve nenhuma alteração... O casal entrou, a placa do automóvel foi anotada, o casal foi visto sair... Bem, na realidade, eu queria apenas pedir-lhe para olhar algo que obtivemos além do chaveiro...

Repasso rapidamente os detalhes. Tudo bem planejado... tudo incinerado... Deus, o que será?

Ele puxa do bolso um papel. Parece uma foto. Aproximo-me. É realmente uma foto. De um homem. Do rosto de um homem. Com data e hora lançados.

- Sabe, doutor Fernando, esses motéis são realmente muito discretos. Mas têm seu serviço de segurança. Na saída, próximo à cancela, do lado do motorista, o porteiro chama: Cavalheiro, por favor e lhe entrega uma rosa e dois bombons. Ao voltar o rosto para receber esses brindes, uma pequena câmera, acoplada a um relógio digital, usando filme de alta sensibilidade, registra o rosto do motorista, dia, mês, ano e hora, e outra  de dentro da cancela  registra a placa. Veja só a foto, doutor Fernando.

Aproximo-me mais. Olho a foto. O whisky arde em meu estômago. E vejo o retrato de um homem. Obviamente sou eu!

Deus! É isso! O bigode que raspei! E lá estava ela... A cicatriz que meu bigode antes escondia... Pequena, mas visível... O homem olha para mim... Do gravador vêm os acordes da patética, soando forte... Ele parece ver a cicatriz sobre meus lábios... Eu raspara o bigode para me assemelhar ao...

- Doutor Fernando. Talvez o senhor queira me acompanhar.

A dor está aumentando. Coloco uma das mãos sobre o peito... sinto o chão falsear... a dor está aumentando...

- Doutor Fernando! Doutor Fernando! O que está sentindo?

Meus olhos passam rapidamente da foto para o homenzinho... A cicatriz... a cicat...

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- Chefe, o homem morreu de infarto.

- Quem, Gustavo?

- Doutor Fernando. O do carro queimado. Essa eu não entendi. Eu ia explicar a ele que o amiguinho da esposa estava com o rosto e as mãos todos queimados. Talvez a foto obtida no motel ajudasse. Sabe como é, esses milionários, em geral, conhecem os amantes das esposas. Agora, sem os dedos do cadáver e sem a dentadura, vai ser difícil identificar o cara. Mas veja como ele parece com o marido da dona... Pena esse risco que saiu na revelação, em cima da boca... Parece uma cicatriz... Cada uma... Pô, vou pro Médico-Legal, falou? Pode ser que reclamem o que sobrou do pinta.

 

Não sofreríamos males de amor

Nem desejaríamos a mulher do próximo...

.................................................

Tudo isso porque o senhor cismou

Em descansar não no sexto dia e sim no sétimo

E para não ficar com as vastas mãos abanando

Resolveu fazer o homem à sua imagem e semelhança

Possivelmente, isto é, muito provavelmente

Porque era sábado

(Vinicius de Moraes  O Dia da Criação)

 

 

 

 

           

 

 


Autor: Gil Ferreira


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