Febre



Ontem ficou ouvindo som o dia inteiro, e a única coisa que repetia era aquela ansiedade infernal a martelar o peito. Também tinha essa maldita febre, que ia e voltava, tomava-lhe o corpo de calor e depois o soltava castigado no sofá. Sua única certeza era a de sempre: não era diferente de ninguém. Não tinha nenhum talento. Não escrevia, não fazia canções, não era engraçado, não atuava, não era chefe de ninguém, não era popular. Era só mais um que passava despercebido na multidão quando andava no final de tarde pelas ruas do centro da cidade, naquele alvoroço de pessoas a se esbarrar, se tocar sem perceber, com olhares que se cruzam sem se demorar ou se entregar.

Essa febre o acompanhava a mais de uma semana, e começara justamente na hora em que a vira pela primeira vez, na padaria, servindo café e recolhendo copos, com uma lágrima grudada aos olhos sem que cliente algum percebesse. Só ele, do fundo de seu poço, do alto de sua angústia, captara a pequenina dor concreta de semelhante viagem.

Quando já saindo, deteve-se a sua frente e, como um cirurgião preciso, extirpou o minúsculo foco de tristeza de seu rosto com um toque de seu dedo. Como recompensa, ela segurou-lhe a mão entre as suas e o deixou afundar-se em sua alma transtornada, mostrando-lhe o quanto iguais eram.

Sem dúvida a febre que agora o consumia havia surgido desse encontro. E teria que reencontrá-la para, talvez, voltar a ser feliz.


Autor: Ldasq


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