Papai Noel não existe



Papai Noel não existe

Uma menina resolveu contar para a amiguinha que Papai Noel não existe. A amiguinha protestou desapontada e diante da insistência perversa da outra e pôs-se a chorar. Papai Noel ainda fez falta por algum tempo e aquela revelação cruel deixou uma pontinha de mágoa. A amizade ficou abalada por alguns dias. Risos debochados de uma e a birra incontida da outra foram se apequenando num cotidiano no qual cada revista com roupinhas de bonecas para recortar ultrapassava tudo em importância naquele impúbere universo feminino. Cresceram juntas recortando suas fantasias numa união inabalável que sobreviveu às tinturas nos cabelos para esconder a idade.
Essa historinha real ilustra o fim particular de uma das muitas historinhas falsas, falsamente necessárias, criadas pela nossa cultura para sombrear uma tradição antiga e atuar como mais um instrumento de convencimento e domínio. Forjaram-se falsos mistérios e segredos indizíveis que estariam muito além da compreensão do homem comum. Daí, prepará-lo desde cedo na contenção da própria inteligência, para que ele mesmo servisse de carcereiro dos próprios pensamentos, era garantia de uma dócil colaboração no processo de submissão social. Mas o que é o homem comum ou os "pequeninos", como gostam também de dizer?
Nunca conheci um desses. Como todos nós, quando embalados por ilusões, somos capazes de levar algum tempo para compreender alguma coisa, não me lembro de ter conhecido alguém tão comumente estúpido que não tenha compreendido absolutamente nada nessa vida. No entanto, para que a Humanidade estivesse num nível melhor de compreensão de si mesma, seria preciso que o interesse na difusão do conhecimento acumulado fosse maior do que os interesses de preservação dos feudos de ignorância. A idéia de manipular o conjunto sempre se sobrepôs a idéia de favorecê-lo. Gerando riquezas aos manipuladores que o gerenciavam, essa atitude criava ilhas de prazeres e facilidades num oceano de extremas dificuldades. Quanto maiores e mais complexos se tornavam esses conjuntos de indivíduos, maiores riquezas se acumulavam em benefício de uns poucos. A exploração do homem pelo homem é ancestral e continua ativa.
Seguindo esses exemplos, lembro-me, sim, de ter conhecido muita gente reservada que "não dá luz a cego"; "não ensina o pulo do gato"; "não põe azeitona na empada de ninguém" entre outros nãos exclusivistas. De um modo geral, a esperteza nunca foi menor do que a ingenuidade nas pessoas. A questão é que muitos se especializam na primeira modalidade e ninguém quis se especializar na segunda. Parece que o problema está aí. Por isso, o sucesso da ideologia que cultiva ilusões para "o Bem da Humanidade" não foi o esperado.
O receio dessa ideologia está no fato de que a capacidade de compreensão popular venha ultrapassar o limite do desejável para ela. Por exemplo: a platéia de um espetáculo de ilusionismo se programou para aquela noite. Enfrentou uma fila enorme e pagou um ingresso nada barato. A única ilusão que ela pode levar de casa é a de desvendar algum dos truques do ilusionista. A única promessa do ilusionista é a de uma perfeita ilusão. Naquela noite ninguém será enganado. Haverá uma ilusão consentida e o puro deleite de uma platéia deslumbrada. A perfeição do espetáculo é complementada pela perfeição deste acordo informalmente estabelecido entre o artista e o público pagante.
Mas quando não houve acordo algum e o público é enganado? Nesse caso, há uma inversão de valores que pouca gente percebe. Quando o Mal se faz passar pelo Bem, este é constrangido ao silêncio para não se passar por aquele. Ao contrário da menina que, inadvertidamente, se viu na obrigação cruel de esclarecer à amiga, na idade adulta, mais do que bons argumentos, é preciso habilidade no terreno pantanoso da quebra das ilusões. Dirigido a infância, esse método parte da premissa de que a crença em Papai Noel faz a criança ficar mais comportada e feliz na sua ilusão. O fato de ela ter dado menos trabalho aos pais quando pequena compensa sua futura decepção. É um recurso de criação que não traz prejuízo algum a criança, justificam-se os adeptos. Assim sendo, pode-se também concluir que, com a colaboração daqueles que elas mais confiam, as crianças aprendem que é possível mentir organizadamente.
Já na vida adulta é muito diferente. As desilusões têm um peso moral que não pode ser ignorado. No passado, necessidades de governo lançaram mão de recursos que se assemelham ao Papai Noel das crianças. "Não é possível se enganar a tanta gente por tanto tempo!" Protestam alguns com ressentimento. No entanto, é o que mais acontece. A mentira organizada há muito criou raízes e aspira pela perfeição. A impressão que dá, é que creditavam que quando a Humanidade atingisse a idade adulta compreenderia a boa intenção da ideologia da crença. O problema é que essa idade não chega nunca, tampouco desejam vê-la chegar antes do seu domínio cultural absoluto (Ocidental ou Oriental). Quanto mais se prolonga essa infância, melhor para os que se beneficiam dela.
O estelionato espiritual é tido como benigno porque promove, em termos, certa paz social e progresso econômico e financeiro. Todavia, esse clima de paz e prosperidade não se estende, nem no sentido figurado, ao âmbito político-religioso: o objetivo das grandes religiões sempre foi simplesmente devorar as anãs e, por fim, uma a outra. A dificuldade está na aspiração de ambas o domínio mundial e não na alegada ignorância do homem comum. Motivo do relativo sucesso delas em suas pretensões universalistas é porque acabam se contradizendo em tudo que pregam. Depois dos choques provocados a miúdo, a hipocrisia do ecumenismo religioso não consegue ocultar a difícil realidade da verdadeira intenção. No Oriente, o cristianismo jamais deixou de investir no seu proselitismo. No ocidente, a crescente e agressiva penetração islâmica começa a preocupar. Se não respeitam seus espaços irão respeitar o quê?
O historiador Arnold J. Toynbee havia previsto este confronto cultural para o século XXI. Parece que ele acertou na mosca. Nessa disputa, primeiro, são os inocentes que mais têm a perder. Portanto, não se trata de um assunto a ser apreciado do ponto de vista filófico-religioso, como muitos insistem com um pedantismo intelectual que não serve para nada. Enquanto vidas podem ser salvas, melhor abordá-lo diretamente. Chega de rodopios e contemporizações inúteis. Faz-me lembrar o atentado contra a WTC naquele carregado 11 de setembro de 2001. Religiosos de todas as crenças ocuparam um tempo generoso na mídia para esclarecerem absolutamente nada. Protegeram suas convicções ou o grupo ao qual pertencem e nada mais.
Será que a fantasia religiosa continua sendo a melhor opção? Estou convencido que não. O esvaziamento desse tipo de ideologia há de ser o princípio do fim dessa infância constrangida e constrangedora e o início de novas etapas de dias melhores que não chegaremos de ver. Hoje e agora é o momento de se protestar pelo amor ao próximo, considerando a linha do tempo, acima do amor a crença. Sim, esvaziar é a palavra. Esvaziar a farsa milenar por intermédio da história é, também, livrar esta disciplina de um descarado e antigo favorecimento ideológico. Como ciência, o papel da história deveria ser o de posicionar corretamente os ditos textos sagrados no contexto das experiências humanas, e não deixar-se enredar por eles. Religiosos, inclusive, concluíram pela inautenticidade de muitos destes consagrados relatos da história da religião.
Não dá para sair incólume dessa infância, crescer dói.

Autor: Ivani De Araujo Medina


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