Política dos Autores no Cinema



Introdução.
O presente trabalho é baseado na leitura que tive do livro Revisão Crítica do Cinema Brasileiro de Glauber Rocha. Neste livro, Glauber traça a história do cinema brasileiro segundo sua visão e de uma forma assumidamente crítica e parcial. Ele o faz segundo a política dos autores, como o precisa na introdução: "Na tentativa de situar o cinema brasileiro como expressão cultural, adotei o ?método do autor? para analisar sua história e suas contradições; o cinema, em qualquer momento de sua história universal, só é maior na medida dos seus autores". (Rocha, 2003:36) Desta forma, Glauber irá prestigiar e muito o cineasta Humberto Mauro, depreciar totalmente o cinema burguês paulista, desleixar o filme Limite de Mário Peixoto sem mesmo o ter visto? Tudo isto numa postura claramente militante e seguindo o tal do ?método do autor? que, segundo Glauber, tem em André Bazin "o seu primeiro pensador" (irei verificar, em minha pesquisa sobre o assunto, que isto é questionável).
Sendo muito pouco o conhecimento que tenho sobre história do cinema brasileiro e não tendo assistido à maioria dos filmes comentados por Glauber em seu livro, não tive outra opção do que a de aceitar sem comentários os seus relatos. Na tentativa de compreender melhor o que eu lera, voltei-me então para a pesquisa da metodologia que ele usara para escrever o livro. Metodologia esta que, como vimos, está indicada na própria introdução e consiste no "método do autor". Por sinal, Revisão Crítica do Cinema Brasileiro é considerado pelo teórico Jean-Claude Bernardet "uma espécie de manifesto de cinema de autor no quadro do Cinema Novo" (Bernardet, 1994:139) por ser onde mais claramente ele se posicionou e discorreu sobre o assunto.
Minha primeiro constatação foi a de que não se fala usualmente em um ?método do autor? mas sim, na maioria dos casos, numa ?política dos autores?. Pus-me a pesquisar sobre a política dos autores e o resultado de minha pesquisa está concentrado neste trabalho. O tronco de minha pesquisa foi extraído do livro O autor no cinema de Jean-Claude Bernardet, publicado pela Editora Brasiliense.

Política dos autores.
A política dos autores é um movimento teorico da crítica cinematográfica lançado na revista francesa Cahiers du Cinéma em 1955 pelo então jovem crítico François Truffaut. Consiste, muito resumidamente, em atribuir ao diretor de cinema o status de autor do filme. Uma rápida navegada na internet nos traz as seguintes definições para a palavra "autor": "Aquele que inventa ou é causa primeira de uma coisa" (Priberam), "Aquele de que alguém ou alguma coisa nasce ou procede", "Escritor de uma obra literária, científica ou artística" (Michaelis), "é aquele a quem se deve uma obra" (Wikipédia Brasil)? Para o espectador comum de hoje em dia, a associação dessas definições com a figura do diretor de cinema parece coisa muito natural. No entanto nem sempre foi assim. Vejamos por que.
Ao meu ver, duas coisas iam contra a atribuição autoral ao diretor. Em primeiro lugar a herança direta que se tinha do teatro, onde a dramaturgia tinha um peso quase totalizante em relação ao valor da obra. Fala-se muito menos dos diretores que encenaram peças como Hamlet e Fausto do que dos autores dos textos. Somente a partir do século XX encenadores teatrais passam a ter maior relevância histórica e, mesmo assim, muitas vezes embasados em suas próprias dramaturgias como é o caso de Bertold Brecht. A própria definição de autor, como o vimos acima, acaba passando por um conceito muito ligado à literatura. Nesse sentido, no âmbito do cinema, muitas pessoas vão defender, seguindo a tradição teatral, que é o roteirista o autor do filme. Assim o faz Delluc, em 1918. Ou ainda Henri Diamant-Berger em 1919 quando disse: "O roteiro é o filme em si. É, escrito, o filme tal como será impresso na película. É um erro pensar que o filme seja o desenvolvimento do roteiro, que o roteiro contém a matéria bruta do filme e que é tarefa do metteur-en-scène extraí-lo e comentá-lo conforme a sua personalidade. Ao autor do roteiro cabe a responsabilidade do filme. Há metteurs-en-scène que colaboram com o autor. É legítimo, mas isto deve ocorrer antes da execução e ser discutido com o autor. O autor deve ser obedecido; para tanto, deve acompanhar a execução do seu roteiro a fim de que sejam respeitadas as suas intenções".
O segundo aspecto que impedia a idéia de autoria do diretor era o sistema de produção cinematográfica, em sua grande maioria inserido num contexto comercial controlado pelos produtores. Esta situação aniquilava as possibilidades de liberdade criativa por parte do diretor, que se via impelido a realizar o filme segundo os moldes que os produtores achavam mais sucetíveis de sucesso. Este esquema tem em Hollywood seu maior exemplo. Neste quadro, o diretor se vê resumido a funcionário de uma produção cujas bases estão longe de se sustentar nele.
Mas em que consiste precisamente a política dos autores?
É importante estabelecer que a política dos autores é antes de tudo uma postura crítica. Em seu exercício, ela delega ao diretor de cinema a autoria total sobre o filme: O filme está para o diretor assim como o livro para o escritor. O diretor realiza o filme segundo sua subjetividade e expressa quem ele é pelo filme. "O autor é um cineasta que se expressa, que expressa o que tem dentro dele." (Bernardet, 1994:22) Isso não quer dizer que o filme autoral trate, em seu enredo, da vida interior do diretor. Como aponta Bernardet, há um esforço real do diretor no sentido de tornar o filme um espetáculo, tirando-lhe os traços subjetivos. Mas o que os adeptos da política defendem é que em todo filme de um determinado diretor se pode identificar traços comuns e individuais do diretor. Seja na forma de filmar, seja na forma de montar o filme, seja numa temática recorrente ? nos casos onde o diretor também é autor do roteiro ? ou seja: na mise-en-scène do filme, há um conjunto de significados que são gerados e que é recorrente em todos os filmes do autor. Esse conjunto de significados pode ser chamado de "a temática" do autor, ou ainda sua "moral" (termo recorrente no movimento da Nouvelle Vague). Os teóricos Chabrol/Rohmer o chamam de "idéia-mãe". Jean-Claude Bernardet de "matriz". É algo que permeia todos os filmes do autor independentemente dos enredos ou gêneros diferentes que eles possam assumir. É algo que está além da experiência única de um filme e se encontra no conjunto da obra do autor. O diretor/autor não precisa necessariamente ser autor do roteiro, desde que este lhe dê subsídio para operá-lo segundo sua "moral", sua filosofia.
O trabalho do crítico segundo a política dos autores é, mais do que analisar individualmente tal ou tal filme, evidenciar no conjunto da obra de um autor sua matriz. Tarefa árdua visto que esta matriz não é já sabida de princípio pelo próprio autor. Porque o autor não constrói sua matriz: ele a descobre. É preciso percorrer um caminho de vários filmes para finalmente encontrá-la e estabelecer uma homogeinidade em sua obra. É como se, desde seu primeiro filme, já estivesse latente o que lhe é característico mas não estivesse completamente revelado ainda. Seus filmes doravante estarão sempre se aproximando do que Bernardet chama de um "arquefilme". Conceito um tanto quanto platônico para designar o filme por excelência de um determinado diretor. Como se existisse um modelo de filme que agrupasse todas as tendências do autor, que ele acaba emprestando a todos os seus filmes com mais ou menos intensidade durante sua carreira. Atingindo finalmente sua ?maturidade?, o autor e sua obra formam um conjunto coeso que serve, para o crítico, para analisar todo o conjunto de suas obras. Assim, a análise dos últimos filmes de um diretor ? já mais coesos com o próprio diretor ? ajuda a compreensão de seus primeiros filmes, que ainda estavam tateando, procurando expressar o que lhes era inerente mas não estava claro. É como se o diretor só realizasse um único filme várias vezes na vida. Cada um com roupagens diferentes.
O autor nem sempre tem consciência da relação íntima que seus filmes têm entre si. Ele não planeja esta coherência e nem está forçosamente em busca dela. Ao crítico, seguindo a política dos autores, é que cabe analisar e perceber esta relação, que aguça sua capacidade crítica sobre o conjunto da obra. Desta forma, o processo de valorização de um filme por parte do diretor e do crítico é diferente. O diretor, pelas mais diversas condições, pode detestar um filme seu individualmente enquanto que o crítico o apreciará, mesmo apontando sua falhas, no contexto do conjunto de sua obra. Podemo pegar um exemplo apontado por Bernardet: o de Dreyer. Os críticos estabelecem uma relaçao entre seus dois filmes Dois seres e Gertrud. Dreyer não aceita de forma alguma: ele despreza Dois seres. Isto porque os produtores lhe impuseram diversos fatores (como escolha de atores diferentes do que ele queria) que arruinaram suas pretensões em relação ao filme. Daí seu desprezo. " ?É um filme completamente frustrado?, afirma. Mas os críticos não se interessam tanto pela materialidade do filme quanto pelo que podem deduzir em termos da elaboração da matriz". (Bernardet 1994:41)
Para concluir, a seguinte frase de François Truffaut resume bem a necessidade de uma política dos autores: "Nécessité de la politique des auteurs : André Bazin aime beaucoup Citizen Kane, les Amberson, un peu La Dame de Shanghai et Othello, guère Voyage au pays de la peur et Macbeth, pas du tout Le criminel. Sadoul aime assez Kane et les Amberson mais pas du tout Voyage au pays de la peur et Macbeth. Qui à raison? Malgré le respect que je porte à Cocteau, Bazin et Sadoul, je préfère me ranger à l'avis d'Astruc, Rivette et tutti quanti qui aiment sans distinction tous les films de Welles pour ce qu'ils sont ; des films de Welles". Isto quer dizer, tratando-se de Orson Welles: André Bazin gosta muito de Cidadão Kane e não gosta muito de Jornada de Pavor e Macbeth enquanto que Sadoul gosta razoavelmente de Cidadão Kane mas não gosta nem um pouco de Jornada de Pavor e de Macbeth. Então quem está certo? Truffaut prefere gostar de todos os filmes de Welles pelo que eles são: filmes de Welles. Ou seja: é uma busca por apreciação do estilo pessoal de Orson Welles, que em todos os seus filmes será encontrado, a despeito dos mais diversos problemas que podem ser encontrados em cada filme. Admira-se o autor e por extensão a sua obra. São seus traços particulares, que permeiam todos os seus filmes, que são objetos de apreciação.
A política dos autores segundo Glauber Rocha e considerações finais.
Não há muito o que se deduzir da posição de Glauber Rocha em relação ao cinema de autor: ele se faz muito claro quanto a isso. Segue uma transcrição de sua definição pessoal de "cinema de autor", que se revela um tanto quanto diferente da concepção original dos críticos franceses, visto que se torna mais específica.
"Se o cinema comercial é a tradição, o cinema de autor é a revolução. A política de um autor moderno é uma política revolucionária: nos tempos de hoje nem é mesmo necessário adjetivar um autor como revolucionário, porque a condição de autor é um substantivo totalizante. Dizer que um autor é reacionário, no cinema, é a mesma coisa que caracterizá-lo como diretor do cinema comercial; é situá-lo como artesão; é não ser autor. (?) O autor é o maior responsável pela verdade: sua estética é uma ética, sua mise-en-scène é uma política. Como pode então, um autor, olhar o mundo enfeitado de maquilage, iludido com refletores gongorizantes, falsificado em cenografias de papelão, disciplinaod por movimentos automáticos, sistematizado em convenções dramáticas que informam uma moral burguesa e conservadora? Como pode um autor forjar uma organização de caos em que vive o mundo capitalista, negando a dialética e sistematizando seu processo com os mesmos elementos formativos dos clichês mentirosos e entorpecedores? A política do autor é uma visão livre, anticonformista, rebelde, violenta, insolente". (Rocha, 2003:36)
Decidi também colocar a concepção de cinema de autor por Glauber Rocha pois, embora um tanto quanto diferente, ela reforça algumas observações que eu tenho da original. Vejamos quais são.
É irrefutável que a realização de um filme requer a participação de uma grande quantidade de pessoas, que irão todas contribuir para o resultado final da obra, cada uma colocando um pouco de seu toque pessoal. Parece-me impossível querer atribuir a apenas uma pessoa os louros da realização. Certo haverá uma coordenação dirigida do projeto que irá contemplar os interesses de alguém em detrimento de outro. Mas não se pode querer pretender que alguém, num filme, tem a liberdade, a independência e o poder que um pintor tem diante de sua tela. Isto porque a natureza da arte da pintura é diferente da do cinema, essencialmente coletiva. Esse poder, não o tem por completo o produtor no cinema comercial, como também não pode o haver o diretor num esquema de ?cinema independente?. Falo em ?poder? porque afinal é disso que se trata a política dos autores: atribuir ao diretor o poder total sobre a obra. O que me parece mais, no final das contas, uma reação contra o poder dos produtores, muito em evidência no cinema hollywoodiano, e, por extensão, contra um sistema essencialmente capitalista. É basicamente uma reação de esquerda em busca de poder. Isto é plenamente reforçado por Glauber Rocha, que declara explicitamente que o autor é um agente revolucionário contrário ao sistema capitalista (coisa que não foi necessariamente dita pelos críticos franceses).
Quero neste momento deixar claro que estou falando da política dos autores justamente como "política". O que remete forçosamente a uma análise de poder. Um método crítico para se analisar filmes baseado nas tendências pessoais do diretor é uma coisa. Outra é querer atribuir o poder que se tem sobre o filme a um em detrimento do outro. Enquanto que a primeira existe como desenvolvimento da esfera artística, a segunda se ve limitada a uma discussão política de ideais. Fico com a primeira.
Autor: Henrique A G Vieira


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