Debate Após o Advento do Som no Cinema



UNIVERSIDADE FEDERAL DE PERNAMBUCO
CENTRO DE ARTES E COMUNICAÇÃO
DISCIPLINA: HISTÓRIA DA TRILHA SONORA
PROF.: RODRIGO CARREIRO

"O debate após o advento do som no cinema"


Este trabalho foi realizado por:
Henrique Vieira (Andrade Gerlack).

RECIFE / 2009

O cinema é uma arte audiovisual e, no entanto, nem sempre foi considerado como tal. O advento do cinematógrafo, primeiro aparelho a registrar e projetar num anteparo séries de fotogramas criando a ilusão de movimento, não veio acompanhado de um mecanismo de reprodução de som. Não que a idéia não existisse. O fonógrafo, aparelho que registrava e reproduzia sons, já havia sido inventado em 1877, dezoito anos antes do surgimento do cinematógrafo. E Thomas Edison, seu inventor, já falava, em 1887, na invenção de um mecanismo que unisse a reprodução auditiva à visual de forma sincronizada. Mas não havia, ainda, desenvolvimento técnico o suficiente para tal. Nos primeiros anos, tentou-se fazer o cinema falar de diversas formas. Desde a utilização do fonógrafo (um fracasso pois as vozes dos atores não ficavam sincronizadas com as imagens) até o uso de verdadeiros atores que ficavam por trás das telas, dublando o filme. Quanto à musica e aos efeitos sonoros, logo apareceram orquestras que acompanhavam as sessões cinematográficas, complementando as imagens. Fica clara, desde cedo, a intenção de se juntar o som sincronizado com a imagem no cinema e que só foi frustrada no princípio pela falta dos meios técnicos adequados.
E, no entanto, quando em 1927 inaugurou-se o cinema sonoro, no mundo inteiro eclodiram protestos no meio cinematográfico contra o uso do som nos filmes. A despeito do grande sucesso popular que o som trouxe, no meio intelectual: alguns apoiavam, outros muitos tinham ojeriza e temiam o cinema falado. Aqui no Brasil, é por meio de revistas sobre cinema que a discussão aconteceu. Como aponta Fernando Morais da Costa em sua tese "O Som no Cinema Brasileiro", no segundo número da revista O Fan, Octávio de Faria vai dizer: "O cinema é a arte do preto e branco. Arte muda. Arte dinâmica. Arte visual. Não admite colorido ? da vida real. Não admite a palavra ? do teatro. Não admite o canto ? da ópera." Dirá ainda, no mesmo artigo: "em uma palavra, o filme falado é um erro. (?) é o maior inimigo que o cinema já teve até hoje". Dirá que a palavra traz uma indesejada "aproximação com o teatro. A volta à teatralidade" (O Fan, n. 2, outubro de 1928, p.3).
A visão dos jovens críticos da revista O Fan era reflexo da de seu ídolo, Charlie Chaplin, que foi um árduo opositor do cinema falado. Enquanto que todos os estúdios de Hollywood correram em direção à novidade tecnológica que atraía multidões às salas, o de Chaplin se manteve fervorosamente na produção de filmes mudos (só passaria a fazer cinema falado com a realização de O grande ditador em 1940, treze anos depois do advento do sonoro). Disse Chaplin sobre o cinema falado em uma entrevista ao jornal argentino La nación: "A voz rompe a fantasia, a poesia, a beleza do cinema e de seus personagens. Os personagens de cinema são seres de ilusão, e sua natureza deriva precisamente do silêncio em que vivem. Imagine você qualquer das atrizes que conhecemos falando na tela. Que desastre, meu Deus! As atrizes não devem falar, devem ser belas, nada mais é calar a boca. Porque as atrizes servem quando não são inteligentes. Ou quando são muito inteligentes. Porém, isso é uma exceção raríssima e, ademais, pouco desejável". Suas alusões machistas são tão retrógradas quanto o é sua visão sobre o uso do som (e, mais especificamente, da palavra) no cinema.
O som nos dias de hoje não parece mais estar dissociado do produto cinematográfico. No entanto, o teórico Rick Altman aponta para dois erros, que ele classifica "seminais", existentes nas primeiras abordagens teóricas sobre o som no cinema e que persistem até hoje. O primeiro deles consiste na hierarquização dos elementos visual e sonoro pela questão cronológica. O som, por ter aparecido mais tarde, só estaria ?acrescentando? algo a mais à imagem, que já estava lá a princípio e é merecedora de toda a importância. Neste caso, não se vê o som e a imagem como elementos conjuntos na construção do filme. Não se está tratando, pois, de uma arte audiovisual. Como diz Fernando Morais da Costa em seu artigo A inserção do som no cinema: "Se historicamente o som foi adicionado à imagem, a teoria e análise filmícas colocam-no até hoje em segundo lugar como fenômeno inscrito nos filmes, pensando a imagem antes. Projetam a sombra de um fato histórico para as relações entre som e imagem intrínsecas a cada filme" (COSTA, A inserção do som no cinema, p.15).
O segundo erro, segundo Altman, teve origem na tentativa de dissociar o cinema do teatro ? ao qual o cinema estava sendo remetido com o surgimento do som ? e consiste em considerar a imagem como sendo a essência do cinema, "relegando ao som o papel de artífice da impureza na matéria fílmica". (COSTA, A inserção do som no cinema, p.16). Grandes teóricos do cinema ? dentre eles o nome de Sigfried Kracauer ? seguem essa linha, que mede o cinema segundo o critério imagético. "Para eles (os teóricos), falar sobre a linguagem cinematográfica em seu estado puro seria tratar da imagem" (ALTMAN, 1985, p.52). Como foi dito, isto estaria numa tentativa de dissociar o cinema do teatro, visto que as primeiras experiências do cinema falado estavam muito relacionadas ao fazer teatral. Seguiu-se daí o desprezo de muitos à presença do som no cinema. Mas, como indica Costa: "É quase desnecessário dizer que era aquela uma batalha contra o alvo errado. O vilão a ser combatido não deveria ser o som nos filmes, e sim a utilização teatral da voz, que devido à sua onipresença nos primeiros filmes falados norte-americanos foi tomada não como um dos elementos constituintes da matéria sonora dos filmes, mas confundida com a totalidade dessa matéria" (COSTA, A inserção do som no cinema, p.16)
Não é somente a luta contra a teatralidade que explica a primazia da imagem sobre o som. Como indica Costa, Marshall McLuhan já falava sobre a preponderância da visão nos processos comunicacionais da sociedade ocidental, em sua relação dialética com outro dos sentidos, a audição. O que ele diz é que, num estágio inicial da civilização, a audição era o principal dos sentidos pois por ela era viabilizada a comunicação entre as pessoas. Com o surgimento do alfabeto fonético, a primazia da comunicação oral se viu ferida, favorecendo o símbolo visual. McLuhan diz que com o advento do alfabeto escrito, ocorre a inevitável "redução do papel dos sentidos do som, do tato, do paladar em qualquer cultura letrada" (in COSTA, , A inserção do som no cinema, p.4). Ele chama ainda a atenção para a limitação que impõe a linguagem escrita, por sua forma estática de gerar significados, em relação ao dinamismo da linguagem oral. Com o advento, na Idade Média, da palavra impressa, de Gutemberg, e a instauração da perspectiva na pintura, atribuída a Van Eyck, na Holanda, McLuhan vai dizer que, a partir da Idade Média, "o som perde muito em importância na Europa Ocidental" (in COSTA, , A inserção do som no cinema, p.5). "A partir daí, ?ver é acreditar?, enquanto em outras culturas o ouvido continuava a ser o principal órgão de recepção" (idem).
Desta "cultura da visão" estabelecida no mundo ocidental, surgiram diversas tentativas de entretenimento ligados à imagem, como a lanterna mágica, a câmera escura,? Esses aparelhos estão na origem da invenção da fotografia e, subseqüentemente, do cinema. É compreensível, então, que a visão geral que se tivesse do cinema, em seus primórdios, fosse atrelada diretamente à imagem e que alguns negassem a participação do som em seu processo. Isto não nega a observação de Altman quando diz que foi na luta contra a teatralidade que a imagem saiu preponderante à luz dos teóricos da época, apenas corrobora para a compreensão da situação em que tudo isso se deu.
A imagem, nos primeiros trinta anos do cinema, dominou a cena, relegando ao acompanhamento sonoro uma função menor do que a "atração principal". Quando se conseguiu imbutir som às imagens, foi todo o paradigma do cinema, em sua forma e conteúdo, que foi quebrado. Aceitar essa mudança se revelou um processo penoso para muitos, que viam o velho modelo de sua paixão desmoronar. Não era só uma questão de conservadorismo. Havia medo no passo que o cinema estava dando. Atores que falam só existiam no teatro, arte à qual o cinema primeiro se pareceu, quando os filmes não passavam de filmagens estáticas (a câmera não se movia) de encenações teatrais. Foi somente com o tempo que a câmera começou a se deslocar, que os primeiros conceitos de montagem começaram a aparecer e começou-se a falar em uma identidade própria para o cinema. Uma identidade que defendia seu status de arte, que muitos negaram, tratando o cinema como simples diversão popular. Foram muitos embates para firmar o cinema como arte e, mais que isso: como arte autônoma. Sem o peso das outras artes às quais podiam remetê-lo. Quando se instala o som nos filmes, a semelhança com a arte teatral e a possibilidade de voltar a assimilá-los é de novo colocada em questão, o que faz tremer os antigos militantes em prol do cinema como arte autônoma. É nessa hora que radicaliza-se: "O som é um erro! O maior inimigo que o cinema teve até hoje!"? Acentua-se a valorização aos elementos cinematográficos desenvolvidos até então: Todos imagéticos, claro. Poucos foram aqueles que, ao invés de execrar logo de início o som, tentaram ver o grande potencial de desenvolvimento que ele oferecia à arte cinematográfica, mantendo sua autonomia. Alguns deles são: Sergei Eisentein, Pudovkin, René Clair e também o brasileiro Alberto Cavalcanti, que defendiam que o cinema devia usar o som "de forma que o novo elemento viesse a acrescentar novas possibilidades narrativas" (COSTA, , A inserção do som no cinema, p.14).
É importante, a essa altura, ressaltar que esses embates todos sobre o advento do som giravam em torno principalmente dos teóricos e críticos de cinema. A verdade é que essas discussões passaram longe da grande maioria da população, que, desde o início, se viu deslumbrada com a novidade tecnológica que lhe era oferecida (a não ser sobre a questão do idioma nos países de língua não-inglesa sobre a qual trataremos mais adiante). Inclusive, é interessante notar como atrapalhava alguns críticos o fato do cinema se tornar cada vez mais popular com o uso do som. Como se se quisesse manter uma certa "aura artística" do cinema que não seria permitida de ser fruída por qualquer um. De outro lado, alguns críticos temiam justamente o contrário: que a popularidade do cinema caísse por conta do problema do idioma. Até então os filmes eram universais pois não se viam limitados pela barreira da língua. Num dos números da revista Cinearte, uma outra revista brasileira sobre cinema da época, está escrito: "A popularidade do cinema vem justamente de ser o filme igualmente compreensível, acessível a todos os povos (?) no dia em que tivermos o filme falado, essa popularidade tenderá a desaparecer" (cinearte, 19 de setembro de 1928, p.3). É preciso entender que nessa época a grande maioria dos filmes exibidos no Brasil (e também no mundo) eram americanos, que já tinham dominado o mercado internacional após a primeira guerra mundial. Daí a preocupação com o que ia acontecer quando os filmes começassem a ser falados. Alguns viram nisto a grande oportunidade de alavancar a indústria nacional, que andava tão fraca. Não aconteceu. O cinema americano estava por demais fincado para perder seu espaço. E o abismo tecnológico entre a produção nacional e americana se fez marcante nas primeiras experiências com o sonoro no Brasil. O povo brasileiro não deixaria de ver filme americano.
Mas aí surge o problema: como iria ser feita a tradução dos filmes para que pudessem ser compreendidos? A dublagem apresenta um claro problema de sincronia, elemento, como vimos, tão importante para a associação sonora no cinema. Além de fugir naturalmente da concepção original do filme. Se ela é utilizada hoje em dia é muito mais como opção de conforto para o espectador despreocupado com a essência do filme. A melhor forma que se teve para traduzir um filme fielmente, tentando manter sua concepção original, é o uso da legenda. Mas não é sem problema que ele se faz. Segundo José Gatti, a adoção das legendas pelo público brasileiro fez com que ele tivesse que passar por um "processo de reeducação. A leitura dos diálogos ao pé do quadro veio a conformar um estilo nacional de se ver cinema: os espectadores lêem o texto para depois escrutinarem o resto do quadro ? se tiverem tempo para tanto" (in COSTA, O som no cinema brasileiro, p.97). É a volta para um foco visual da fruição do filme que leva à pergunta "ver ou ler cinema"? É natural que nesse processo haja perda do aproveitamento sonoro do filme. O espectador se preocupa menos em escutar do que "ler" o filme. E a participação do som acaba sendo relegada à segunda posição, após a imagem. É numa espécie de impasse que ficamos quanto a isso. A solução talvez estivesse em se voltar para a produção nacional, à qual se está menos acostumado do que à produção americana.
Foram apontados aqui alguns elementos das argumentações que giraram em torno da discussão sobre a validade do som no cinema, coisa que hoje parece praticamente indiscutível. O som se consolidou no cinema apesar do estardalhaço provocado no meio intelectual, e nunca deixou de agradar ao grande público. Constitui hoje um elemento imprescindível para a construçaõ de um filme.
Autor: Henrique A G Vieira


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