VOZ DOS EXCLUIDOS EM "BECOS DA MEMÓRIA"



A VOZ DOS EXCLUÍDOS EM "BECOS DA MEMÓRIA"

Edilson Gomes COSTA (UNIANDRADE, Curitiba)


RESUMO: Para Bernd (1988), a existência de um discurso ficcional do negro está condicionada à definição da imagem que o negro possui de si mesmo e da consolidação desse processo, buscando assumir-se como sujeito da enunciação. "Reconstruir-se" pressupõe apropriar-se da própria história, recuperando-a num processo memorialístico da oralidade ancestral, pois a identidade do indivíduo, segundo Hallbwachs, se constrói a partir de experiências. Assim, através da análise da obra Becos da memória, da escritora Conceição Evaristo e à luz das teorias de Hallbwachs sobre memória coletiva, demonstraremos que, nessa obra, há o aflorar de um "eu-que-se-quer-negro", rompendo com uma ordenação anterior que o condenava a ocupar a posição de objeto - daquele de quem se fala. Que a narradora rejeita uma identidade atribuída a si e aos seus pelo "outros", alheios à comunidade, desafiando-se a assumir as rédeas de seu destino histórico, através da educação e do exemplo recebido - quer ser aquela que fala.

PALAVRAS-CHAVE: Literatura; Becos da memória; Memória coletiva; identidade negra.



INTRODUÇÃO
As classes dominadas não falam, fala-se delas.
Pierre Bourdieu

A "palavra é dada" a eles ? ou seja, tomada deles para ser transformada em escrita.
Philippe Lejeune


No texto "A autobiografia dos que não escrevem", Philippe Lejeune afirma que "escrever e publicar a narrativa da própria vida foi, e continua sendo, um privilégio reservado às classes dominantes" e que o silêncio das classes dominadas parece natural, uma vez que "a autobiografia não faz parte da cultura dos pobres". Ao analisar o processo em que escritores colaboradores (nègres) se apropriam de relatos de vidas narrados por fontes de classes populares, o autor levanta algumas questões referentes à autoria e à classificação desse tipo de produção. Seria autor aquele que compila e escreve ou "a pessoa que vivera aquela vida suficientemente dolorosa ou exemplar para ser apresentada ao público"? (LEJEUNE, 2008, p. 115).
Decompor, analisar e classificar um texto essencialmente autobiográfico e que se afirma não-ficcional, mas cujo autor não viveu as experiências descritas, é um ato difícil e complexo. Que dizer então, de uma obra como Becos da Memória, que se pressupõe ficcional, mas que a autora afirma, na introdução, ser uma homenagem póstuma aos "homens, mulheres, crianças que se amontoaram dentro de mim, como amontoados eram os barracos de minha favela", àqueles com quem vivera e partilhara experiências no passado? Por ser uma obra ficcional que se ampara nas recordações das vidas alheias, nos depoimentos, que são reconstruídos através da re-memorização daqueles de cujas vidas extraiu os relatos apresentados de forma romanceada, poderíamos classificá-la como autobiográfica? Cabe também questionar, que distinção se faz do real (autobiográfico) dentro do ficcional e até que ponto as memórias individuais da autora, que ao reconstruí-las se apropria das memórias coletivas do seu grupo, são exclusivamente individuais.
Explicar a memória, essa matéria efêmera e inconsistente; considerar sua confiabilidade na construção de narrativas de vidas; dar a ela uma dimensão intermediária entre natureza e espírito, corpo e mente, indivíduo e sociedade; são questões simples, assim como outras mais complexas, que têm sido formuladas ao longo da história do homem e despertaram a curiosidade de grandes pensadores. Para Santo Agostinho, a memória é "como o ventre da alma", é onde "estão tesouros de inumeráveis imagens trazidas por percepções de toda espécie". Muitos séculos depois, o filósofo Henri Bergson, procurando responder a esta mesma questão, afirmou que a memória seria o "lado subjetivo de nosso conhecimento das coisas". Halbwachs, por sua vez, optou pelo estudo de quadros sociais para explicar a memória, procurando uma alternativa não só à abordagem filosófica de Bergson como também à de diversos pensadores de sua época, como James Joyce, Marcel Proust, William James e Sigmund Freud, que estavam todos, à sua maneira, voltados para a memória como meio do conhecimento.
Este artigo, não pretende discorrer sobre a memória, utilizará apenas algumas das contribuições deixadas por Halbwachs - em sua análise sobre memórias coletivas ? como recurso para explicar a estrutura da obra analisada neste trabalho: Becos da memória, de Conceição Evaristo. Seu objetivo é avaliar até que ponto somos atores sociais, senhores absolutos no controle de nossos comportamentos, nosso passado e nossas identidades; como a memória individual, ao se reconstruir, apropria-se da memória coletiva e como essa memória coletiva auxilia no processo de construção da identidade individual, pois, conforme Halbwachs, a memória individual está amarrada à memória do grupo, que por sua vez, está atrelada à esfera maior da tradição, que é a memória coletiva de cada sociedade.
Para tal, valer-se-á, também, dos estudos de Philippe Lejeune sobre a escritura das histórias de vidas em "A autobiografia dos que não escrevem", dos que se mantêm excluídos numa sociedade eminentemente letrada e do artigo "Memória, Esquecimento, Silêncio", do sociólogo austríaco Michael Pollak, além de sua conferência "Memória e Identidade social", que trata dos elementos constitutivos da memória, individual e coletiva, e da sua ligação com a identidade social.


1. PELOS BECOS DA MEMÓRIA COLETIVA
Somos sempre vários quando escrevemos,
mesmo sozinhos, mesmo nossa própria vida.
Philippe Lejeune

O sociólogo Maurice Halbwachs foi um dos autores que mais contribuiu para a compreensão do significado da memória coletiva. Viveu em Paris no início do século e foi um profundo conhecedor do debate filosófico da época. Após sua formação acadêmica inicial como discípulo de Bergson, debruçou-se sobre os trabalhos não publicados de Leibnitz. Mais tarde, renunciou completamente às assertivas filosóficas de seu tempo e procurou uma nova inspiração teórica no trabalho do sociólogo Émile Durkheim, de quem se tornou colaborador. O primeiro trabalho acadêmico por que ficou conhecido foi sobre classes sociais, onde já defendia o argumento de que a identidade atribuída a trabalhadores não poderia ser apontada apenas a partir da forma de inserção de determinados grupos sociais na atividade econômica.
Desde sua nomeação como professor da Universidade de Strasbourg, Halbwachs dedicou-se ao estudo da memória e foi, de fato, o primeiro scholar a enfatizar o caráter social da memória. Há 70 anos, ele já afirmava que tudo o que lembramos do passado faz parte de construções coletivas do presente. Dessa forma, tornou-se uma referência clássica no que se refere ao tema da memória, pois suas proposições passaram a ser utilizadas como ponto de partida para expressivas reflexões, acompanhando o crescente interesse pela memória como campo de investigação.
Na obra La mémoire collective (A memória coletiva), publicada em 1950, após sua morte no campo de concentração de Buchenwald, ele apresenta a memória como um fenômeno social, examina e discute a reconstrução das lembranças pensando no âmbito das relações sociais e dos grupos de convívio. Nessa obra, o autor busca compreender a memória individual considerando o indivíduo como um ser social, integrado em meios sociais que conformam sua percepção acerca dos acontecimentos vistos e/ou experimentados. Questiona, ainda, se a memória individual pode bastar-se ou se necessita da memória dos outros como ponto de apoio e reforço, defendendo a idéia de que é como membros de grupos que recordamos.
No entanto, Halbwachs ressalta a necessidade de pontos de contato entre as lembranças, pois só podemos encontrar apoio externo, isto é, no relato dos outros, se guardo alguma coisa das experiências compartilhadas. Para o compartilhamento das recordações, além da convivência com o grupo, é necessário que estas se relacionem e se complementem, que o fundamental na memória individual é, justamente, a dimensão social:

Para que nossa memória se auxilie com a dos outros, não basta que eles nos tragam seu depoimento: é necessário ainda que ela não tenha cessado de concordar com suas memórias e que haja bastante pontos de contato entre uma e as outras para que a lembrança que nos recordam possa ser reconstruída sobre um fundamento comum. Não é suficiente reconstituir peça por peça a imagem de um acontecimento do passado para se obter uma lembrança. É necessário que esta reconstrução se opere a partir de dados e noções comuns que se encontram tanto no nosso espírito como no dos outros, porque elas passam incessantemente desses para aquele e reciprocamente, o que só é possível se fizeram e continuam a fazer parte de uma mesma sociedade. Somente assim podemos compreender que uma lembrança possa ser ao mesmo tempo reconhecida e reconstruída. (HALBWACHS, 1990, p.34).

O autor ainda apresenta duas considerações reforçando essas relações entre a rememoração e o convívio social, as quais ele mesmo aponta como facilmente aceitas. Nesse sentido, comenta que um grande número de lembranças reaparecem porque nos são recordadas por outras pessoas e destaca a pertinência da expressão "memória coletiva" para evocar acontecimentos vividos em grupos (HALBWACHS, 1990, p. 36).
Halbwachs afirma que sempre vivemos nossas experiências em relação com os que nos cercam, e esses, de algum modo, constituem as referências para nossa percepção. Noções e imagens que aplicamos a essas experiências são tomadas do meio social onde vivemos. É por afirmar o caráter intrinsecamente social do ser humano que o autor não pode senão perceber a memória individual apoiada na memória coletiva.

No mais, se a memória coletiva tira sua força e sua duração do fato de ter por suporte um conjunto de homens, não obstante eles são indivíduos que se lembram, enquanto membros do grupo. Dessa massa de lembranças comuns, e que se apóiam uma sobre a outra, não são as mesmas que aparecerão com mais intensidade para cada um deles. Diríamos voluntariamente que cada memória individual é um ponto de vista sobre a memória coletiva, que este ponto de vista muda conforme o lugar que eu ali ocupo, e que este lugar mesmo muda segundo as relações que mantenho com outros meios. Não é de admirar que do instrumento comum nem todos aproveitem do mesmo modo. Todavia quando tentamos explicar essa diversidade, voltamos sempre a uma combinação de influências que são, todas, de natureza social. (HALBWACHS, 1990, p.51).

Podemos dizer que a convivência e o diálogo são processos envolvidos neste fenômeno da memória. Na passagem acima, podemos ressaltar alguns aspectos importantes para pensarmos a relação entre memória individual e coletiva. Primeiro, os indivíduos recordam como membros de grupos; segundo, a memória coletiva tem por suporte o conjunto das pessoas que integram o grupo; terceiro, o instrumento comum é a memória coletiva; quarto, a memória individual é um ponto de vista da memória coletiva; e finalmente, que este ponto de vista é mutável, dependendo das relações com outros meios sociais. Para o autor, "a sucessão de lembranças, mesmo daquelas que são mais pessoais, explica-se sempre pelas mudanças que se produzem em nossas relações com os diversos meios coletivos, isto é, pelas transformações destes meios, cada um tomado à parte e em seu conjunto" (HALBWACHS, 1990, p. 51).
Assim, Halbwachs sublinha que a memória deve ser entendida "como um fenômeno construído coletivamente e submetido a flutuações, transformações, mudanças constantes", mas devemos lembrar também "(...) que na maioria das memórias existem marcos ou pontos relativamente invariantes, imutáveis" (POLLAK, 1992, p.200). O que Pollak quer afirmar é que, a partir de experiências realizadas em entrevistas de histórias de vida, as pessoas tendem a reter certos acontecimentos, períodos de vida ou de fatos, algo de invariante a que voltam várias vezes:

É como se, numa história de vida individual (...) houvesse elementos irredutíveis em que o trabalho de solidificação da memória foi tão importante que impossibilitou a ocorrência de mudanças. Em certo sentido, determinado número de elementos tornam-se realidade, passam a fazer parte da própria essência da pessoa, muito embora outros tantos acontecimentos e fatos possam se modificarem em função dos interlocutores ou em função do movimento da fala. (POLLAK, 1992, p.201).

Ou seja, tanto Halbwachs quanto Pollak, afirmam que a lembrança aparece como efeito de uma grande e complexa combinação de influências, reconhecendo, entretanto, que não conseguimos estabelecer com clareza as origens destas influências. "A lembrança é, em larga medida, uma reconstrução do passado com a ajuda de dados emprestados do presente e, além disso, preparada por outras reconstruções feitas em épocas anteriores e de onde a imagem de outrora se manifestou bem alterada" (HALBWACHS, 1990, p. 71). Para o autor, as lembranças são organizadas de duas maneiras, em torno de uma pessoa ou no âmbito de uma coletividade, grande ou pequena. Uma vincula-se à vida pessoal e interior, a outra ao mundo social e exterior. Os indivíduos estão relacionados com ambas, contribuindo para a formação das duas, enfim participariam dos dois tipos de memórias, a individual e a coletiva. "A memória coletiva [...] envolve as memórias individuais, mas não se confunde com elas" (HALBWACHS, 1990, p.55).
Em Becos, a autora retoma lembranças da infância, histórias de vidas contadas ou vividas para reconstruir o presente, ou para ficcionalizar o passado. De qualquer forma, memórias acumuladas, sejam individuais ou do grupo, formam o grande painel da real favela da infância na fictícia favela do livro.
Mas afinal, quais são os elementos constitutivos da memória, seja ela individual ou coletiva? Segundo Pollak, a lembrança se ampara em três critérios ? acontecimentos, personagens e lugares ? conhecidos direta ou indiretamente e que podem se referir a "acontecimentos, personagens e lugares reais, empiricamente fundados em fatos concretos. Mas pode se tratar também de projeção de outros eventos"

Em primeiro lugar, os acontecimentos vividos pessoalmente. Em segundo lugar, os acontecimentos "vividos por tabela", ou seja, acontecimentos vividos pelo grupo ou pela coletividade à qual a pessoa se sente pertencer. São acontecimentos dos quais a pessoa nem sempre participou mas que, no imaginário, tomaram tamanho relevo que, no fim das contas, é quase impossível que ela consiga saber se participou ou não. (...) É perfeitamente possível que, por meio da socialização política, ou da socialização histórica, ocorra um fenômeno de projeção ou de identificação com determinado passado, tão forte que podemos falar numa memória quase que herdada. (POLLAK, 1992, p.203).

Ao recompor sua trajetória, como foi forjada sua identidade de afro-descendente, a autora de Becos da memória se apropria das impressões que a marcaram e que estavam circunscritas ao âmbito das relações que manteve, do grupo que integrava. A herança familiar, a escravidão, que tanto marcou o avô e os tios, a dor que se mantinha inalterada na alma desses personagens, foram apropriadas pela autora/personagem de Becos.
Além de acontecimentos, a memória é constituída por pessoas, personagens, sejam elas encontradas realmente no decorrer da vida e das que indiretamente se "transformaram quase que em conhecidas, e ainda, de personagens que não pertencem necessariamente ao espaço-tempo da pessoa"; e finalmente, pelos lugares.

Existem lugares de memória, lugares particularmente ligados a uma lembrança, que pode ser uma lembrança pessoal, mas também pode não ter apoio no tempo cronológico. Pode ser um lugar na infância, que permaneceu muito forte na memória da pessoa, muito marcante, independentemente da data real em que a vivência se deu. (...) Locais longínquos, fora do espaço-tempo da vida de uma pessoa, podem constituir lugar importante para a memória do grupo, e por conseguinte da própria pessoa, seja por tabela, seja por pertencimento a esse grupo. (POLLAK, 1992, p. 204).

Foi a partir das referências e proposições de Halbwachs e Pollak, que orientamos nossa análise da obra Becos da Memória, de Conceição Evaristo, enfatizando a utilização que a autora faz desses recursos para compor um quadro de reminiscências que povoaram por longo tempo seu interior e para recompor um retrato, na sua máxima completude, da favela em que viveu quando criança: real e ficcionalmente.

[...] a recordação daquele mundo me traz lágrimas aos olhos. Como éramos pobres! Miseráveis talvez! Como a vida acontecia simples e como tudo era e é complicado! (...) Escrevo como uma homenagem póstuma à Vó Rita, (...) aos bêbados, às putas, aos malandros, às crianças vadias que habitam os becos de minha memória. (EVARISTO, 2006, p. 21).

A memória coletiva concerne à convivência e à comunicação entre os membros de uma coletividade. Sua duração acompanha a existência do grupo. Um indivíduo participa de diversos grupos ao longo de sua vida, cada um desenvolvendo memórias coletivas que só ao grupo interessa. Halbwachs, ao considerar os quadros sociais da memória, mostrou a importância da informação como mediadora do processo de construção de identidade. Se passarmos a compreender que nossas lembranças relacionam-se a quadros sociais mais amplos, compreendemos também que o passado só aparece a nós a partir de estruturas ou configurações sociais do presente, e que memórias, embora pareçam ser exclusivamente individuais, são peças de um contexto social que não só nos contém como é anterior a nós mesmos.
Para o sociólogo francês, portanto, não há uma memória coletiva capaz de impor-se ao conjunto de indivíduos arbitrariamente, nem tampouco um quadro social da memória que não seja constituído a partir de um grupo de indivíduos. Na percepção de Halbwachs a memória não é, e não pode ser considerada, o ponto de partida porque ela nunca parte do vazio; assim como faz Conceição Evaristo na construção de Becos da Memória. Ali, a memória é adquirida à medida que a personagem principal toma como sua as lembranças do grupo com o qual se relaciona: há um processo de apropriação de representações coletivas por parte da personagem em interação com outros personagens, revivendo acontecimentos pessoais ou "herdados", num tempo-espaço comum ao grupo: a favela.


2. PELAS MEMÓRIAS DOS BECOS

Nem tudo o que se enfrenta pode ser modificado,
mas nada pode ser modificado se não for enfrentado.
James Baldwin

Nas últimas duas décadas, podemos considerar como sendo quase um senso comum a idéia de que identidades coletivas são construções políticas e sociais e que devem ser tratadas como tal. Desta nova perspectiva, passou-se a afirmar que indivíduos constroem suas identidades e que a manutenção destas identidades depende do processo resultante das interações mantidas por estes indivíduos no processo de compreensão de si próprios e de suas intervenções na realidade. Identidades coletivas passaram a ser compreendidas a partir não só de um agregado de interações sociais, mas também da razão político-estratégica de atores sociais. Afinal, se identidades são construídas, a que interesses elas servem e quem são aqueles excluídos do processo?
A noção de identidade, que rompe com as dicotomias entre indivíduo e sociedade, passado e presente, bem como entre ciência e prática social, está tão associada à idéia de memória como esta última à primeira. O sentido de continuidade e permanência presente em um indivíduo ou grupo social ao longo do tempo depende tanto do que é lembrado, quanto o que é lembrado depende da identidade de quem lembra.
Ao analisar a obra Becos da memória, não podemos omitir a origem e condição étnico-social daquela que escreve. É evidente, em todo o corpo da obra a intencionalidade da autora. Suas marcas de mulher negra e de origem humilde não são camufladas por um texto "romantizado". A escritora negra mostra-se na sua totalidade, expõe-se integralmente, deixa-nos penetrar em suas memórias mais recônditas. Assume-se como aquela que fala e não de quem se fala.
Para Bern (1988), "Para que exista um discurso ficcional do negro é preciso que o negro defina a imagem que possui de si mesmo e que consolide o processo já iniciado de construção de uma consciência de ser negro na América.(...) Buscando assumir-se como sujeito da enunciação, o negro liberta-se da imagem quase sempre estereotipada com que foi apresentado desde sua chegada ao Novo Mundo (...)". Desta forma, em Becos, "vemos aflorar um eu-que-se-quer-negro, evidenciando uma ruptura com uma ordenação anterior que condenava o negro a ocupar a posição de objeto ou, melhor, daquele de quem se fala." (BERND,1988, p. 76).
Castells (2000), observa que as identidades "constituem fontes de significado para os próprios atores, por eles originadas, e constituídas por meio de um processo de individuação", o que torna toda e qualquer identidade resultante de uma construção, que tem como objetivo organizar significados que se mantenham ao longo do tempo, em um determinado espaço e em um contexto social e político fortemente marcado por relações de poder. Por isso Castells propõe a seguinte distinção entre os processos de construção de identidades:
Identidade legitimadora: introduzida pelas instituições dominantes da sociedade no intuito de expandir e racionalizar sua dominação em relação aos atores sociais;
Identidade de resistência: criada por atores que se encontram em posições/ condições desvalorizadas e/ou estigmatizadas pela lógica da dominação, construindo, assim, trincheiras de resistência e sobrevivência com base em princípios diferentes dos que permeiam as instituições da sociedade, ou mesmo opostos a estes últimos;
Identidade de projeto: quando os atores sociais, utilizando-se de qualquer tipo de material cultural ao seu alcance, constroem uma nova identidade capaz de redefinir sua posição na sociedade e, ao fazê-lo, de buscar a transformação de toda a estrutura social.
Utilizando-nos destes modelos criados por Castells, podemos dizer que para a população negra a superação dos estereótipos vinculados à cor, (admitindo-se que os negros se encontram muito freqüentemente realizando atividades desprestigiadas socialmente), constitui-se um problema que podemos associar a uma redefinição da própria identidade negra. Em Becos a autora rejeita uma identidade atribuída a si e aos seus pelos "outros", alheios à comunidade, e lança o desafio de assumir as rédeas de seu destino histórico, através da educação e do exemplo recebido. Ela quer ser aquela que fala. Ela própria quer redefinir sua posição na sociedade, quer ser protagonista de sua história e recuperar a história daqueles que não tiveram vez nem voz.

Maria-Nova queria sempre histórias e mais histórias para sua coleção. Um sentimento, às vezes, vinha-lhe. Ela haveria de recontá-las um dia, ainda não se sabia como. Era muita coisa para se guardar dentro de um só peito. Ela quase sempre estava mais para amargura. Achava os barracos, as pessoas, a vida de todos, tudo sem motivo algum para muita alegria. (EVARISTO, 2006, p.39).

Para Azevedo (2004), o discurso, que pretende descrever uma história do eu, tem evidente caráter ficcional. "As autobiografias não são simples crônicas de fatos, mas a manipulação engenhosa de detalhes e fatos que adquirem o status factual durante construção de uma persona particular como sujeito do relato". Ao narrar o desenvolvimento da protagonista da infância à adolescência, o seu processo de busca da identidade, a autora articula suas próprias memórias com as memórias da comunidade em que vive, para assim compor a representação do EU biográfico.

A menina crescia. Crescia violentamente por dentro. Era magra e esguia. Seus ossinhos do ombro ameaçavam furar o vestidinho tão gasto. Maria-Nova estava sendo forjada a ferro e a fogo. A vida não brincava com ela e nem ela brincava com a vida. Ela tão nova e já vivia mesmo. Muita coisa, nada ainda, talvez ela já tivesse definido. Sabia, porém, que aquela dor toda era só sua. Era impossível carregar anos e anos tudo aquilo sobre os ombros. Sabia que era preciso pôr tudo para fora, porém como, como? Maria-Nova estava sendo forjada a ferro e fogo. (EVARISTO, 2006, p.72)

Pollak (1989), afirma que essas lembranças durante tanto tempo confinadas ao silêncio e transmitidas de uma geração a outra oralmente, e não através de publicações, permanecem vivas.

O longo silêncio sobre o passado, longe de conduzir ao esquecimento, é a resistência que uma sociedade civil impotente opõe ao excesso de discursos oficiais. Ao mesmo tempo, ela transmite cuidadosamente as lembranças dissidentes nas redes familiares e de amizades, esperando a hora da verdade e da redistribuição das cartas políticas e ideológicas." (POLLAK, 1989, p.5).

A enunciação em primeira pessoa, no singular ou no plural, revela a determinação da autora de "desvencilhar-se do anonimato e da ?invisibilidade? a que foi relegada por sua condição de descendente de escravos ou ex-escravos e, mesmo após a Abolição, sua situação de estranhamento em uma sociedade que não a convocou a participar em igualdade de condições". (BERND,1988, p.77).

Hoje estou para o sofrimento. Vou ver Vó Rita. Vou pedir que me leve até a Outra. Posso também ir olhar a ferida que Magricela tem na perna. Tenho nojo, mas olho. [...] Hoje quero tristeza maior, maior, maior. (EVARISTO, 2006, p.35).

Hoje quero tristeza maior, maior, maior... Hoje quero dormir sentindo dor. Maria-Velha parece que adivinhava os desejos de Maria-Nova. E quando a menina estava para sofrer, a tia tinha tristes histórias para rememorar. Contava com uma voz entrecortada de soluços. Soluços secos, sem lágrimas. (EVARISTO, 2006, p.35).

Na grande maioria dos casos "o eu individual funde-se no nós coletivo, evidenciando um empenho em delinear uma identidade comunitária que [...] corresponde à participação afetiva a uma entidade coletiva, constituindo-se no alicerce constante de todas as formas de identidade". (BERND,1988, p.78). Por outro lado, utiliza um narrador em terceira pessoa para gerar um afastamento, um distanciamento estratégico que valide seus pontos de vista:

Mas a menina é do tipo que gosta de por o dedo na ferida, não na ferida alheia, mas naquela que ela traz no peito. (...) Maria-Nova, talvez tivesse o banzo no peito. Saudades de um tempo, de um lugar, de uma vida que ela nunca vivera. Entretanto, o que doía mesmo em Maria-Nova era ver que tudo se repetia, um pouco diferente, mas, no fundo, a miséria era a mesma. O seu povo, os oprimidos, os miseráveis, em todas as histórias, quase nunca eram os vencedores, e sim, quase sempre, os vencidos. A ferida dos do lado de cá sempre ardia, doía e sangrava muito. A menina, apesar da dor, pedia mais e mais aquela história". (EVARISTO, 2006, p. 62)

Maria-Nova tinha em Bondade outro contador de histórias. Coisas que ele não contava para gente grande, Maria-Nova sabia. As histórias tristes, Bondade contava com lágrimas nos olhos; as alegres, ele tinha no rosto e nas mãos a alegria de uma criança. (EVARISTO, 2006, p.39).

Para Pollak (1989), ao privilegiar a análise dos excluídos, dos marginalizados e das minorias, a história oral ressaltou a importância de memórias subterrâneas que, como parte integrante das culturas minoritárias e dominadas, se opõem à "Memória oficial".

[...] existem nas lembranças, de uns e de outros, zonas de sombra, silêncios, ?não-ditos?. As fronteiras desses silêncios e ?não-ditos? com o esquecimento definitivo e o reprimido inconsciente não são evidentemente estanques e estão em perpétuo deslocamento. Essa tipologia de discursos, de silêncios, e também de alusões e metáforas, é moldada pela angústia de não encontrar uma escuta. (POLLAK, 1989, p.3).

Pollak ainda afirma, que aquilo que "a memória individual grava, recalca, exclui, relembra é, evidentemente, o resultado de um verdadeiro trabalho de organização", assim como também é o trabalho de construção de um texto ficcional, principalmente se está calcado em memórias individuais e coletivas. Para o autor, há uma ligação muito estreita entre a memória e o sentimento de identidade - o sentido da imagem de si, para si e para os outros. Esse sentimento é

[...] a imagem que a pessoa adquire ao longo da vida referente a ela própria, a imagem que ela constrói e apresenta aos outros e a si própria, para acreditar na sua própria representação, mas também para ser percebida da maneira como quer ser percebida pelos outros. Nessa construção da identidade, há três elementos essenciais. Há a unidade física, ou seja, o sentimento de ter fronteiras físicas, no caso do corpo da pessoa, ou fronteiras de pertencimento ao grupo, no caso de um coletivo; há a continuidade dentro do tempo, no sentido físico da palavra, mas também no sentido moral e psicológico; finalmente, há o sentimento de coerência, ou seja, de que os diferentes elementos que formam um indivíduo são efetivamente unificados. (POLLAK, 1992, p. 204).

Becos revela a preocupação da autora em ancorar a questão da construção de sua identidade no sentimento de pertencer a um grupo que deseja valorizar através da palavra. Ao retomar a memória dos excluídos da sua infância, Evaristo rompe com o silêncio a que tais minorias são lançadas pelas situações geradas pelos mecanismos oficiais, de exclusão. Ao retomar as histórias de vidas contadas pelos "griots" de sua infância, ela concretiza a autobiografia dos que não escreviam, mas que as viviam, dolorosa, mas intensamente.

Havia as misérias e as grandezas. Havia o amigo e o inimigo, o leal e o traiçoeiro. Havia muito de amor e de ódio. Havia muito de riqueza na pobreza, na miséria de cada um. E havia também a miséria do egoísmo, da inveja, do ódio, do desejo assassino de liquidar, de acabar com o irmão. Havia a miséria do homem que ainda não se descobriu homem. Do homem que não se descobriu em si próprio e nem no outro. (EVARISTO, 2006, p.21).


3. CONSIDERAÇÕES FINAIS


O trabalho de Halbwachs tem servido como fonte de aprendizado a toda uma geração de historiadores, antropólogos e sociólogos que se voltam hoje para o estudo da construção de mentalidades e identidades coletivas. Por possibilitar uma melhor compreensão da relação entre identidade, "ego" e representações coletivas presentes nos quadros sociais da memória, seu trabalho continua a nos mostrar hoje, como mostrou no passado, que nossa capacidade de pensar, agir e transformar o mundo necessita sempre considerar seus limites, pois há nestes processos, aspectos que, por mais que os incorporemos, nos antecedem e sobre os quais não temos total controle e que as marcas deixadas pelo passado não são tão imperceptíveis e inócuas como muitos supõem.
Conceição Evaristo nos brinda com uma obra onde estes elementos, tratados tão exaustivamente pelos sociólogos e psicólogos, são exemplificados vividamente pelo desfile de "causos", histórias de vidas, ensinamentos e aprendizagens transmitidas entre aqueles que, materialmente pobres, partilham a sublime riqueza da amizade, o inestimável tesouro da solidariedade e o incalculável saber ancestral. Se fôssemos nos deter por mais tempo na análise da obra, teríamos que palmilhar um caminho extenso, pois cada história narrada funciona como uma nova imagem nesse caleidoscópio chamado favela. Suas narrativas que se entrecruzam, num processo de tessitura sonora, de contextura de palavras, moldam e constroem paulatinamente o que no futuro seria sentimento de identidade da personagem, talvez da própria autora.
Os personagens, que compõem esta ficção memorialística, se relacionam com diferentes quadros sociais da memória durante suas vidas/narrativas na medida em que vão aos lugares de trabalho, grupos religiosos, espaços de lazer ou mesmo quando permanecem com suas famílias. No entanto, podemos perceber que embora estes quadros componham nossas memórias coletivas, eles não estão estáticos, mantêm-se em contínuo movimento e reestruturação. Através da narrativa ficcional, a autora demonstra que cada indivíduo traz consigo uma composição única de inúmeras experiências.
Não há necessidade, portanto, de pensarmos que a antecedência de quadros sociais da memória implica a imposição de uma representação coletiva, única e homogênea, sobre "mentes" e "corpos". Há várias representações coletivas, conflitivas e em mudança, relativas a diferentes grupos, por meio das quais indivíduos se socializam e constituem suas identidades e memórias ao longo de suas vidas.
Tentamos resgatar aqui, dois argumentos trabalhados por Halbwachs em seu estudo de memórias coletivas. Em primeiro lugar, a associação entre memória e sociedade, ou seja, a compreensão de que a memória é fruto de interações sociais que ocorrem no presente, de que nestas interações dá-se a constituição da imagem de cada "um" no "outro" e de que a personalidade dos indivíduos se forma nestes contextos interativos, de forma fragmentada, e aberta a múltiplas composições. Em segundo lugar, a compreensão da memória como ato de reconstrução, pois ela nunca é idêntica a qualquer imagem do passado, mas que há lugares da memória que podem ser estudados como formas de acesso ao passado.
Aprendemos, portanto, com Hallbwachs, Pollak e Evaristo que memórias ? sejam elas de indivíduos, grupos ou nações ? são construídas em relação a um complexo conjunto da vida moral e material das sociedades em que indivíduos vivem. Qualquer sociedade, na medida em que existe, subsiste e toma conhecimento de si mesma, terá os traços que deixou de si mesma reconstruídos. São vários os autores que, como eles, procuram na memória a capacidade de lidar com experiências adquiridas do passado e transmitidas entre gerações, sejam cientifica ou ficcionalmente.


4. REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

BERND, Zilá. Introdução à literatura negra. São Paulo: brasiliense, 1988.
CASTELLS, Manuel. O poder da identidade. Rio de Janeiro, Paz e Terra, 2000.
EVARISTO. Conceição. Becos da Memória. Belo Horizonte: Mazza Edições, 2006.
HALBWACHS, M. 1990. A memória coletiva. São Paulo: Centauro, 2006.
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POLLAK, Michael. Memória, Esquecimento, Silêncio. Estudos Históricos, Rio de Janeiro, Vol. 2, n. 3, 1989, p. 3-15.
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Autor: Edilson Gomes Costa


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