Resenha do Livro Cinquenta Dias a Bordo de um Navio Negreiro



IPA metodista.
Curso de licenciatura em História.
Docente: Julio Appel.

Este livro foi escrito a partir de um diário de bordo de 1842/1843. É formado por relatos de um tripulante que era sacerdote da igreja anglicana, sobre uma viagem que tinha por objetivo policiar o mar para impedir o tráfico negreiro. Trata-se, portanto, de uma visão anglo-cristã que defendia a abolição da escravatura e do comércio de cativos. O livro mostra a complicada situação que se apresentava aos combatentes deste comércio: eles tinham que assumir a recolocação dos escravos em condições de sobrevivência no continente africano, tarefa difícil, pois levando-os de volta ao porto de qual zarparam, seriam re-escravizados e vendidos outra vez. Se largados em um lugar qualquer da costa, provavelmente seriam escravizados por outros grupos e vendidos também, ou ainda não poderiam voltar para sua aldeia de origem por ela já estar destruída pela guerra ou mesmo por não encontrarem mais o caminho até ela, ficando assim a merce, outra vez, dos caçadores de escravos que os venderiam novamente.
Uma observação interessante do livro, conforme o relatado acima, diz que ao ser o escravo conduzido aos porões de uma embarcação negreira era, geralmente, o começo de uma viagem sem retorno, ficando o capturado para sempre afastado de sua origem e de sua família. A melhor alternativa era levar os escravos para algum lugar na África onde houvesse presença europeia, mesmo que nestes lugares os ex-cativos ainda permanecessem em uma condição de servidão disfarçada e que a viagem até estes pontos pudessem ser longas e dramáticas.
Normalmente uma tripulação britânica assumia a embarcação traficante sem os mesmos conhecimentos da tripulação original, que tinha que levar a maior quantidade possível de escravos vivos e em condições aceitáveis para a venda, lembrando que o lucro da viagem dependia da venda da carga, no caso, dos escravos que poderiam ser vendidos. Para isso existia uma tripulação o mais especializada que se conseguisse em diversas áreas relacionadas com a sobrevivência dos escravos, coisa que os inibidores do tráfico não tinham competência, quer por numero de tripulantes, quer por conhecimento do que fazer.
Sobre a diferença no controle do navio negreiro por especialistas do tráfico que perdiam dinheiro a cada corpo, o livro diz em seu prefácio que em muitos navios as perdas humanas ficavam abaixo de 10% e em numerosas viagens, não ultrapassava os 5%, situação totalmente diferente da narrada por Hill em suas anotações, que eram relatos diários da tentativa de fazer voltar ao continente africano os cativos que, sendo transportado para a venda, foram libertados pela marinha inglesa, quando numa curta viagem, sem sair da África, as perdas humanas passaram de 36%, provavelmente se a viagem fosse mais longa a maior parte das vidas dos cativos seriam perdidas. Esta viagem curta relativamente ao espaço percorrido não significava, porém que a embarcação ficasse muito menos tempo navegando, pois como veremos, o navio Cleópatra demorou vinte e cinco dias para atravessar o oceano Atlântico e a curta viagem no navio negreiro chamado Progresso demorou cinquenta dias.
Hill começa seu relato falando sobre o Rio de Janeiro, local de sua partida para a África em 1846. O relato que ele faz sobre o Brasil e a situação dos escravos é bastante interessante: Inicia comentando sobre a grande proporção da população "de cor" em relação à população branca. Observa também que, na metrópole, "eles não parecem ter uma aparência triste como a nossa imaginação está propensa a apresentá-los (?) o contentamento e a alegria da mistura heterogênea parece igualar o das outras classes populares na maioria dos outros países". Ele lembra que a situação dos escravos na zona rural não é igual a situação encontrada na metrópole, pois no interior o sofrimento dos negros é mais violento. De toda forma é uma observação surpreendente, que por si só, traz uma imagem diferente da concebida quanto aos horrores da escravidão.
Esta imagem se torna ainda mais surpreendente. O autor conta que os escravos trabalham pesado, mas que ao fim de algumas horas tem uma parte do dia livre para trabalhar em proveito próprio e assim poder comprar a sua liberdade dentro de um prazo razoável, dizendo ainda que a situação do escravo doméstico no Brasil é mais favorável que em qualquer outro lugar. Tudo isso é relatado sem deixar cair no esquecimento as mazelas pelas quais estavam submetidos os escravos, como a subnutrição e o açoite e ainda que esta situação se refere aos escravos domésticos. A condição mais favorável do escravo doméstico no Brasil acabou por ser desmentida por Antônio, um dos tripulantes do navio negreiro capturado, que falou que a condição melhor do africano é em Havana, onde o africano "às vezes está mais bem vestido do que muito homem branco" (pg. 86). Este mesmo Antônio diz a Hill que trabalhar com o tráfico negreiro "é um trabalho para homens desesperados" (pg. 75).
Hill ficou a bordo do navio Cleópatra por 25 dias, partindo do Rio dia 14 de janeiro e chegando a cidade do Cabo dia 9 de outubro, tempo da travessia do Atlântico. Observo aqui que para atravessar o Oceano Atlântico, a nau levou a metade do tempo que o navio negreiro navegou nos mares africanos até que os ex-cativos fossem desembarcados. Após alguns dias de descanso o Cleópatra zarpou para fazer a patrulha da área, passando pelas ilhas Maurício, por Moçambique e baia de Santo Agostinho, quando o autor faz o primeiro relato de contato com os nativos, que andavam nus com exceção dos superiores, que usavam ou um casaco velho da marinha ou um boné. Os nativos tinham boa aparência e falavam diversas palavras em inglês, indícios que procuravam sempre o comércio, inclusive de escravos, como vemos na resposta do nativo ao questionamento sobre o que ele faria com o dinheiro: "Juntar dez dólares, comprar escravo", o que parecia uma prática comum entre os africanos.
Já no mês de fevereiro do ano seguinte (1843) em Quelimane, os tripulantes do Cleópatra foram avisados que alguns navios negreiros podem ser esperados naquela localidade, que plantava o suficiente para o consumo e tinha o comércio voltado para a venda de escravos. Era uma cidade que os brancos eram em numero inferior a noventa, portanto, dava a entender que era uma cidade habitada por africanos que vendia escravos africanos para os compradores ocidentais.
No dia 12 de abril de 1843 foi avistada a vela de uma embarcação que foi perseguida pelo Cleópatra. Foi capturado o navio brasileiro e tomado pelos britânicos. Encontraram a bordo, segundo os papeis do navio, 450 escravos com aspecto esfomeado e que, ficando sem controle, se apoderara de tudo o que lhes interessava na embarcação. Os ingleses assumiram o navio e os cativos se tranquilizaram, situação que ficou calma até que eles tiveram que voltar para o porão para liberar o tombadilho para as ações necessárias a navegação. Este remanejamento resultou em 54 mortes devido a luta dos ex-cativos para encontrar ar para respirar. Esta consequência já tinha sido alertada por um ex-tripulante responsável pelo transporte dos escravos, evidenciando o despreparo dos britânicos para lidar com este tipo de situação.
O despreparo se evidenciou em outras passagens da narrativa, mostrando a dificuldade que os libertadores tinham em cuidar dos libertados. Os ingleses não conheciam as enfermidades nem os medicamentos utilizados entre os africanos, diferentemente dos traficantes, que tinham esse conhecimento para poder cuidar de sua "mercadoria". Novamente foi Antônio que disse a Hill: "o modo como os negros vivem no seu próprio país é diferente, (...)o que torna adequado seus remédios diferentes" (pg. 90), que não via os negros como seres humanos, conforme disse: "Eles não tem nem Deus, nem santos... São animais, vivem em buracos nas montanhas como lobos" (pg. 97).
A viagem escolhida para dar origem ao livro parece ter sido a mais desastrada, onde mais horrores aconteceram, não pelos fatos narrados, mas em especial por um depoimento a respeito da reação do sr. Shea, superintendente do hospital naval, que visitou o navio quando este ancorou. Hill escreve que "por mais que ele estivesse acostumado a cenas de sofrimento, ele foi incapaz de suportar a vista" (pg. 102), e traz palavras do sr. Shea dizendo que esta vista estava "superando tudo o que ele podia conceber de miséria humana" (pg. 102). Por este breve relato temos uma visão diferente da visão de Antônio sobre os negros.
Antônio disse que os negros eram animais, o dr. Shea falou em miséria humana. Em ambos os casos o discurso é embasado numa visão social que defende, cada uma, o seu próprio interesse. Era interessante para Antônio, e para a visão de mundo que representava, que os negros fossem animais pois somente assim poderia se conviver com o dia-a-dia do tráfico negreiro, mesmo sendo esta uma atividade para homens desesperado, conforme o próprio Antônio teria dito. Já para os libertadores era importante reconhecer que, assim como eles, os negros eram seres humanos, não para deixar de explora-los, pois os negros libertados acabavam continuando em condições servis, mas para que existisse um argumento sólido o suficiente para justificar a sua intervenção neste comércio.
Fazendo um exercício de imaginação, sem querer com isso, de maneira nenhuma, negar os horrores deste sistema de escravidão, podemos pensar que se o livro fosse embasado nos registros diários de uma viagem bem sucedida onde menos de 5% dos cativos morriam e que não tivessem todos os sofrimentos relatados nesta viagem, o impacto do livro contra o tráfico negreiro não atingiria o seu objetivo de retratar a desumanidade desta prática. Podemos pensar, então, que a escolha desta viagem, que horrorizou até mesmo quem estava acostumado a tratar os cativos recolhidos com a vistoria deste tipo de navio, para ser publicada, foi um reforço para que a visão humanística, que despertasse sentimentos de revolta contra este tipo de comércio, se impusesse e justificasse a intervenção nesses países.

Bibliografia:

HILL, Pascoe Grenfell. Cinquenta dias abordo de um navio negreiro, Rio d Janeiro, José Olympio, 2006 (Baú de histórias)
Autor: Julio Appel


Artigos Relacionados


Análise Comparativa Entre O Texto "a Escravidão Na África: Uma História De Suas Transformações"

O Negro Escravo E A Arte Brasileira

A Origem Dos Escravos Africanos Em Sergipe

A Imprensa E O Processo Abolicionista No Brasl

Os Diários Do Almirante

Ser Escravo No Brasil Na Perspectiva De KÁtia Mattoso

Estrategias De ResistÊncia Escrava*