Identidade e território



IDENTIDADE E TERRITORIDADE ? ETNICIDADE QUILOMBOLA

Na atualidade, a diversidade da luta pela terra e pela cidadania no Brasil instiga a refletir sobre as categorias presentes no quadro de uma exclusão social histórica com implicações etno-raciais. Nesse sentido, a própria categoria conceitual camponês não abrange as diferentes realidades que compõem a relação com a terra no campo e nem a marginalização urbana se apresenta somente como recorte de classe social, mas ambas as realidades, construídas pela definição do acesso à propriedade e da forma como a modernização se realizou, no Brasil, apontam para uma linha de exclusão racial.

Com isso, analisar a representação quilombola expressa por grupos presentes na cidade e no campo, pensando a questão do território, na perspectiva geográfica das dinâmicas historicamente em movimento de segregação espacial e racial e resistência territorial.

As formas de uso da terra e dos recursos do território têm mostrado que o acesso à terra apresenta demandas historicamente construídas nas quais a questão do trabalho e as estratégias de sobrevivência vêm se colocando como aspectos de crucial importância para a definição de um traçado de lutas existentes no Brasil. Mas, a questão conclama a pensar o processo da exclusão considerando a questão racial, que traz a problemática também para o urbano.

Na perspectiva de Almeida (2002:53), como processo histórico que trouxe aos indivíduos de um grupo a auto-identificação de quilombos, significa pensar a questão da identidade como elemento central para a reafirmação da condição de ser e viver um lugar, nesse caso, um território.

As lutas pelas terras de quilombos e as lutas dos movimentos negros urbanos pressionaram o trabalho da Constituinte de 1988, aprovando o Artigo 68 que garante o direito às terras de quilombos e positiva um passado de luta, retornando para que esses grupos possam criar novos espaços políticos na sociedade brasileira.

Essas conquistas somente se tornam possíveis através da materialização de sua história e cultura vinculadas ao território, no caso rural.

O território e seus recursos necessitam de estudos aprofundados frente aos recentes processos de redefinições por que passa o espaço mundial. Ao avançar na direção de um mundo "sem fronteiras" ou com fronteiras mais permeáveis, surge uma nova territorialidade. Esse processo acontece num momento de desmonte das máquinas estatais, desregulamentação e diminuição do campo econômico de ação do Estado.

Na América Latina, este quadro é típico, com a redefinição do papel do Estado e a passagem para o setor privado de importantes serviços básicos. Esta situação se agrava se atentarmos para o fato de que essas sociedades não demonstraram, até o momento, força social para enfrentar este novo quadro.

Parece-nos indicado que o entendimento dos usos e dos conceitos elaborados com base no vivido territorial só podem ser explicados com base na história da formação territorial. Moraes (2002) aponta caminhos para essa análise, uma vez que a configuração territorial, segundo o autor, pode ser entendida por sua história.

Assim como Caio Prado Jr. (1990) em sua História Econômica do Brasil, busca uma explicação do Brasil na colonização e no escravismo, Moraes parece buscar no passado, elementos da formação territorial para compreender o território configurado.

A base territorial em ambos os casos ampara a formação de uma identidade? Torna-se base para a sobrevivência da cultura, servindo também para uma tentativa de reenraizamento social e espacial ou de criação de uma nova territorialidade?

Em todos os casos, estamos diante de representações da realidade, na medida em que os seres humanos constroem símbolos e significados sobre si próprios e sobre o mundo. Nesse caminho, o próprio ser individual, o que cada um é aparece como uma idéia, uma categoria ideológica, uma representação social (Brandão, 1986). Isso ocorre, segundo esse autor, no momento em que o homem se torna "representante de suas atuações e o responsável pelos seus atos", ainda na passagem do clã para a vida na pólis, perante a sociedade civil e o Estado. Segundo ele, a questão se estende para os termos de identidade e etnicidade, momentos do viver social.

A teoria social tem se debruçado sobre os temas relacionados à representação, à construção do ser e à identidade. Estas questões aparecem fortemente no período atual, em função de que "as velhas identidades, que por um tempo estabilizaram o mundo social, estão em declínio, fazendo surgir novas identidades e fragmentando o indivíduo moderno, até aqui visto como um sujeito unificado" (Hall, 2001). Fala-se em crise de identidade como conseqüência de abalos sobre os quadros de referenciais antigos.

Assim, temos a primeira lei que regulamentou a propriedade da terra no Brasil foi a chamada ?Lei de Terras de 1850?, concebida ainda durante a escravidão. Tal legislação determina que para a obtenção do título de propriedade é necessário comprar a terra de particulares ou do governo. Fato é que, à época de sua edição, os escravos e, após Lei Áurea, os recém-libertos, seguiam impedidos de ter acesso a esse direito: seja pela falta de recursos para a aquisição, seja pela impossibilidade de formalizar as ocupações. A concentração da propriedade nas mãos dos que já a possuíam transformou-se no meio de conservar os privilégios da elite brasileira e reafirmar o poder das oligarquias regionais.

[...] as identidades são representações inevitavelmente marcadas pelo confronto com o outro; por se ter de estar em contacto, por ser obrigado a se opor, a dominar ou ser dominado, a tornar-se mais ou menos livre, a poder ou não construir por conta própria o seu mundo de símbolos e, no seu interior, aqueles que qualificam e identificam a pessoa, o grupo, a minoria, a raça, o povo. Identidades são, mais do que isto, não apenas o produto inevitável da oposição por contraste, mas o próprio reconhecimento social da diferença. (BRANDÃO, 1986, p. 42) (grifos nossos)

Nesse contexto, a afirmação da identidade quilombola vem carregada pelo estigma da pobreza, da dominação e da resistência. A ausência do título de propriedade fragiliza ainda mais o grupo, haja vista que a defesa de seu território contra as constantes investidas dos lenheiros não conta com o aporte estatal. Assim, o território também passa se codificar por esta forma de resistência.

O território não é primeiro em relação a marca qualitativa, é a marca que faz o território. As funções num território não são primeiras, elas supõem antes uma expressividade que faz território. É bem nesse sentido que o território e as funções que nele se exercem são produtos da territorialização. (DELEUZE E GUATTARI, 1996, p.122)

As comunidades quilombolas tomaram maior visibilidade a partir da promulgação da Constituição Federal de 1988, que inseriu dentre seus dispositivos o direito à propriedade por parte desses grupos. Ao longo das duas décadas que se seguiram, algumas tentativas de normatização buscaram efetivar esse direito, porém dados oficiais apontam para a existência de 743 áreas de remanescentes de quilombos mapeadas no País, sendo que cerca de apenas 71 delas foram efetivamente tituladas até o presente momento. (MDA/INCRA, 2004)

Recentemente, o Decreto nº 4.887, de 20 de novembro de 2003, assegurou conquistas importantes para estas comunidades. Conforme Rocha (2005), tal inovação legal.
[...] efetivamente, reconheceu o comando constituinte originário a diversidade sócio-cultural e antropológica em seus princípios e normas, pretendendo avançar nas soluções de problemas históricos propositalmente postergados. Neste sentido, o Decreto nº 4.887/03 consolida uma nova ordem legal, cujos propósitos atualizadores exprimem a vontade inscrita na Lei Maior.

O Decreto, ora referido, traz como critério de definição de remanescentes de quilombo a autodeterminação, reacendendo, a partir de então, intensos debates sobre identidade e conformação territorial.

A situação dos quilombos coloca questões pertinentes ao debate porque, em primeiro lugar, o quilombo rural traduz a sua luta pela terra e através da especificidade étnica, tanto vinculada ao direito territorial como calcada sobre a ancestralidade buscada na origem da conquista da terra. Logo, essa identificação demarca uma diferença no conjunto do campesinato. Por sua vez, a comunidade negra do Hip-Hop expõe em suas letras a situação de exclusão a que está submetida na periferia da cidade de São Paulo. Mas o que busca? A exclusão? O incitamento à violência? Parece buscar, pelo contrário, a inclusão na possibilidade simbólica conferida ao Hip Hop.

Por sua vez, não parece suficiente encarar a identificação com a classe, com a história ou com a etnia como processo hegemônico num determinado grupo. Do contrário o ser excluído seria condição absoluta da consciência, o viver na periferia seria condição da exclusão ou o ser pobre engendraria estratégias conjuntas entre brancos e negros e entre negros e negros na cidade. Há entre essas esferas, uma série de mediações, das quais a representação, a ideologia e a identidade são categorias fundamentais de entendimento.

Segundo Ciampa (2001 p.20). É preciso nos perguntar sobre quais são os processos de definição da identidade, não vista aqui como categoria inata ao ser humano, ou como um dado, mas construída pelos processos sociais e psicológicos do ser

Trata-se de compreender os significados da identidade, os quais não se revelam só pela descrição, pela definição de classe social ou pelo conceito. O autor considera que: "... precisamos captar os significados implícitos, considerar o jogo das aparências, fundamentalmente com o desvelamento do que se mostra velado."

Como afirma Lefebvre (1983), para o qual há uma veracidade relativa do conceito, o que exige reflexão incessante, para que o pensamento teórico, ao elevar as representações ao conceito, não às torne falso.

A temática aponta para a possibilidade da "metamorfose da identidade", que se explica tanto pelas condições objetivas quanto pelas subjetivas, num jogo ou embate contínuo entre se manter ou mudar o personagem, os quais nos são atribuídos, assumidos e/ou (re) construídos. A mudança seria suporte para o "ser-para-si e buscar a autodeterminação (que não é a ausência de determinações exteriores)".

REFERÊNCIAS

ALMEIDA, A. W. B. de. Os quilombos e as novas etnias. In: E. C. O?Dwyer. Quilombos: identidade étnica e territorialidade. São Paulo: ABA/FGV, 2002.

BRANDÃO, C.R. Identidade e Etnia - Construção da pessoa e resistência cultural. São Paulo: Ed. Brasiliense S. A,, 1986.

CIAMPA, A. da C. A estória do Severino e A história da Severina. São Paulo: Brasiliense, 2001.

LEFEBVRE, H. A presença e ausência - Contributo para a teoria das representações. México: Fondo de Cultura economica, 1983.

DELEUZE G. & Guattari F. Mil Platôs: Capitalismo e esquizofrenia. v. 4. Rio de Janeiro: Ed 34, 1996.

ROCHA, M. E. G. T. "O Decreto n.º 4.887/2003 e a Regularização das Terras dos Remanescentes das Comunidades dos Quilombos". 2005 - Disponível em: Acesso em 25/maio/2008.
Autor: José Fernando Silva


Artigos Relacionados


AtuaÇÃo Do Conselho Regional De Desenvolvimento Rural E SustentÁvel Da Bacia Do Jacuipe

Comunidades Quilombolas Reconhecidas No Brasil

Comunicação E Inclusão Social

Políticas De Formação De Educadores(as) Do Campo

Conceitos: Espaço, Lugar E Território

Lei Processual Penal No EspaÇo

Territórios Da Prostituição: Um Caminho Intrínseco