Ceres e Rialma: Quando um rio separa dois mundos



Pedro Henrique Monteiro Andrade
UFG
Faculdade de Artes Visuais
Arquitetura e Urbanismo
Cultura, Cidade e Arquitetura
Camilo Vladimir de Lima Amaral

Duas visões
Quem chega ao Vale de São Patrício se depara com uma situação singular. Dos dois lados de um rio se desenvolvem duas cidades distintas, como logo se percebe ao percorrê-las.
Na margem esquerda do chamado Rio das Almas, tem-se a cidade de Ceres, cortada por amplas avenidas que chegam a percorrer toda a estensão da cidade de 19.069 habitantes em 2009(IBGE), os setores bem definidos de comércio e residências; no setor central uma Praça Cívica, onde se erguem os poderes Legislativo, Executivo e Judiciário; a cidade é um pólo hospitalar com 27 estabelecimentos de saúde com 220 leitos para internação (IBGE, 2005).
Na outra margem, fixa-se Rialma, com seus 10.911 habitantes, de acordo com o IBGE(2009), o comércio centralizado na avenida principal da cidade, que apresenta apenas uma agência bancária, ao passo que Ceres possui quatro; e apenas 4 estabelecimentos de saúde com 26 leitos (IBGE, 2005).
Fundadas no mesmo ano, qual seria a causa de tanta disparidade econômica e socio-cultural entre cidades que apresentam PIB de R$126.889 mil e R$79.359 mil, respectivamente Ceres e Rialma (IBGE, 2005)?
Para responder a essa pergunta, é preciso que voltemos à história da região e de como surgiram as duas cidades.



CANG, origem de tudo
Flávio Manoel Coelho Borges Cardoso, em sua dissertação de Mestrado, na qual analisa o clúster de saúde de Ceres, narra como se deu início a formação das duas cidades. O ano de 1941, a Europa em plena Segunda Grande Guerra Mundial. O Brasil, sob o governo de Getúlio Vargas e seu Estado Novo. É nesse contexto que foi adotada uma política de Marcha para o Oeste, que consistia na colonização do interior do País, pouco povoado e praticamente vazio (CAPOZZOLI apud CARDOSO 2005, p. 87). No entanto, quem teria coragem de sair do litoral e desbravar o oeste? Como relata Aranha (2001), Luiz Simões Lopes, Oficial-de-Gabinete do Presidente, lembrou-se do colega de infância, o engenheiro agrônomo Bernardo Sayão Carvalho Araújo, e o indicou a Getúlio Vargas. O encontro de Bernardo Sayão com o Presidente é relatado pela filha de Sayão.
"Levava embaixo dos braços os seus mapas, minuciosamente assinalados, seus planos, fortemente traçados. Espalhou tudo sobre a mesa da Presidência e falou. Falou, em vez de 10 minutos, mais de uma hora. Um vínculo de simpatia ligou-o, reciprocamente, a Getúlio. A nomeação veio logo: Administrador da Colônia Agrícola Nacional de Goiás." (SAYÃO, 1984, p.53)

Com a instalação da CANG em 1941, na margem esquerda do Rio, vários colonos vieram para receberem um lote que cultivassem, "por meio de uma burocracia simples, mas que dificultava a entrada na colônia" (FILHO; SOUSA, 2005). Enquanto aguardavam a triagem, os colonos se alojavam como podiam do outro lado do Rio das Almas, lugar apelidado de Barranca, a futura Rialma. Os proprietários dos terreno do lado direito do Rio viram aí grande possibilidade de lucro e decidiram então vender as terras aos colonos que não haviam conseguido um lote na burocrática CANG (FILHO; SOUSA, 2005).

Ainda que nem Ceres nem Rialma tenham partido de planos diretores como a capital Goiânia, a qual Bernardo Sayão sempre admirou (SAYÃO, 1984, p. 48), ou Brasília, Pienza e Palmanova, a cidade de Ceres nasceu com esse cunho estatizado que é característico dos planos modernistas, derivados especificamente da cidade-modelo dos Congrès Internationaux d'Architecture Moderne (CIAM), com bem disse James Holston em seu ensaio "Espaços de cidadania insurgente".

"Desde a década de 1990, seus manifestos conclamaram o estado a dar prioridade aos interesses coletivos sobre os privados, impondo ao caos das cidades existentes a construção de um novo tipo de cidade baseada em seus planos diretores. [?]essa ideia de planejamento é vital para a identidade do estado moderno: ela motiva as autoridades políticas a tentarem criar e legitimar novos tipos de esferas públicas, com novos sujeitos e subjetividades que lhes correspondam." (HOLSTON, 1995, p.244-5)

Ceres nasceu projetada, ao menos mentalmente, por Bernardo Sayão, enquanto Rialma nasceu do que restou de Ceres. Rialma é mais que adjacente a Ceres. Ela é produto de Ceres. Mas não produzida intencionalmente, e sim pelos que não tiveram perspectiva de ingressar na Colônia e ali mesmo se instalaram. Na margem direita. Lado atribuído geralmente e iconograficamente ao correto e ao que é importante, desta vez, se prestou ao que era provisório e hoje é periferia.
Giulio Carlo Argan, em seu livro "Hitória da Arte como História da Cidade"(1998), discute a arquitetura e a cultura da cidade, "o drama das cidades que incham sem ter uma estrutura" (ARGAN, 1998, p. 248), e finaliza com o seguinte comentário:
"A grande tarefa cultural dos arquitetos, hoje, é a recuperação da cidade, e não importa que a cura da cidade doente seja, como programa, menos brilhante do que a invenção de novas cidades. [?]é preciso que os arquitetos, na qualidade de técnicos especialistas da cidade, retomem o controle da sua gestão, das suas mudanças, dos seus desenvolvimentos." (ARGAN, 1998, p. 250)

O fato é que as classes dominantes contrapuseram-se aos avanços dos novos cidadãos, usando estratégias de segregação (HOLSTON, 1995, p. 251), nesse caso a barreira geográfica imposta pelo Rio das Almas. Os que não puderam adquirir terras na Colônia foram empurrados para a Barranca, "os homens desafiavam a natureza enquanto as mulheres cuidavam dos fogões improvisados, sustentando nos braços as crianças sujas que se misturavam com as aves de criação" (FILHO; SOUSA, 2005).
Ceres é pólo de saúde dentro do estado de Goiás, destaca-se em número de redes de ensino na região do Vale de São Patrício, e alcançou o que seu desbravador imaginava. "Em carta às filhas, Bernardo Sayão dizia que a sede da colônia um dia seria uma grande cidade, com cinema, sorveteria, colégios, hospitais, piscinas e tudo de mais moderno" (ARANHA apud CARDOSO, 2005, p. 89). Ainda assim, está longe de alcançar a Cidade Ideal que existe dentro e sob a Cidade Real (ARGAN, 1998, p.73), e talvez nunca alcance, porque mudam-se as pessoas, morrem os desbravadores, e os planos de uns já não são mais os planos de outros. O progresso conquistado se transmuta em outro maior, e assim vai, a cidade real desenvolvendo juntamente com a cidade ideal.
Rialma. Rialma. Seu lema, "cidade da divisão territorial". Ceres é pólo, é centro, é destino. Rialma é divisão, é passagem. Os arquitetos que Argan conclama para reestruturarem a cidade, para "curarem" a cidade, precisam repensar a Rialma, desde suas origens. Rialma também cresce, desenvolve, mas desordenadamente, descompromissadamente com um projeto específico e homogêneo, não que se deva recorrer aos modos modernistas de planejamento, mas deve-se pensar uma Rialma como todo, como organismo, como parte de uma pseudo-conurbação com a cidade vizinha, Ceres. A cidade do outro lado do Rio. Rio que gerou seu próprio nome. Rio que a separa da tão vislumbrada Colônia de outrora. Que a impede de se unir de vez, e aceitar se tornar bairro, igual a Campinas na Capital. Rio que a impediu de se tornar Ceres. Rialma.


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BIBLIOGRAFIA
ARANHA, Benedito da Silva. Eu vi Ceres nascer. A saga do bandeirante Bernardo Sayão. Ceres, Goiás: João Batista Alves Filho, 2001.
ARGAN, Giulio Carlo. História da Arte como História da Cidade. São Paulo: Martins Fontes, 1998.
CAPOZZOLI, Ulisses. O branco que ressuscitou os índios. Scientific American Brasil, São Paulo, n.11, p.26-8, abr. 2003.
CARDOSO, Flávio Manoel Coelho Borges. Clúster de saúde de CERES (GO): um resgate de seu processo de formação e expansão. 200f. Tese Mestrado em Administração ? PUC ? MG, 2005.
FILHO, Isaias Macedo de Lima e SOUSA, Edvaldo Nepomuceno. A Saga de Rialma. Goiânia: Editora Kelps, 2005.
HOLSTON, James. Espaços de Cidadania Insurgente (publicado originalmente como "Spaces of Insurgent Citiznship" em Planning Theory 13:35-51, 1995).Revista do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional. [s.l.: s.n., s.d.]
IBGE. Estimativa da População 2009. Disponível em: acessado em: 23/06/2010.
IBGE. Serviços de Saúde 2005. Disponível em: acessado em: 23/06/2010.
IBGE. Instituições Financeiras 2007. Disponível em: acessado em: 23/06/2010.
SAYÃO, Léa. Meu pai, Bernardo Sayão. 4. Ed. Brasília: Centro Gráfico do Senado Federal, 1984.
Autor: Pedro Henrique Monteiro Andrade


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