As Maçãs De Outrora



Comer maçã com a mão é tão bucólico. Eu me sinto quase um Van Gogh. Verdade, me sinto dentro de um quadro de Van Gogh comendo maçã, sentado numa cadeira de palha retorcida com fundo verde diluído meio amarelado. A maçã é uma musa inspiradora, daquelas que só se vê em poesia lusitana. Entretanto, a maçã seria só uma fruta se não fosse comida com a mão. E com a consciência.

Porque comer maçã com a mão é também uma forma de protesto. Protesta-se contra o mundo enlatado dos supermercados. Cortar maçã com faca é antiético, deveria ser gesto banido por lei. Maçã deve ser cortada só com os dentes incisivos, como forma de se voltar contra a mediocrização dos talheres de plástico ou da exploração de minério pelas multinacionais.

A maçã está acima da luta de classes, porque é de uma essência que transcende a matéria. Ela vaga pelo infinito e quase tangencia a dialética platônica. Isto se for comida com a mão, é claro, caso contrário, a sua transgressão semi-erótica se reduziria a um artefato de feiras de rua. Só com a mão e com a consciência dos inconseqüentes.

Muitos vão me dizer: "Todos comem maçã com a mão, então o que há de mais nisso?". Comer com a mão pode ser algo exclusivamente mecânico. Deve-se ter a noção deste ato. Enquanto você come sua maçã, há bombardeios no Iraque, subnutrição em Darfur, caça às baleias no Pacífico. A maçã conta uma história. Os mesmos elementos que a constituem podem ter sido transpirados por Mahatma Gandhi, ou ingeridos por D. Pedro I, ou excretados por Alexandre, o Grande.

Passaram-se décadas, séculos ou até milênios para aquela maçã sair da criação do universo e cair aí, no meio dos seus molares. A maçã pode ter visto as primeiras bactérias se formarem, ou a extinção dos dinossauros, ou a ousadia dos primeiros primatas bípedes. Caminhou toda a história para sair das divisões binárias e pular para as mãos do complexo ser humano.

Quem diria que este seria um dos fins da maçã. Na realidade, não é o seu fim, é apenas um repouso, um dos poucos momentos de sua "vida" onde aquela espiral entrópica tem alguns minutos de silêncio, nas parábolas do ciclo da vida.

Só ouvindo as suas mordidas, periódicas e profundas. Suspensa pela sua mão, o produto de outras maçãs que nasceram e morreram na história do planeta, e fatiada pelos seus dentes, saboreada pela sua boca, digerida pelo seu estômago e, nossa, isto tudo daria inúmeras macieiras. A maçã, sendo comida na mão, reflete a evolução dos organismos, a relação presa-predador, a magnitude da vida. Mutável, infinita, perfeita.
Autor: Adriano Senkevics


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