Crítica da relação entre a Polícia e o Poder Executivo.



FLÁVIO CRISTIANO COSTA OLIVEIRA

1. INTRODUÇÃO.

No momento atual da história brasileira, quando casos emblemáticos de criminalidade e violência tornaram-se tão ordinários quanto o sentimento de impunidade e de ineficiência do sistema de segurança pública, nada mais pertinente do que o tema em epígrafe.

Segurança Pública tornou-se o assunto predileto dos meios de comunicação. Entretanto, em um nível de conhecimento mais empírico do que científico, a opinião pública tem colocado as questões exclusivamente operacionais das polícias como sendo a principal estratégia de solução para a crise na qual aquela se encontra inserida.

Destarte, não raro, podemos ouvir discursos que defendem a construção de penitenciárias de segurança máxima, a realização de concursos públicos visando o aumento dos efetivos policiais, a aquisição de armas e tecnologias modernas de combate ao crime organizado e a edição de leis mais severas, entre outras medidas.

Ocorre que, dificilmente, as pessoas costumam questionar a relação que existe entre a situação institucional das polícias e o princípio da eficiência aplicável à prestação dos serviços de segurança pública. Tampouco, se a relevante função das policias judiciárias estaduais é compatível com a situação de subordinação existente entre estas e o Poder Executivo dos Estados.
Nesse sentido o § 7º do Art. 144 da Constituição da República Federativa do Brasil de

1988 estabeleceu que a lei disciplinasse a organização e o funcionamento dos órgãos responsáveis pela segurança pública, de maneira a garantir a eficiência de suas atividades.

Entretanto, a situação de subordinação existente entre os corpos de polícias civis estaduais e os governadores dos Estados membros, ditada pelo § 6º do artigo 144 da
Constituição Federal de 1988, e as relações de poder que se estabeleceram a partir da prevalência da política sobre as polícias, demonstram que o processo emancipatório destas é uma das opções viáveis de aperfeiçoamento e imparcialidade do sistema de segurança pública brasileira.

2. AMEAÇA À INDEPENDÊNCIA ENTRE OS PODERES.

O mecanismo da separação entre os Poderes da soberania compõe parte do núcleo de gravidade do Estado Liberal.

O Estado Liberal, que historicamente sucedeu o modelo de Estado Absolutista, foi construído pelo caminho revolucionário, tendo por beneficiária a classe social burguesa.

A burguesia cuidou de limitar o poder do Estado através do seu fracionamento e de fórmulas representativas, com o intuito de se apoderar da máquina governamental e governar em proveito próprio.

Assim, o objetivo maior da fórmula separatista era prevenir a concentração de poder nas mãos de um ramo único da autoridade pública. Uma maneira de equilibrar e harmonizar os ramos da soberania conforme seus interesses econômicos.

O aperfeiçoamento da teoria foi obra de Charles-Louis de Secondat ou Barão de La

Bréde e de Montesquieu em sua obra Do Espírito das Leis.

Segundo José Afonso da Silva: "O princípio da separação de poderes já se encontra sugerido em Aristóteles, John Locke e Rousseau, que também conceberam uma doutrina da separação de poderes." (SILVA, 2007: 109). Assim, logo foi incorporado ao texto da declaração dos direitos do homem e das Constituições modernas.

No estágio atual de evolução do princípio, Paulo Bonavides considera a separação dos poderes "a mais sólida garantia constitucional do Estado de Direito ... o alicerce jurídico de todas as Constituições já promulgadas ... uma de suas colunas-mestras de sustentação e reconhecimento ... da qual não se pode prescindir sem correr o risco de recair nos regimes de exceção e arbítrio". (BONAVIDES, 2003:31).


O Princípio da Separação dos Poderes está previsto no artigo 2º da Constituição da República Federativa do Brasil de 1988 como um dos seus princípios fundamentais, acobertado inclusive, pela imutabilidade das cláusulas pétreas previstas no artigo 60.


A expressão Divisão dos Poderes constitui uma impropriedade, pois o Poder Político é soberano, o que lhe confere as características de unidade, indivisibilidade e indelegabilidade.


O que ocorre é a divisão de funções entre os órgãos constitucionais, através dos quais o Estado exerce as funções do Poder Político. Daí termos as funções: legislativa, executiva e jurisdicional.


Segundo Silva: "a função executiva se distingue em função de governo, com atribuições políticas, co-legislativa e de decisão, e função administrativa, com suas três missões básicas: intervenção, fomento e serviço público". (2007: 108).


Talvez por sua missão tradicional de executar as leis, ao Executivo tenha sido reservada a competência de gerir os organismos responsáveis pela segurança.


Entretanto, se juridicamente, as polícias são órgãos vinculados à Administração Pública do Executivo, responsável pela prestação do serviço de segurança pública interna, sob a perspectiva sociológica são uma força, um poder de fato, com a mesma natureza daquelas formas antigas que pela coação das armas formaram, expandiram ou destruíram reinos e impérios: que forjaram, enfim, o modelo de Estado Antigo.


Destarte, por essa peculiaridade, sua situação institucional deve ser devidamente arquitetada para que as polícias não sejam manipuladas para agirem contra os interesses da sociedade e das demais parcelas da soberania.


Do Estado moderno absolutista ao Estado neoliberal, as forças responsáveis pela segurança interna e externa das nações, sempre estiveram subordinadas ao Executivo.

Thomas Hobbes, principal teórico do Estado moderno absolutista em sua fase secular, acerca da relação entre o soberano e a força necessária para garantir a segurança dos súditos, escreveu que:


É nele que consiste a essência do Estado, que pode ser assim definida: uma grande multidão institui a uma pessoa, mediante pactos recíprocos uns com os outros, para em nome de cada um como outrora, poder usar a força e os recursos de todos, da maneira que considerar conveniente, para assegurar a paz e a defesa comum. Soberano é aquele que representa essa pessoa. Dele se diz que possui o poder absoluto. Todos os outros são súditos. (HOBBES,
2004: 131).


Os próprios filósofos contratualistas, responsáveis pelas bases doutrinárias do Estado Liberal, seguiram a mesma linha de pensamento de Thomas Hobbes quanto à relação entre o Executivo e o uso da força.


Jean-Jacques Rousseau, em sua obra Do Contrato Social, ao associar o Poder Executivo à força física que, nos corpos políticos, é responsável pelas ações, indiretamente acabou por fornecer amparo teórico para fundamentar a relação histórica de subordinação entre os corpos de polícia e o Poder Executivo. Assim, segundo Rousseau:


Toda ação livre tem duas causas, que concorrem a produzi-la: uma moral, que é a vontade que determina o ato; a outra física, que é a potência que o executa. Quando eu me dirijo a um objeto, necessário é primeiramente que eu lá queira ir; em segundo lugar, que os pés me levem. Queira um paralítico correr, não o queira um homem ágil, ambos ficarão quietos. Há no corpo político os mesmos motores; nele se distinguem também a força e a vontade; esta sob o nome de poder legislativo, aquela sob o de poder executivo, e sem o concurso desses dois poderes nada se faz ou deve fazer na sociedade política. (ROUSSEAU, 2007: 59).


John Locke, em sua obra o Segundo Tratado Sobre o Governo, também realiza a associação entre a força do Estado e o Poder Executivo.


Embora, como vimos, os poderes executivo e federativo de uma comunidade sejam de fato distintos entre si, seria de pouco proveito separá-los e colocá- los em mãos de pessoas distintas. Ambos exigem a força da sociedade para seu exercício, e é quase impraticável colocar-se a força do Estado em mãos distintas e não subordinadas, ou seja, os poderes executivo e federativo em pessoas que poderiam divergir, levando com isso a força da sociedade a ficar sob comandos diferentes, o que, em muitos casos, poderia ocasionar desordens e desastres. (LOCKE, 2004:107-108).


Por último, no mesmo sentido, Montesquieu, em sua obra Do Espírito Das Leis, defendia que o exército e as questões de segurança deveriam permanecer nas mãos do monarca, haja vista a necessidade de uma resposta rápida baseada mais na ação do que na deliberação.


Há em cada Estado três espécies de poder: o poder legislativo, o poder executivo das coisas que dependem do direito das gentes, e o poder executivo daquelas que dependem do direito civil ... Pelo segundo, determina a paz ou a guerra, envia e recebe embaixadas, estabelece a segurança, previne invasões. Pelo terceiro, pune os crimes ou julga as questões dos indivíduos. Chamaremos este último de poder de julgar e o outro chamaremos, simplesmente, o poder executivo do Estado ... O poder executivo deve permanecer nas mãos de um monarca, porque essa parte do governo, que quase sempre tem necessidade de uma ação instantânea, é mais bem administrada por um só do que por vários; enquanto o que depende do poder legislativo é, não raro, mais bem ordenado por muitos do que por um só ... O exército, uma vez estabelecido, não deve depender imediatamente do corpo legislativo, mas do poder executivo; e isso em virtude da natureza da coisa; sua existência consiste mais na ação que na deliberação. (MONTESQUIEU, 2004: 165-166, 170 e 174).


Assim, sejam Constituições liberais derivadas de assembléias constituintes ou outorgadas, sejam repúblicas ou monarquias constitucionais, a subordinação dos organismos responsáveis pela segurança vinculados ao poder executivo auxiliou a construir um cenário propício ao desequilíbrio entre os poderes pelo uso da força, mormente nos momentos de crise institucional. Sobre o Poder Executivo diz Paulo Bonavides:


O Executivo, o mais suspeito dos instrumentos de ação, por ser exatamente aquele mais sujeito a desvios de comportamento quando seu exercício não se acha rodeado das garantias acauteladoras de sua legitimidade ... O presidente acha-se fadado a se tornar sempre a eminência parda do regime, o centro de gravidade de uma poderosa influência pessoal à sombra do poder, a espada que há de pender sobre o Parlamento. (BONAVIDES, 1996: 77 e 85).


Na história do Brasil, podemos citar alguns exemplos desses desvios do Poder Executivo encorajados, também, pela soberania exercida sobre os instrumentos de força do Estado. Os exemplos são de Paulo Bonavides:


a) o ato imperial de dissolução da Constituinte de 1823 e outorga da Carta de
1824, por Dom Pedro I, baseada em princípios absolutistas e liberais;
b) no primeiro reinado, duras repressões por parte de Dom Pedro I contra os patriotas da legitimidade, os integrantes da Confederação do Equador, símbolo de resistência ao despotismo;
c) quatro ditaduras, uma das quais com duração de vinte anos, sete golpes de
Estado ostensivos - o da implantação da República, o da deposição de
Deodoro, o da queda de Washington Luis, o da derrubada de Getúlio e do
Estado Novo, o da deposição de João Goulart, o do AI-5 e o da Junta Militar que outorgou a Emenda 1, sem falar de atos institucionais, fechamento e recesso do Congresso Nacional. (BONAVIDES,1996: 82)


Vale acrescentar, a manipulação ideológica que, durante os regimes de exceção no Brasil, os corpos policiais sofreram de seus dirigentes políticos no sentido de passarem de órgãos de segurança para órgãos de polícia política. É inegável que a relação de subordinação com o poder executivo foi essencial para a ocorrência desse processo.


A relação de dependência entre a polícia e a política impede que esta crie uma identidade própria, que seus membros possuam um sentimento de identificação com o órgão e que estes tenham condições de desenvolver uma percepção geral e crítica do seu papel no ambiente institucional e social. O pensamento policial muda à mercê da duração dos mandatos dos chefes do Poder Executivo.


Esse é o mesmo posicionamento defendido pelo Deputado Federal Regis de Oliveira, relator da comissão especialmente designada para emitir parecer sobre a proposta de emenda à Constituição Federal de 1988 de Nº 549/2006. Preliminarmente, ao fazer uma breve retrospectiva histórica sobre a situação dos delegados de polícia, ele ressaltou que:


Durante o período da ditadura, o setor de inteligência da Polícia Civil foi utilizado indevidamente para reprimir a ação de adversários políticos, estudantes artistas e líderes operários, sob o olhar complacente dos demais órgãos. É relevante esclarecer que tal situação ocorreu à revelia de seus dirigentes, porque a Polícia Judiciária, sem autonomia funcional e administrativa, foi literalmente obrigada a participar desse movimento de opressão, sendo utilizada pelo Chefe do Poder Executivo como uma arma contra os seus inimigos. Após o regime de exceção, as autoridades policiais passaram a sofrer, de forma implacável, represália política, pela atividade repressiva que exerceram naquela época difícil e tumultuada. A estratégia estabelecida para se vingar da atuação dos delegados de polícia durante o regime militar foi aviltar os seus salários e jogá-los na vala comum do funcionalismo público. (Disponível em:
16/08/2007).


A revolução tecnológica que mudou os hábitos de toda a humanidade, também influenciou os modelos de policiamento. Ao ingressar na fase de inteligência, juntamente com seus superiores e chefes políticos, a polícia uniu ao seu poder de fato, o poder advindo da informação. Os governos trataram de equipar suas polícias com modernos equipamentos de escuta e sofisticados programas de computador.

Entretanto, a legitimidade do domínio do Poder Executivo sobre esses especializados mecanismos e seus operadores policiais foi suscitada, indiretamente, em recente matéria denominada À Sombra do Estado Policial, veiculada na revista Veja, (edição 2.022 -ano 40- Nº 33 de 22 de agosto de 2007), onde os ministros do Supremo Tribunal Federal, órgão de cúpula do Poder Judiciário no Brasil, queixavam-se de escutas clandestinas promovidas por setores da Polícia Federal, denominados de banda podre, para identificar o cunho ilegal e política das escutas.


Na referida matéria, segundo o ministro do Supremo Tribunal Federal, Gilmar Mendes: "A Polícia Federal se transformou num braço de coação e tornou-se um poder político que passou a afrontar os outros poderes". (p.54)


Celso de Mello, também ministro da suprema corte brasileira, afirmou que: "É intolerável essa atmosfera que vivemos, com a conduta abusiva de agentes ou órgãos entranhados no aparelho de estado. A interceptação telefônica generalizada é indício e ensaio de uma política autoritária." (p.52)


Policarpo Junior, autor do citado artigo afirma que:



Os abusos no comportamento da PF [Polícia Federal], no entanto, não se esgotam nas suspeitas de grampo ilegal. Também há suspeitas de manipulação do conteúdo de gravações feitas legalmente. Pela lei, os policiais precisam transcrever todo o diálogo telefônico monitorado, e não apenas um resumo. Hoje, pinça-se o que a polícia quer e o que acha que deve ser informado. Os juízes também decidem com base em extratos. Isso é muito arriscado, diz o ministro Marco Aurélio. (p.56).


Ocorre que esses casos de suspeita de abuso do poder tecnológico não se restringem ao âmbito da polícia judiciária da União, mas também às Polícias Civis, policias judiciárias dos Estados da União.


Outro caso emblemático de suspeita de abuso de poder do executivo sobre a moderna inteligência policial ocorreu no Rio Grande do Norte, em que o Corregedor Geral da Secretaria Estadual de Segurança Pública e da Defesa Social denunciou ter sido exonerado do seu cargo por ter investigado o Secretário de Segurança Pública do Governo Estadual por mau uso de um sistema de interceptação telefônica, chamado Guardião. O guardião é um sistema de software e hardware capaz de gravar simultaneamente centenas de ligações.
(disponível em: http://www.direitos.org.br/index2.php?option=com_content&task=view&id

=721&pop =2&page=0&Itemi. Acesso em: 19/09/2007).



A partir dos exemplos demonstrados, podemos inferir que o Poder Executivo, seja Federal ou Estadual, carece de legitimidade histórica para exercer, com exclusividade, o comando supremo sobre os corpos de polícias, federais ou estaduais.


Não obstante a organização das polícias ser feita mediante processo legislativo com a participação do Poder Legislativo e do Poder Executivo e, outrossim, dispor o Poder Judiciário de exercer o controle de validade das leis, a experiência do passado ensina que, em momentos de crise institucional, tais competências são um terreno fértil para as negativas conseqüências que a prevalência do Poder Executivo sobre o uso da força podem ocasionar às liberdades públicas.


Já é tão constitutivo, tão da essência do Poder Executivo mandar nas polícias, que uma tentativa de emancipação destas pela via do Poder Constituinte Derivado, poderia enfrentar alegativas de que tal desiderato estaria infringindo a cláusula pétrea da separação dos Poderes (inciso III,§ 4º do artigo 60 da Constituição da República Federativa do Brasil de 1988).


Assim, haja vista a herança histórica do comando exercido pelo Poder Executivo sobre as polícias, ter se tornado uma cultura tão arraigada ao nosso pensamento constitucional, o Projeto de Emenda Constitucional Nº 184/07 de autoria do Deputado Federal Laerte Bessa (PMDB do DF) e demais co-autores, que dispõe sobre a autonomia das Polícias Judiciárias, em várias passagens, ainda mantém a presença do Poder Executivo nos assuntos referentes às Polícia Civis; um absurdo que passa desapercebido pelas mentes bem intencionadas.

É insofismável que o referido projeto de emenda constitucional propõe avanços, tais como: a) a inclusão dos delegados de polícia no quinto constitucional, b) a previsão de crime de responsabilidade para os atos do Poder Executivo que atentem contra o livre exercício da polícia judiciária, c) o tratamento das polícias judiciárias no capítulo que trata das funções essenciais à Justiça e d) a retirada, expressa, das polícias judiciárias da situação de subordinação em relação aos Governadores dos Estados.


Entretanto, ainda prevê o formato unipessoal dos cargos de direção das polícias civis estaduais e, inclusive, a possibilidade de nomeação e de destituição dos Delegados-Gerais das Polícias Civis dos Estados por iniciativa dos respectivos Governadores, aos quais também ficou facultada a iniciativa das Leis Complementares Estaduais que estabelecerão a organização, as atribuições e o estatuto de cada instituição.


É sabido que a nova visão da teoria da separação de poderes sugere novas maneiras de relacionamento entre os órgãos legislativo, executivo e judiciário, rumo a um processo de colaboração e não de separação.


Destarte, como forma de aprimorar o atual sistema de freios e contrapesos, buscando atingir um ponto de equilíbrio ideal, as polícias civis deveriam ser emancipadas, completamente, de qualquer forma de dependência em relação ao Poder Executivo.


Através de uma emenda constitucional, que elevasse as Polícias Civis à categoria de uma instituição com autonomia administrativa, financeira e orçamentária, seria possível a criação de novas leis de organização para as polícias civis, dotando-as de órgãos com formatos colegiados, com, inclusive, a inserção de outros mecanismos legais, ou seja, a criação de garantias pessoais e institucionais de independência funcional, que reforçariam o combate ao risco de ingerências políticas.


A participação dos membros do Poder Judiciário, do Ministério Público, da sociedade civil, da advocacia pública e particular e de representantes de todas as carreiras policiais (delegados de polícia, agentes de polícia, escrivães e peritos) dentro de um órgão colegiado de direção da Polícia traria os seguintes benefícios: a) garantia de independência institucional contra as interferências políticas do Poder Executivo; b) inclusão e aproximação entre as polícias civis e as demais carreiras jurídicas e c) reforço à teoria dos freios e contrapesos, d) desnecessidade futura de criação de órgãos de controle externo das polícias civis como o Conselho Nacional de Justiça e o Conselho Nacional do Ministério Público e e) democratização.


Uma proposta nesse sentido, não estaria infringindo a cláusula pétrea contida no inciso III do § 4º do artigo 60 da Constituição Federal. Pelo contrário, o equilíbrio proporcionado pela mudança, garantiria, ainda mais, a separação harmônica entre os poderes, protegida pela referida cláusula de imutabilidade.

Principalmente se considerarmos que, atualmente, o princípio da separação dos poderes já não possui os mesmos contornos propostos por Montesquieu, pois:


[...] nem a divisão de funções entre os órgãos do poder nem sua independência são absolutos. Há interferências, que visam ao estabelecimento de um sistema de freios e contrapesos, à busca do equilíbrio necessário à realização do bem da coletividade e indispensável para evitar o arbítrio e o desmando de um em detrimento do outro e especialmente dos governados. (SILVA, 2007: 110).


O Ministério Público, após alcançar certo nível de autonomia e independência, passou a desempenhar considerável papel de garantidor da Separação entre os Poderes.

Defender a permanência da relação de subordinação entre a polícia e o Executivo é insistir na permanência de um modelo superado de insofismável orientação liberal. A hegemonia do Executivo sobre as polícias se coaduna com as hodiernas necessidades do neoliberalismo globalizado. Ela representa a segurança, a estabilidade e a certeza, incluídas num conceito de ordem pública, perfeitamente ajustado às necessidades dos mercados e das finanças.




3. POSSIBILIDADES DE INGERÊNCIAS POLÍTICAS.



O governo é uma expressão aplicável aos três órgãos constitucionais responsáveis pelo exercício das funções do poder político do Estado.


Nessa perspectiva, a atividade governamental depende da harmonia entre os trabalhos do Legislativo, do Executivo e do Judiciário.

Uma visão ética da política aplicável ao Poder Executivo, dentro desse mecanismo de freios e contrapesos, significa o exercício de suas funções governamentais visando à promoção do bem público e dos valores fundamentais consagrados pela Constituição Federal.


Entretanto, também é possível construirmos um conceito negativo de política aplicável ao Executivo, conseqüência da queda do nível moralidade que, hodiernamente, atinge considerável parcela da humanidade. Segundo Bonavides (): "A queda moral das lideranças desenha-se a cada passo em virtude da gangrena de corrupção que invade e afeta os principais órgãos e tecidos do corpo administrativo da Nação". (1996:18)


Destarte, o Executivo atua politicamente de forma negativa quando cumpre seu papel constitucional visando atender interesses político-partidários, pessoais ou econômicos que lhe garantam vantagens de conquista, exercício desarmônico e permanência no poder.


A prática da política negativa já está tão incorporada ao discurso político moderno que desvios de comportamento na relação entre os Poderes são interpretados com naturalidade pelo quadro social.


Assim, é comum assistirmos o Poder Executivo negociando, publicamente com as demais lideranças políticas, o preenchimento de cargos em comissão e funções de direção, chefia e assessoramento de seus quadros administrativos, como forma de conseguir apoio político no Parlamento que lhe permita governar. Uma completa distorção da função dos mecanismos dos freios e contrapesos e dos Princípios constitucionais da Moralidade e Eficiência.


Haja vista a relação entre os órgãos policiais e o Poder Executivo ser de dependência e subordinação, aqueles também passam a ser utilizados como instrumentos a serviço da luta do poder pelo poder.


Vários fatores estimulam para que ocorram ingerências políticas sobre as polícias:


a) o formato unipessoal dos cargos de direção e chefia dos órgãos policiais;

b) a nomeação política como critério de acesso aos referidos órgãos;

c) a ausências de mecanismos legais que protejam os órgãos policiais dos riscos da politização;
d) a situação de subordinação e dependência dos órgãos policiais em relação ao Poder

Executivo;

e) a ausência de garantias de Independência funcional;

f) a exclusão da sociedade, dos demais poderes e operadores do Direito nos órgãos de gestão e direção dos corpos policiais;


As ingerências políticas podem, perfeitamente, materializarem-se sob a forma de:



a) nomeações de natureza política para os cargos em comissão e as funções de confiança;
b) remoções punitivas movidas por interesses de perseguições políticas e ideológicas, eclipsadas por conceitos jurídicos indeterminados e pelo uso indevido do poder disciplinar;
c) indicações de autoridades policiais por encomenda para presidirem inquéritos policiais de interesse político;
d) criminalização de movimentos sociais;

e) lotações e promoções privilegiadas;

f) abuso do poder tecnológico.

Vale salientar, que reputamos preocupante a situação dos Municípios que dependam da ação de corpos de polícias sujeitas à politização e ingerências.


Já foi dito que os Municípios brasileiros foram excluídos expressamente do sistema de segurança pública. Deste modo a qualidade da segurança municipal depende menos deste do que da vontade política do Poder Executivo Estadual.
Caso ocorram divergências político-partidárias entre as lideranças das duas esferas políticas, o Poder Executivo Estadual, caso adote um visão negativa de polícia, terá aptidão para dar tratamento diferenciado aos órgãos policiais de execução fixados naquele território municipal, afetando positivamente ou desfavoravelmente à população municipal diretamente interessada.


Enfim, a ingerência política tem a capacidade de transformar o ambiente policial numa arena de intrigas e disputas pessoais, onde a hierarquia maior é dos indivíduos protegidos pelas lideranças políticas com maior força e prestígio.




4. OBSTÁCULO AO SURGIMENTO DE MECANISMOS DE GARANTIA DE INDEPENDÊNCIA FUNCIONAL.


Vimos, no tópico anterior, que a ausência de garantias de independência funcional das Polícias Civis e de seus membros favorecem a ocorrência de ingerências políticas por parte do Poder Executivo.


Entretanto, tal situação tende a se perpetuar, primeiramente, pela opção do legislador constituinte em colocar os corpos de polícias estaduais subordinadas ao poder hierárquico dos respectivos Governadores e, segundo, pela tendência natural destes em continuarem exercendo, com exclusividade, comando supremo sobre essa parcela do braço armado do Estado.


Não obstante os representantes dos Ministérios Públicos Estaduais poderem iniciar a ação penal com supedâneo em outras peças de informação que não o inquérito policial, a prática processual revela que, na grande maioria das situações, o produto do trabalho das Polícias Civis ainda é o subsídio prevalente das denúncias.

Assim, a importância do papel dos delegados de polícia no sistema criminal hodierno é inegável. Principalmente se considerarmos que existem certos crimes que, pela natureza transitória de sua materialidade, exigem uma cautela probatória imediata, a qual deveria ser promovida por autoridades policiais independentes e imparciais. Pois como dizia Locard, o tempo que passa é a verdade que foge.


Ocorre que os membros do Poder Judiciário e do Ministério Público, co-autores, juntamente com os membros das Polícias Civis, para a construção da Justiça Penal Estadual, foram agraciados pela Constituição Federal com garantias de proteção institucional, inclusive para os seus representantes, que visam garantir a independência de juízes de direito e promotores de justiça no exercício de suas funções.


As garantias de independência funcional dos membros do Poder Judiciário e do Ministério Público dividem-se em garantias institucionais e garantias aplicáveis aos seus membros.


As garantias institucionais aplicam-se à Instituição (Poder Judiciário e Ministério Público) como sendo um todo e lhes asseguram independência em suas relações com os outros Poderes. Têm fundamento, mormente, na necessidade de existência de uma Justiça de cunho republicano, que assegure aos seus públicos protagonistas os atributos de independência e imparcialidade.


As garantias institucionais são constituídas pela autonomia funcional, autonomia administrativa, autonomia financeira e pelo modo de acesso dos dirigentes dos Tribunais e das chefias dos Ministérios Públicos Estaduais.


Pela autonomia funcional, os juízes de direito e os promotores de justiça, no exercício dos respectivos deveres funcionais, estão submetidos apenas aos limites traçados pelo ordenamento jurídico e por suas consciências, cujas manifestações devem estar devidamente motivadas.


Em relação ao Poder Judiciário, a autonomia administrativa significa que seus membros:
1) Detêm poder de iniciativa legislativa para dispor sobre seu Estatuto (artigo 93 da

CF/88);



2) Elegem seus órgãos diretivos e elaboram seus regimentos internos, com observância das normas de processo e das garantias processuais das partes, dispondo sobre a competência e o funcionamento dos respectivos órgãos jurisdicionais e administrativos (artigo 96, I, a da CF/88);


3) Organizam suas secretarias e serviços auxiliares e os dos juízes que lhes forem vinculados, velando pelo exercício da atividade correcional respectiva (artigo 96, I, b da CF/88);


4) Dão provimento, na forma prevista na Constituição Federal, aos cargos de juiz de carreira da respectiva jurisdição (artigo 96, I, c da CF/88);


5) Propõem a criação de novas varas judiciárias (artigo 96,I, d da CF/88);



6) Dão provimento, por concurso público de provas ou de provas e títulos, obedecido o disposto no artigo 169, parágrafo único da CF, os cargos necessários à administração da Justiça, exceto os de confiança assim definidos em lei (artigo 96, I, e da CF/88);


7) Concedem licença, férias e outros afastamentos a seus membros e aos juízes e servidores que lhes forem imediatamente vinculados.


A autonomia administrativa do Ministério Público encontra-se prevista no § 2º do artigo

127 da Constituição Federal: "Ao Ministério Público é assegurada autonomia funcional e administrativa, podendo, observado o disposto no artigo 169, propor ao Poder Legislativo a criação e extinção de seus cargos e serviços auxiliares, provendo-os por concurso público de provas ou de provas e títulos, a política remuneratória e os planos de carreira, a lei disporá sobre sua organização e funcionamento."


Outrossim, o § 5º do artigo 128 da Constituição Federal faculta aos respectivos

Procuradores-Gerais dos Ministérios Públicos Estaduais, a iniciativa de leis que estabeleçam

a organização, as atribuições e o estatuto de cada Ministério Público. A autonomia financeira, segundo Alexandre de Moraes, citando Hely Lopes Meireles:


[...] é a capacidade de elaboração da proposta orçamentária e de gestão e aplicação dos recursos destinados a prover as atividades e serviços do órgão titular da dotação. Essa autonomia pressupõe a existência de dotações que possam ser livremente administradas, aplicadas e remanejadas pela unidade orçamentária a que foram destinadas. Tal autonomia é inerente aos órgãos funcionalmente independentes, como o Ministério Público e o Tribunal de Contas, os quais não poderiam realizar plenamente as suas funções se ficassem na dependência de outro órgão controlador de suas dotações orçamentárias (MORAES, 2007: 606).


Assim, apesar de não disporem de recursos financeiros próprios, o Poder Judiciário e o Ministério Público dispõem de poder de iniciativa exclusiva para identificar os recursos indispensáveis ao provimento de suas despesas.


O modo de acesso dos dirigentes dos Tribunais e dos chefes dos Ministérios Públicos Estaduais, também constitui uma garantia institucional uma vez que é feito com a participação dos seus membros.


Enfim, temos as garantias de independência funcional aplicáveis, individualmente, aos membros do Poder Judiciário e do Ministério Público. Elas são: a vitaliciedade, a inamovibilidade e a irredutibilidade de subsídios. Estão previstas no artigo 128, I, a. b e c e no artigo 95, I, II e III da Constituição Federal.


A vitaliciedade significa que juízes e promotores que a adquiram, somente poderão perder seus cargos por decisão judicial transitada em julgado.


A garantia da inamovibilidade aplicada aos juízes significa que "o ato de remoção, disponibilidade e aposentadoria de magistrado, por interesse público, fundar-se-á em decisão por voto da maioria absoluta do respectivo tribunal ou do Conselho Nacional de Justiça, assegurada ampla defesa" (artigo 93,VIII c/c artigo 95 da CF/88).


Em relação aos membros do Ministério Público, a garantia de inamovibilidade condiciona a remoção do titular do respectivo cargo a motivo de interesse público, através de decisão de órgão colegiado competente do Ministério Público pelo voto da maioria absoluta de seus membros, assegurada ampla defesa (artigo 128, § 5º, I, a, b e c da CF/88).


Como componente das garantias de independência funcional do Poder Judiciário, a Constituição Federal no inciso XXXVII do seu artigo 5º prevê, expressamente, o Princípio do Juiz Natural, segundo o qual: "não haverá juízo ou tribunal de exceção."


O Princípio do Juiz natural possui o seguinte conteúdo:


1) prévia determinação dos magistrados através de leis gerais;

2) independência e imparcialidade;

3) estabelecimento de critérios objetivos para a determinação da competência dos juízes e
4) observância das determinações de procedimentos referentes à divisão funcional interna.


A jurisprudência também reconhece a aplicação do referido princípio aos promotores de justiça.

Realizando uma análise comparativa entre a situação das autoridades policiais (delegados de polícia), os membros do Poder Judiciário (juízes de direito) e os membros do Ministério Público (promotores de justiça), sob a perspectiva das garantias de independência funcional, podemos concluir que a fase da persecução penal em que as Polícias Civis atuam, representa o ponto mais vulnerável, o Tendão de Aquiles, do sistema criminal.


As justificativas para essa afirmação são:



1) os Governadores dos Estados exercem, exclusivamente, poder hierárquico, disciplinar e regulamentar sobre os corpos de polícias;
2) detêm o poder de iniciar, exclusivamente, o processo legislativo estadual que discipline a organização, os direitos, as garantias, os deveres e, inclusive, a política remuneratória das polícias estaduais;
3) a escolha dos cargos de direção das polícias civis é feita, exclusivamente, pelo representante do Poder Executivo Estadual;
4) as questões orçamentárias e financeiras, como a quantidade da dotação orçamentária, a administração e aplicação dos recursos, são decididas pelos Governadores dos Estados auxiliados pelos Secretários de Segurança Pública e pelos ocupantes dos cargos em comissão que os auxiliam na direção dos assuntos financeiros afetos às Polícias Civis. Normalmente, os ocupantes desses cargos são pessoas ligadas à administração do Poder Executivo por questões políticas ou pessoais. Vindas de outros poderes, órgãos ou instituições, habitualmente desconhecem as peculiaridades, as necessidades e a realidade do trabalho policial, motivo pelo qual tendem a executar gestões financeiras incompatíveis com o princípio da eficiência aplicável aos órgãos responsáveis pela segurança pública.
5) as autoridades policiais não dispõem de garantias pessoais de independência funcional como a vitaliciedade ou inamovibilidade. Os delegados de polícia, na qualidade de servidores públicos, apesar de desempenharem relevante papel para a
promoção da Justiça Criminal Estadual, não possuem mecanismos que lhes garantam o direito de exercer suas funções com certa estabilidade territorial.

Com o objetivo de assegurar a garantia de inamovibilidade aos delegados das polícias civis e federal, foi apresentada a proposta de emenda constitucional Nº 221/2003 pelo Deputado Federal Reinaldo Betão (PL-RJ) e outros parlamentares. A proposta visava acrescentar o § 10º ao artigo 144 da Constituição Federal. Consoante o texto, os delegados de polícia gozariam da garantia da inamovibilidade, salvo por motivo de interesse público, mediante decisão do Conselho Superior de Polícia.
A pretensão de garantia da inamovibilidade aos delegados de polícia padeceria do risco de tornar-se um mecanismo legal inócuo, caso não fosse reformulada a composição e os critérios de acesso dos membros dos Conselhos Superiores de Polícia já existentes.

Destarte, para que a garantia da inamovibilidade realmente transforme-se em um eficiente instrumento jurídico de garantia contra o risco de interferências políticas, é necessário que a norma também crie rígidas fórmulas que protejam os membros do próprio Conselho contra a influência do Poder Executivo.

Recentemente, a proposta de emenda à Constituição Federal de Nº 549/2006, de autoria do Deputado Federal Arnaldo Faria de Sá (PTB/SP) procurou acrescentar o artigo 251 às Disposições Gerais da Constituição Federal, concedendo aos delegados de polícia o direito à remuneração através de subsídio, que teria o mesmo valor da retribuição pecuniária paga aos membros do Ministério Público, que participam das diligências na fase investigatória criminal.


A justificativa principal foi a de que os delegados de polícia têm o direito de perceber tal remuneração, pois são considerados agentes políticos e exercem atividades que possuem natureza jurídica, similares às desenvolvidas pelos promotores de justiça e procuradores da república, durante a persecução criminal preliminar.

A ausência de autonomia administrativa das polícias civis e a possibilidade de ocorrência de ingerências políticas também podem produzir os seguintes efeitos indesejáveis:

1) carreirismo;

2) sub-utilização do potencial científico das academias de formação policial;

3) manutenção de um modelo superado de atividades investigativas.


O agrupamento dos cargos de Delegado de Polícia em carreira é conseqüência da autonomia administrativa concedida ao Poder Executivo Estadual para organizar o serviço público. Assim, ele dispõe de competência para criar, transformar e extinguir cargos, empregos e funções através de lei de sua iniciativa exclusiva.

A justificativa de se inserir os delegados de polícia numa carreira administrativa, distribuída em graus e classes, aos quais correspondem diversos subsídios, subindo de valor dos níveis mais inferiores aos superiores, seria a de estimular o aperfeiçoamento profissional e um estímulo à prestação eficiente do serviço.


Entretanto, o procedimento das promoções, decididas pela cúpula dirigente das polícias civis, que é nomeada pelo Chefe do Poder Executivo Estadual, é, também, de natureza subjetiva. Com ressalva para os casos de promoção por antiguidade que obedecem aos critérios objetivos do tempo de serviço.


A distribuição dos delegados de polícia em classes, inserida numa estrutura organizacional burocrática e autocrática seria uma forma de mitigar a autonomia funcional dessas autoridades e mantê-los em sintonia com a política de segurança pública adotada pelo ocupante da chefia da administração pública estadual.


Costuma-se chamar esse fenômeno de carreirismo. Sobre o carreirismo, quando aplicável aos magistrados, José de Albuquerque Rocha, escreveu que:


Outro efeito sério do sistema do juiz- servidor público inserido em uma carreira é o risco de deixar-se seduzir pelo fenômeno patológico do carreirismo, levando-o a preocupar-se, preponderantemente, com as promoções em detrimento dos deveres do cargo e do aprimoramento intelectual, gerando assim, o afrouxamento das obrigações do cargo e a incompetência técnico-profissional. Ademais, ... a necessidade irresistível da promoção impele o magistrado a desenvolver gestões altamente funestas para sua dignidade como para sua independência. (ROCHA, 1995: 46-47).



Assim, o carreirismo aplicável a juízes de direito ou aos delegados de polícia produz os mesmos efeitos indesejáveis. Igualmente, estimula a competição por espaços de poder no ambiente interno dos organismos policiais, juntamente com o espírito de desagregação.


Na organização administrativa das polícias civis existem as unidades responsáveis pela formação e aperfeiçoamento dos membros das carreiras policiais. Ordinariamente são chamadas de academias de polícia. A escolha do ocupante do cargo de direção das academias de polícia, do conteúdo da grade curricular dos cursos de formação e, inclusive, do corpo docente, não estão incólumes ao crivo e às opções ideológicas do poder político.

As normas que estabelecem o procedimento e os critérios de preenchimento dos cargos de direção costumam deixar certa margem subjetiva para favorecimentos em detrimento da elevada qualificação acadêmica de pretendentes preteridos.


A formação com o predomínio do conhecimento jurídico-processual não mais se coaduna com as necessidades de uma nova sociedade que exige do policial uma visão científica e interdisciplinar do fenômeno criminal. Pois:


[...] o conhecimento sobre ciências jurídicas, sendo condição necessária, não é condição suficiente para o exercício pleno da atividade investigativa. Além do Direito, o Delegado de Polícia passa a ser um profissional versado na teoria do conhecimento e epistemologia ... com esta bagagem torna-se apto a promover sob os rigores do método científico e das exigências jurídico- formais a correlação otimizada entre as evidências subjetivas e objetivas do evento criminal. (Portaria Nº 2, de 12 de dezembro de 2004, publicada no DOU Nº 10, seção 2, de 14 de janeiro de 2005).




Também vale salientar por oportuno que:



[....] a ausência de uma teoria geral da ação policial investigativa habilitada a referenciar a produção contínua de saberes para os problemas e dilemas desta atividade pública, marcou a história das Polícias Civis brasileiras por soluções quase sempre movidas por um pragmatismo utilitarista, tributário de uma cultura burocrática voltada para o formalismo. ((Portaria Nº 2, de 12 de dezembro de 2004, publicada no DOU Nº 10, seção 2, de 14 de janeiro de 2005).




Logo, a politização e a falta de autonomia administrativa podem interferir no preenchimento dos cargos de direção das academias de formação e no conteúdo das disciplinas, os quais passam a ter uma natureza dogmática que causa desperdício à potencialidade científica que o ambiente policial possui.


Cada unidade organizacional, mormente as delegacias de polícia, representa uma diversidade de informações que poderiam ser transformadas em conhecimento científico em benefício da ação investigativa, desde que fossem devidamente trabalhadas.


A tradição burocrática, formalista e antidemocrática da administração pública brasileira associada à situação de dependência das Polícias Civis em relação ao Poder Executivo contribuiu para influenciar o tipo de ação investigativa adotada pela polícia civil.

Haja vista a necessidade de se elaborar um modelo mais eficiente de polícia de investigações, um grupo de estudos, composto por diversas autoridades em matéria de segurança pública elaborou um documento intitulado Modernização da Polícia Civil Brasileira.


Analisando os fundamentos da prática policial civil, a comissão concluiu pela necessidade de superação do modelo vigente, uma vez que:


1) tem uma visão compartimentada da atividade finalística, quando na realidade, deveria estimular uma percepção universal, analítica e interdisciplinar da ação investigativa;


2) é pautado no paradigma reducionista que resulta da prática estritamente jurídico- processualista da ação investigativa, sendo que "[...] esta situação deixa os policiais permeáveis a ideologias, portanto sujeitas ao vácuo de políticas profissionais". (p.10 do anexo 5) Quando, na realidade, o policial de investigação deveria ser


[...] capacitado para compreender criticamente o fenômeno criminal e intervir sobre ele com uma motivação descritiva voltada não só para o processo penal, mas atuando no traçado de cenários preventivos e propositivos, articulando-se com outras esferas de governo e da sociedade. (p.11 do anexo 5)


3) os papéis das carreiras de investigação sujeitas a "[...] cultura positivista da instituição de cargos de perfil meramente funcionalista, sem força de articulação gerencial dentro da produção culta da investigação policial". (Portaria Nº 2, de 12 de dezembro de 2004, publicada no DOU Nº 10, seção 2, de 14 de janeiro de 2005).


4) a investigação costuma ser identificada com a ideologia da perseguição aos bandidos, "[...] resíduos de uma mentalidade autoritária, que ainda inspira alguns policiais brasileiros, projetando-se para atividades à margem da ética, da lei e das exigências constitucionais da Nação Brasileira". (Portaria Nº 2, de 12 de dezembro de 2004, publicada no DOU Nº 10, seção 2, de 14 de janeiro de 2005)


Não obstante o projeto em questão ter pretendido ser uma proposta política de renovação dos métodos das polícias civis, deixou intocável a posição institucional de subordinação vivenciada por esses corpos de polícias.

No dia a dia das delegacias pode-se perceber que, nem todos os agentes policiais lotados num distrito participam das investigações acerca das ocorrências registradas.


As investigações costumam ficar a cargo de uma equipe escolhida pelo Delegado, geralmente por questões pessoais, denominada de equipe de campo, o grupo de elite da delegacia.


A conseqüência desse modelo de trabalho, inserido no ambiente macro de disputa interna de poder e promoção, é a disseminação do sentimento de ausência de identidade e desmotivação por parte dos policiais excluídos desse processo. Razão pela qual se pode acrescentar às considerações do texto-base elaborado pela comissão retrodita a afirmação que o modelo investigativo adotado é:


1) centralizador, na medida em que concentra os trabalhos investigativos em torno de um grupo restrito;
2) pessoal, haja vista o critério utilizado pela autoridade policial na escolha do grupo de trabalho e
3) não solidário, quando exclui do processo outros policiais aos quais ficam reservadas outras atividades de nível inferior e de caráter não investigatório.


Assim, como a Constituição Federal não disciplinou a questão das Polícias Civis no sentido de viabilizar o surgimento de garantias institucionais e das garantias da inamovibilidade e da vitaliciedade, também não é possível, atualmente, se cogitar da existência do princípio do delegado natural.


Como conseqüência do Poder Hierárquico, o chefe superior da administração policial tem a faculdade implícita de dar ordens, fiscalizar o seu cumprimento, avocar e delegar atribuições e rever os atos dos inferiores. Assim, conforme Meireles: "Do poder hierárquico decorrem faculdades implícitas para o superior, tais como a de dar ordens e fiscalizar o seu cumprimento, a de delegar e avocar atribuições e a de rever os atos de inferiores...". (2004:119-121).
Uma mudança normativa que permitisse a adoção do Princípio do Delegado Natural traria os seguintes benefícios para a Justiça Criminal:


1) vedação da possibilidade de existência das investigações por encomenda, realizadas por autoridades policiais escolhidas parcialmente pela cúpula da Administração Pública, após a ocorrência do fato criminoso;
2) fim do controle exclusivo do Poder Executivo sobre o mecanismo de substituição, convocação e designação de autoridades policiais;
3) independência e imparcialidade nas investigações;

4) aplicação das regras prévias, gerais e decisivas para a determinação da autoridade policial a atuar nas investigações.


A posição de vulnerabilidade das Polícias Civis frente ao Poder Executivo, e indiretamente frente ao Poder Legislativo, implica reconhecer que não existem garantias reais de que seus membros executem suas funções com independência e imparcialidade.


Defender o oposto significa submeter as autoridades policiais e seus serviços auxiliares a uma verdadeira maratona de pressões e perseguições políticas, promovidas pela possibilidade de manipulação das ações da Administração Pública em virtude dos interesses pessoais do seu titular.




5. DISTANCIAMENTO ENTRE A JUSTIÇA E AS POLÍCIAS CIVIS



Consoante o § 4º do artigo 144 da Constituição Federal, às polícias civis incumbem as funções de apuração das infrações penais e de polícia judiciária dos Estados.


Ao tomar conhecimento da prática de infração penal a autoridade policial deverá:



1) dirigir-se ao local, providenciando para que não se alterem o estado e conservação das coisas, até a chegada dos peritos criminais;
2) apreender os objetos que tiverem relação com o fato, após liberados pelos peritos criminais;
3) colher todas as provas que servirem para o esclarecimento do fato e suas circunstâncias;
4) ouvir o ofendido e o indiciado;

5) determinar, se for o caso, que se proceda a exame de corpo de delito e a quaisquer outras perícias (artigo 6º do Código de Processo Penal Brasileiro).


Todos esses atos praticados pela autoridade policial, com o objetivo de esclarecer a autoria, as circunstâncias e de provar a materialidade do fato criminoso, devem ser reduzidos a termo para comporem o inquérito policial.


Após o término do inquérito policial, o delegado de polícia fará um minucioso relatório do que tiver apurado e enviará os autos ao juiz competente (§ 1º do artigo 10 do Código de Processo Penal Brasileiro).


Constitui esta, em linhas gerais, a atividade repressiva executada pelas polícias civis a qual a Constituição denomina de "funções de apuração das infrações penais" em oposição às funções de polícia judiciária.


Atuando como polícia judiciária, incumbe às autoridades policiais civis, dentre outras atribuições:


1) fornecer às autoridades judiciárias as informações necessárias à instrução e julgamento dos processos;
2) realizar as diligências requisitadas pelo juiz;

3) cumprir os mandados de prisão expedidos pelas autoridades judiciárias.



Entretanto, mesmo atuando repressivamente na apuração das infrações penais, as polícias civis devem trabalhar voltadas para a questão da Justiça, pois:


1) o produto da investigação policial tem a Justiça como destinatária;

2) se houver a necessidade de aplicação de medida cautelar privativa da liberdade, fora dos casos de flagrante delito, a autoridade policial deve representar para a autoridade judicial;






3) caso haja necessidade de prática de atos que possam causar ofensa aos direitos fundamentais é necessária a prévia autorização judicial;
4) o Poder Judiciário realiza o controle de legalidade (com base nas regras) e legitimidade (com base nos princípios que ampliou os limites do controle jurisdicional) dos atos praticados durante o inquérito policial;
5) a autoridade policial não poderá mandar arquivar autos de inquérito; somente depois de ordenado o arquivamento do inquérito pela autoridade judiciária por falta de base para a denúncia é que este ato pode acontecer;
6) os cargos de delegado de polícia, assim como os cargos ocupados pelos juízes de direito e promotores de justiça são carreiras jurídicas do Estado. Ratifica tal afirmação o fato do concurso público para o cargo de delegado de polícia exigir conhecimentos técnicos na área do Direito e o próprio exercício da função que exige que a autoridade policial analise, interprete e aplique as normas jurídicas com o objetivo de garantir segurança e proteção à sociedade e ao seu patrimônio.


Logo, conclui-se que, seja atuando repressivamente ou como polícia judiciária, no sentido técnico do termo, as polícias civis, na verdade, são sempre polícias judiciárias haja vista a natureza jurídica de suas atribuições.


Assim, não parece razoável fazermos a distinção entre as duas funções. Talvez a razão para que se postule tal separação, seja, unicamente, uma justificativa legal para manter os corpos de polícias civis subordinados aos interesses das classes políticas e, destarte, excluídos do conceito de Justiça.


O efeito prático dessa distinção é que as relações estabelecidas entre os membros das polícias civis e os membros das demais carreiras jurídicas resumem-se, basicamente, a situações jurídico-processuais de natureza efêmera e superficial.


Parcela de juízes de Direito, promotores de Justiça e advogados criminalistas, por participarem apenas virtualmente do universo policial, nos seus discursos sobre a violência, a corrupção e a ineficiência do sistema de segurança pública pátrio, costumam identificar a polícia como sendo a causa de tais problemas. Entretanto, olvidam que a ingerência exercida pela classe política representa uma concausa prévia e maior.






Talvez a ausência de contato entre duas realidades distintas seja a razão pela qual, atualmente, o Ministério Público, na qualidade de instituição defensora do regime democrático, ao invés de estar lutando ao lado dos delegados pela independência e democratização dos órgãos policiais, esteja buscando a ampliação de seus poderes investigatórios em detrimento das atribuições investigatórias das autoridades policiais.


Sobre a legitimidade dos poderes investigatórios do Ministério Público, escreveu

Alexandre de Moraes:



Incorporou-se em nosso ordenamento jurídico, portanto, a pacífica doutrina constitucional norte-americana sobre a teoria dos poderes implícitos - inherent powers -, pela qual no exercício de sua missão constitucional enumerada, o órgão executivo deveria dispor de todas as funções necessárias, ainda que implícitas, desde que não expressamente limitadas (Myers v. Estados Unidos- US 272-52, 118), consagrando-se dessa forma, e entre nós aplicável ao Ministério Público, o reconhecimento de competências genéricas implícitas que possibilitem o exercício de sua missão constitucional, apenas sujeitas às proibições e limites estruturais da Constituição Federal. Entre essas competências implícitas, parece-nos que não poderia ser afastado o poder investigatório criminal dos promotores. (2007: 600-601).


Discordamos da posição defendida por Alexandre de Moraes, primeiramente porque, segundo Paulo Bonavides:


A reflexão interpretativa que resultou na doutrina americana dos poderes implícitos está, do ponto de vista ideológico, inteiramente vazada na concepção do Estado Liberal ... se trata de uma das mais sólidas contribuições do liberalismo ao Direito Constitucional ... a teoria dos poderes implícitos... não é menos vinculada historicamente ao processo liberal e à ideologia burguesa. E encobre tal aspecto de modo mais bem- sucedido, em razão de sua racionalidade aparentemente mais pura. (2004:
474-475).


Segundo, por entendermos que caso o poder de investigação criminal seja estendido aos promotores de justiça, a figura do delegado de polícia já amplamente fragilizada pela ausência de garantias funcionais, ficará ainda mais enfraquecida.


Assim, sugerimos ao Ministério Público, que também já suportou os inconvenientes de estar historicamente subordinado aos interesses do Poder Executivo, que faça uso da teoria dos poderes implícitos, associada com o poder de proposição da ação direta de inconstitucionalidade para questionar, em juízo, a constitucionalidade da legislação que organiza as polícias civis a qual, em nossa concepção, encontra-se em frontal situação de






incompatibilidade com o Princípio Democrático, o Princípio da Eficiência, o Princípio da

Moralidade e o Princípio da Razoabilidade, dentre outros.



A afinidade de atribuições e a necessidade de atividades harmônicas para a construção da Justiça Criminal sugerem que as demais carreiras jurídicas tenham direito à participação direta nos assuntos de interesse das polícias civis.


A exclusão política das polícias civis do ambiente judicial vivenciado pelas outras carreiras jurídicas tem os seguintes efeitos:


1) comprometimento da eficiência da atuação das polícias civis pela existência de uma administração policial e outra judicial;
2) ausências de unicidade nos discursos entre o Poder Judiciário o Poder Executivo sobre as políticas de combate à criminalidade.


Geralmente os representantes e os membros dos dois Poderes trocam acusações de culpabilidade pela falência do sistema penal. Enquanto juízes reclamam da qualidade técnica dos inquéritos policiais, delegados afirmam que a polícia prende e a Justiça solta. Advogados denunciam que os direitos humanos não são respeitados nas Delegacias de Polícia e os policiais retrucam que o movimento dos direitos humanos, promovido pelas comissões de advogados, só servem ao propósito de acobertar os delinqüentes.


3) fracionamento da visão do fenômeno criminal.



Uma é a visão judicial e outra a visão política. A visão judicial, haja vista o papel do Poder Judiciário de ser o guardião dos direitos fundamentais, costuma ter esse enfoque. Já a visão política, contaminada por apelos eleitoreiros e disseminada nos meios policiais pela força da interferência, costuma identificar o trabalho policial com a ideologia da caça a bandidos. Segundo Ignácio Cano: "Hoje em dia, temos vários paradigmas na segurança pública no Brasil. O primeiro deles é o paradigma militar, em que o criminoso é visto como um inimigo". (2003:90)






Assim, abrir as polícias civis à participação efetiva de juízes, promotores, defensores e advogados, significa torná-las instituições mais fortalecidas, republicanas e incluídas no conceito de Justiça.




6. EXCLUSÃO DA SOCIEDADE DA GESTÃO POLICIAL.


Conforme o caput do artigo 144 da Constituição da República Federativa Brasileira a segurança pública é direito e responsabilidade de todos. Entretanto, do ponto de vista democrático essa é uma expressão vazia e desprovida de conteúdo prático.


Sobre a existência no corpo normativo constitucional de semelhantes regras, Paulo

Bonavides afirma que:



[...] formam em seu conjunto um espaço abstrato e filosófico onde cabem todas as procrastinações e todos os ludíbrios da malícia constitucional em matéria de direitos e liberdades do homem. Esses direitos e liberdades costumam ser tranqüilamente freados com as promessas e declarações de boas intenções de astutos constituintes, sempre hábeis em tudo transferir para um futuro indefinido e incerto, visto que de indefinições e incertezas se entretece o status quo da sociedade contemporânea em nosso País. (1996:
21)


Não é razoável atribuir-se responsabilidade pela segurança pública a todos, expressão que inclui a sociedade, se a esta não é atribuído poder para participar diretamente dos processos decisórios sobre o tema.


Na realidade a participação dos cidadãos nas questões de segurança pública ainda está contida nos limitados espaços concedidos, estrategicamente, pela forma de democracia indireta ou representativa que prevalece no Estado democrático brasileiro.


Sobre a expressão democracia indireta ou representativa, Paulo Bonavides esclarece que no decurso da história é possível acompanhar a evolução da participação popular no exercício da autoridade legítima, sendo as duas formas básicas de democracia que o gênero humano já conheceu e praticou: a democracia direta e a democracia indireta ou representativa.






A forma de democracia indireta ou representativa surgiu na Idade Moderna juntamente com o modelo de Estado Liberal. Os principais inconvenientes dessa forma de democracia apontados por Paulo Bonavides são:


1) é menos legítima, mais sujeita a vicissitudes distorsivas, menos refratária aos meios e vícios de ludíbrio;
2) inadequada para resolver a crise dos povos subdesenvolvidos (desigualdades sociais e a dependência internacional);
3) há um hiato entre a vontade dos que governam e a vontade dos que são governados;

4) ocorre a manipulação do princípio democrático por elites privilegiadas e perpetuadoras das desigualdades sociais;
5) se constitui numa democracia formal.



Outros autores também constroem suas críticas sobre o regime democrático. Assim, segundo José de Ingenieros:


Praticamente a democracia tem sido uma ficção, até agora. É uma mentira de alguns que pretendem representar todos ... Até agora não existiu uma democracia efetiva. Os regimes que adotaram tal nome foram ficções ... Sempre foram mediocracias. A premissa de sua mentira foi a existência de um corpo capaz de assumir a soberania do Estado. Tal não existe: as massas de pobres e ignorantes não tiveram, até hoje, aptidão para se governarem: trocaram de pastores ... A democracia foi uma miragem, com todas as abstrações que povoam a fantasia dos iludidos ou formam o capital dos mendazes. O povo sempre esteve ausente dela. (2003: 261-262).



Renato Lessa, explicando porque Robert Dahl escreve uma teoria da poliarquia e não da democracia também escreveu que: "Não cabe mais falar em democracia, posto que a palavra evoca o cenário grego original, de participação direta. As democracias contemporâneas são poliarquias, já que estruturadas por uma competição entre elites pelo poder político, por via eleitoral". (2001: 46-47 ).


Assim, sejam democracias ou poliarquias, sob o ponto de vista da participação da sociedade, e dos membros ocupantes dos cargos policiais, na direção dos assuntos referentes à segurança pública, podemos afirmar que as organizações policiais são duplamente antidemocráticas.






Diante do possível posicionamento de que os cidadãos não estariam devidamente habilitados para participar diretamente dos processos decisórios e governamentais afetos à segurança pública, antecipamo-nos para destacar que tal participação "...precisa exercitar-se, e para que o exercício se faça exeqüível, que seja posta de pé imediatamente, de modo a dar os primeiros passos e iniciar aquela caminhada que faz livres os homens e fortes as instituições". (BONAVIDES. 1996: 20).


No mesmo sentido, Lord Russel, citado por Paulo Bonavides: "quando ouço falar que um povo não está bastantemente preparado para a democracia, pergunto se haverá algum homem bastantemente preparado para ser déspota". (1996: 21).


A inocorrência da conjugação dos interesses dos representantes políticos e da sociedade colocou as instituições representativas, mormente o Poder Executivo, numa situação de grave crise de legitimidade. As polícias civis por estarem inseridas na estrutura administrativa desses corpos representativos, também participam deste cenário de perda de legitimidade democrática.


Como forma de resgatar a legitimidade democrática das polícias civis, é necessário acrescentar, aos atuais instrumentos de capacitação da democracia direta (plebiscito, referendo, a iniciativa popular) o direito de participação dos cidadãos e dos policiais nos órgãos de direção dos organismos policiais.


Constitui um verdadeiro contra-senso, então, que a Constituição Federal posicione o Capítulo III que cuida da Segurança Pública, inserido no Título V- Da Defesa do Estado e das Instituições Democráticas. Ou seja, órgãos policiais antidemocráticos responsáveis pela defesa de instituições que se pretendem democráticas.

7. CONCLUSÕES.
O Ministério Público Federal e Estadual, sendo este o principal colaborador das polícias civis no Jus Persequendi, historicamente, também suportou as inconvenientes conseqüências da relação de vinculação em relação aos Poderes do Estado. Na Constituição Imperial de 1824 foi regulamentado na parte referente ao Poder Legislativo (Senado). Na Constituição de 1891 ao Poder Judiciário e nas Constituições de 1934, 1946 e 1967 ao Poder Executivo. O fato de o Ministério Público nunca ter ocupado, nas Constituições referidas, um lugar específico, colaborou para disseminar a idéia de que houvesse submissão da instituição em relação ao Poder Executivo ou de que fosse simples auxiliar do Juízo.


Corrigindo as distorções do passado e reconhecendo a necessidade de organizar o Ministério Público de uma forma independente e autônoma em relação a quaisquer dos Poderes da República, mormente por reconhecer seu essencial papel no direito de perseguir o esclarecimento das condutas criminosas, a Constituição Federal de 1988 consagrou o Ministério Público como uma instituição permanente, essencial à função jurisdicional do Estado, assegurando-lhe garantias institucionais (autonomia administrativa, financeira e orçamentária) e pessoais( inamovibilidade, vitaliciedade e irredutibilidade de subsídios) de independência funcional.


Analisando, criticamente, a relação de vinculação, dependência e subordinação que existe entre os corpos de polícias civis e os chefes dos Poderes Executivos Estaduais, podemos concluir que:
a) o Poder Executivo (seja Federal ou estadual) não possui legitimidade histórica para exercer o comando exclusivo sobre os corpos de polícias civis. Vale como justificativa a esta afirmação, o exemplo ocorrido durante o último período do regime de exceção implantado no Brasil, quando o setor de inteligência das polícias civis foi utilizado indevidamente pelos chefes do Poder Executivo para reprimir a ação de adversários políticos, estudantes, artistas, e trabalhadores. Fato é que até hoje, sob a égide de um Estado democrático de direito, as polícias civis sofrem para resgatar uma imagem de legitimidade dentro do quadro social.
b) a vinculação das polícias civis aos chefes do Poderes Executivos estaduais constitui um cenário propício à ocorrência de ingerências políticas. As ingerências políticas costumam manifestar-se sob a forma de: nomeações de natureza política para os cargos em comissão e funções de confiança do quadro policial; remoções punitivas movidas por interesses de perseguições políticas e ideológicas, eclipsadas por conceitos jurídicos indeterminados e pelo uso indevido do Poder Disciplinar; indicações de autoridades policiais por encomenda para presidirem inquéritos policiais de interesse político; criminalização de movimentos sociais; lotações e promoções privilegiadas e abuso do poder tecnológico;
c) A opção do legislador constituinte originário em colocar os corpos de polícias civis subordinadas aos poderes administrativos dos Governadores estaduais é incompatível com o surgimento de mecanismos legais que garantam a independência funcional da polícia e de seus membros. Juízes de direito e promotores de justiça gozam de garantias pessoais de independência funcional (inamovibilidade, vitaliciedade e irredutibilidade de subsídios) e também de garantias que salvaguardam o Poder Judiciário e a instituição do Ministério Público da ingerência dos demais Poderes da República, ou seja, as garantias de independência administrativa, financeira e orçamentária.
d) A proximidade que existe entre as atribuições dos principais sujeitos processuais penais e as atividades desenvolvidas pelas polícias civis, mormente o esclarecimento da autoria e a comprovação da materialidade das infrações penais, indica que a inclusão destas na estrutura administrativa dos Poderes Executivos estaduais representa um verdadeiro contra- senso. Uma opção desarrazoada cujo efeito prático é o distanciamento das polícias judiciárias do ambiente vivenciado pelas demais carreiras jurídicas;

e) a exclusão da sociedade e dos membros das carreiras policiais da escolha dos órgãos dirigentes das polícias civis demonstra que as leis de organização das polícias civis, cuja iniciativa legislativa coube aos respectivos chefes do Poder Executivo estadual, possuem insofismável conteúdo antidemocrático. Outrossim, a ingerência política gera um ambiente
institucional repleto de intrigas, desmotivação e disputas pessoais cuja prática ofende os princípios da moralidade, da impessoalidade e da eficiência;
f) A ausência de autonomia administrativa das polícias civis e a possibilidade de ocorrência de ingerências políticas produzem também os seguintes efeitos negativos: carreirismo, subutilização do potencial científico das academias de formação policial e manutenção de um modelo superado de atividades investigativas.

Não basta, como pretendem certos parlamentares brasileiros, uma reforma constitucional parcial que apenas atribua garantias de independência funcional aos delegados de polícia, se as polícias civis ainda permanecerem com a natureza jurídica de mero órgão administrativo subalterno da administração pública do Poder Executivo estadual. Afinal, o serviço prestado pelas polícias civis não é um serviço público qualquer que deva ficar submetido às opções e aos jogos políticos do governo.

É necessária uma reforma constitucional que eleve às polícias civis à categoria de uma instituição com posição específica no texto constitucional, dotadas com autonomia administrativa, financeira e orçamentária em relação ao Poder Executivo, cujos membros desfrutem de mecanismos legais que lhes garantam independência funcional.


Que aos representantes das polícias civis seja concedido poder de participar da iniciativa de propostas legislativas visando à criação de novas leis de organização das policiais civis, estabelecendo órgãos diretivos com formato colegiado, cujo critério de acesso seja a eletividade e cuja composição permita a participação de todas as carreiras policiais, da sociedade e das carreiras jurídicas compatíveis com a necessidade de inclusão.


Tal reforma permitiria que as polícias civis fossem dotadas de meios concretos para resgatarem sua legitimidade social e tornarem-se instituições verdadeiramente republicanas, democráticas e inseridas no conceito de Justiça.


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Autor: Flavio Cristiano Costa Oliveira


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