DAS DIVERGÊNCIAS DOUTRINÁRIAS E JURISPRUDENCIAIS SOBRE A NATUREZA JURÍDICA DO INSTITUTO DA RECLAMAÇÃO



DAS DIVERGÊNCIAS DOUTRINÁRIAS E JURISPRUDENCIAIS SOBRE A NATUREZA JURÍDICA DO INSTITUTO DA RECLAMAÇÃO

1. INTRODUÇÃO

A reclamação é instituto processual voltado à preservação da competência das decisões dos tribunais superiores pátrios, a saber, o Superior Tribunal de Justiça e o Supremo Tribunal Federal, bem como à garantia da autoridade de suas decisões.

Trate-se, pois, de postulado que visa, basicamente, garantir a devida segurança jurídica ao jurisdicionado que se vê diante de infringência de decisão judicial hierarquicamente superior no bojo de seu litígio ou daquele que se vê diante de invasão de competência privativa dos Tribunais Superiores.

A Constituição Federal vigente dispõe sobre o processo e julgamento, em instância originária, da reclamação para a preservação da competência dos respectivos tribunais e para a garantia da autoridade de suas decisões em seus artigos 102, I, "l" e 105, I, "f".

A previsão legal, por seu turno, está disposta na Lei n.º 8.038 de 28 de maio de 1990, nos artigos 13 a 18, porquanto que a previsão regimental está prescrita nos regimentos internos do STF (arts. 156 a 162) e do STJ (arts. 187 a 192).

Historicamente o instituto da reclamação já podia ser verificado no Direito Romano, como forma de impugnação denominada suplicatio, que consistia, basicamente, na possibilidade da parte levar ao conhecimento do Imperador o seu descontentamento com alguma irregularidade processual cometida pelos juízes em face de decisão irrecorrível, sendo, pois, o remédio adequado para corrigir erros de procedimento, evitando, destarte, as desordens formais que podiam ocorrer na tramitação do processo.

Instituto semelhante fora contemplado a posteriore nas Ordenações Filipinas (Livro III, título XX, §46) sob a denominação de "agravo de ordenação não guardada".

Após, com o advento da CF/88 e da Lei nº 8.038/90, o instituto da reclamação restou devidamente positivado em nosso ordenamento jurídico.

2. DA NATUREZA JURÍDICA DA RECLAMAÇÃO

Muito ainda se discute na doutrina e nos tribunais sobre a natureza jurídica da reclamação, sobressaltando-se, dentre as opiniões divergentes, quatro correntes distintas, quais sejam: (i) da reclamação como recurso latu sensu; (ii) da reclamação como incidente processual; (iii) da reclamação como ação autônoma de impugnação; e, por derradeiro, (iv) da reclamação como direito de petição, consoante o disposto no art. 5º, inc. XXXIV, alínea ?a?, da Carta Magna.

Analisaremos de maneira individualizada as quatro correntes citadas acima.

2.1. DA RECLAMAÇÃO COMO RECURSO LATU SENSU

Dentro da sistemática processual vigente são considerados recursos àqueles instrumentos processuais delimitados no artigo 496 da Lei Adjetiva Civil, sendo taxativo o rol ali descrito.

Logo, numa análise mais simplista e formal da questão, poder-se-ia defender que não tendo sido a reclamação prevista expressamente no bojo de referido dispositivo ? o que poderia ter sido feito quando da edição da Lei nº 8.038/90 se assim o desejasse o legislador ?, não se poderia vislumbrar tal instituto como modalidade recursal.

Afora este argumento, a reclamação também não poderia ser considerada recurso por restar-lhe ausente um dos requisitos recursais extrínsecos, qual seja, o da tempestividade, na medida em que seu cabimento não está atrelado a prazo específico.

Alem disso, não visa a reclamação reformar ou alterar, no todo ou em parte, a decisão judicial prolatada. Pelo contrário, o fim precípuo da reclamação é exatamente o de dar efetividade à decisão cujo cumprimento escorreito se reclama, ou de preservar a competência do tribunal superior para proferir tal decisão, o que destoa, sobremaneira, do objetivo principal de qualquer recurso que é a revisão do decisum guerreado.

Anote-se, ainda, que o manejo da reclamação gera nova relação jurídico-processual autônoma daquela da qual emana o descumprimento ou interveniência da esfera de competência que se pretende sanear, o que igualmente pesa em desfavor da possibilidade de se lhe conferir a condição de recurso.

Todavia, existe posicionamento divergente nos tribunais superiores a despeito da questão.

A eminente Ministra Eliane Calmon do Superior Tribunal de Justiça defende, de longa data, ser a reclamação modalidade de recurso procedimental excepcional, consoante o decidido em algumas decisões de sua lavra. Noutro passo caminha a i. Min. Denise Arruda, de acordo com o que se depreende dos julgamentos da Rcl nº 713/SP e do RMS nº 13.718/SP, nos quais resta evidenciado o afastamento da feição recursal à reclamação.
"PROCESSUAL CIVIL. RECURSO ORDINÁRIO EM MANDADO DE SEGURANÇA. DENEGAÇÃO DA ORDEM. LIQUIDAÇÃO DE SENTENÇA DE DESAPROPRIAÇÃO INDIRETA. IMPETRAÇÃO CONTRA SUPOSTOS DESCUMPRIMENTOS DE DECISÕES PROFERIDAS PELA CORTE ESTADUAL E POR ESTE TRIBUNAL SUPERIOR. ATOS JUDICIAIS PASSÍVEIS DE RECURSO E RECLAMAÇÃO. DESCABIMENTO DO MANDAMUS. SÚMULA 267/STF. DESPROVIMENTO DO RECURSO.
1. Segundo o art. 5º, II, da Lei 1.533/51, não se dará mandado de segurança quando o ato impetrado se tratar de despacho ou decisão judicial, quando haja recurso previsto nas leis processuais ou possa ser modificado por via de correição. Outrossim, nos termos da Súmula 267/STF, "não cabe mandado de segurança contra ato judicial passível de recurso ou correição".
2. É descabida, portanto, a ação mandamental impetrada contra atos judiciais e incidentes ocorridos na fase de liquidação de sentença passíveis de reforma por meio de recurso previsto na legislação processual civil, ou até mesmo por meio de Reclamação, expediente inclusive utilizado pelos recorrentes perante esta Corte Superior (Rcl 713/SP, 1ª Seção, desta Relatoria, DJ de 1º.2.2005, improcedente).
3. Ademais, cumpre ressaltar que o Regimento Interno do Tribunal de Justiça do Estado de São Paulo também prevê o cabimento de Reclamação para a garantia da autoridade de suas decisões (RITJSP, arts. 659 e seguintes, cap. III, título V, livro III).
4. Recurso ordinário desprovido." (destaquei)

Diante deste cenário, queda-se inviável, rogata maxima venia, o reconhecimento da reclamação como recurso.

2.2. DA RECLAMAÇÃO COMO INCIDENTE PROCESSUAL

Como é cediço, considera-se como questão incidental ou incidente processual toda controvérsia que sobrevém no curso do processo e que deve ser decidida pelo juiz antes da causa ou questão principal, sendo acessória em relação à questão principal, inocorrendo, em relação a esta, julgamento do mérito.

Moniz de Aragão defende a reclamação como modalidade de incidente processual, assestando, para fundar seu posicionamento, que "a reclamação, portanto, longe de ser uma ação, ou um recurso, é um incidente processual, provocado pela parte ou pelo Procurador-Geral, visando a que o Supremo Tribunal imponha a sua competência quando usurpada, explícita ou implicitamente, por outro qualquer tribunal ou juiz" .

Pontifica, ainda, que "Não parece admissível dizer que a reclamação seja, em verdade, um recurso. (...) A reclamação não tem por finalidade remover o gravame que incidiu sobre a parte através de despacho judicial errôneo ou prejudicial, nem o seu cabimento está sujeito a prazo ou à existência ou inexistência de recurso". "Não se visa a compor um conflito de interesse mas, unicamente, preservar a competência do Supremo Tribunal".

Gisele Góes defende em igual medida tratar-se de processo incidente, pois se criaria uma "nova relação processual, instaurada por causa de outro processo já pendente, destinado a exercer alguma influência sobre ele".

De outra parte, se a reclamação termina por formar nova relação jurídico processual, podendo, inclusive, ser manejada por pessoa estranha à relação jurídico-processual em curso ou inexistente (em se tratando de preservação de competência), não há como considerá-la como mero incidente processual.

Ademais, a reclamação é procedimento cogniscível que contempla características um pouco distantes de um mero incidente. Destarte, não há como se admitir, a menos a meu ver, a reclamação como incidente processual.

2.3. DA RECLAMAÇÃO COMO AÇÃO AUTÔNOMA DE IMPUGNAÇÃO

A maioria da doutrina e da jurisprudência admite a reclamação como ação autônoma de impugnação. Este é o entendimento adotado por Nelson Nery, José da Silva Pacheco e Ovídio Baptista da Silva.

A reclamação encerra processo autônomo, originariamente ajuizado perante os Tribunais Superiores, a teor do que dispõe atualmente a Carta Maior.

Ora, se o legislador constitucional não quisesse elevar a reclamação à condição de ação autônoma, não inseriria sua previsão da forma que o fez no texto constitucional, juntamente com as hipóteses de processamento e julgamento das ações originárias, de forma a conferir a esta condição diferenciada. Tal fato, de per si, já é revelador.

Some-se, ainda, que o procedimento da reclamação (legal e regimental) denota tipicidade de ação. É, pois, ação fundada no direito de que a jurisdição seja prestada pela autoridade judicial competente.

Todavia, admitindo-se a reclamação como ação, deve-se ter em conta o fato de que para o seu ajuizamento não se exige o trânsito em julgado da decisão que usurpa a competência do Supremo Tribunal Federal ou do Superior Tribunal de Justiça ou desafia a autoridade de suas decisões, nem tampouco se exige a sua irrecorribilidade.

Também "não cabe reclamação contra decisão já transitada em julgado, sob pena dela substituir a ação rescisória (STF, RTJ-56/539; Recl. n.º 489-9-SP - DJU-I, 27.5.94, p. 13.201)" , posição esta que entendo, particularmente, comportar exceções.

Noutro giro, se a reclamação não visa revisar e modificar o julgado, como já ditado anteriormente, que sua finalidade não se amolda à finalidade recursal, muito menos à pretensão incidental, revelando-se como verdadeira ação autônoma, até por conta da necessidade de observância das condições típicas das ações (legitimidade, interesse e possibilidade) e dos pressupostos processuais, observado o rito específico a que se submete a reclamação, sendo certo que sua inicial deverá se sujeitar ao preenchimento dos requisitos do artigo 282 do Código de Processo Civil.

José da Silva Pacheco, a seu turno, entende que a reclamação não é recurso não só porque a ela são indiferentes os pressupostos recursais da sucumbência e da revisibilidade, ou os prazos, mas, sobretudo, porque não precisa que haja sentença ou decisões, nem que se pugne pela reforma ou modificação daquelas, bastando que haja interesse em que se corrija eventual desvio de competência ou se elida qualquer estorvo à plena eficácia dos julgados do STF ou do STJ. Trata-se, na realidade, de ação, fundada no direito de que a resolução seja pronunciada por autoridade judicial competente; de que a decisão já prestada por quem tinha competência para fazê-lo tenha plena eficácia, sem óbices indevidos, e de que se eliminem os óbices ou se elidam os estorvos que se antepõem, se põem ou se pospõem à plena eficácia das decisões ou à competência para decidir.

Para rematar, vale destacar a posição do saudoso e incomparável Pontes de Miranda, o qual admitia a reclamação como ação, conforme segue:

"A ação de reclamação que rechaça o ato do juiz por invadente da competência do tribunal superior é constitutiva negativa. A ação de reclamação que rechaça o ato do juiz e repele a interpretação que fora dada à decisão sua, no toante à força e à eficácia, também é constitutiva negativa. A ação de reclamação que rechaça o ato do juiz por ter retardado, materialmente, a cognição pelo tribunal superior é mandamental" (Pontes de Miranda, 1974, p. 384).

Conclui-se, pois, que a reclamação tem natureza de ação autônoma, diferenciando-se do recurso e do incidente processual por questões ínsitas à sua finalidade, cabimento e manejo.


2.4. DA RECLAMAÇÃO COMO DIREITO DE PETIÇÃO, CONSOANTE O DISPOSTO NO ART. 5º, INC. XXXIV, ALÍNEA ?A? DA CARTA MAGNA

Em decisão proferida no ano de 2003, baseando-se em doutrina da festejada Dra. Ada Pelegrini Grinover, a eminente Min. Ellen Gracie do STF firmou entendimento no julgamento da ADI nº 2212/CE, proferido em 02/10/2003, de que a reclamação seria, em verdade, corolário do direito de petição previsto na Carta Magna, fundando seu raciocínio nos moldes doravante dipostos:

AÇÃO DIRETA DE INCONSTITUCIONALIDADE. ARTIGO 108, INCISO VII, ALÍNEA I DA CONSTITUIÇÃO DO ESTADO DO CEARÁ E ART. 21, INCISO VI, LETRA J DO REGIMENTO DO TRIBUNAL DE JUSTIÇA LOCAL. PREVISÃO, NO ÂMBITO ESTADUAL, DO INSTITUTO DA RECLAMAÇÃO. INSTITUTO DE NATUREZA PROCESSUAL CONSTITUCIONAL, SITUADO NO ÂMBITO DO DIREITO DE PETIÇÃO PREVISTO NO ARTIGO 5º, INCISO XXXIV, ALÍNEA A DA CONSTITUIÇÃO FEDERAL. INEXISTÊNCIA DE OFENSA AO ART. 22, INCISO I DA CARTA.

1. A natureza jurídica da reclamação não é a de um recurso, de uma ação e nem de um incidente processual. Situa-se ela no âmbito do direito constitucional de petição previsto no artigo 5º, inciso XXXIV da Constituição Federal. Em consequência, a sua adoção pelo Estado-membro, pela via legislativa local, não implica em invasão da competência privativa da União para legislar sobre direito processual (art. 22, I da CF).

2. A reclamação constitui instrumento que, aplicado no âmbito dos Estados-membros, tem como objetivo evitar, no caso de ofensa à autoridade de um julgado, o caminho tortuoso e demorado dos recursos previstos na legislação processual, inegavelmente inconvenientes quando já tem a parte uma decisão definitiva. Visa, também, à preservação da competência dos Tribunais de Justiça estaduais, diante de eventual usurpação por parte de Juízo ou outro Tribunal local.

3. A adoção desse instrumento pelos Estados-membros, além de estar em sintonia com o princípio da simetria, está em consonância com o princípio da efetividade das decisões judiciais.

4. Ação direta de inconstitucionalidade improcedente." (grifei)

Sem embargo ao entendimento subjetivo formado pela douta julgadora, o fato é que a questão não se encerra tão singelamente.

O direito de petição previsto na na CF/88 é corolário de todo e qualquer procedimento ou processo, seja administrativo ou judicial, pois se elevarmos a questão a um pensamento amplo e generalista concluiremos, sem extensas digressões intelectivas, que todo ato procedimental ou processual encerra o exercício do referido direito por constituir fundamento constitucional daquele que postula perante os órgãos da administração pública direta e/ou indireta em face de determinada pessoa, física ou jurídica, de direito público ou privado, o que se pressupõe seja necessário sempre que o jurisdicionado está diante de ilegalidade ou abuso de poder de qualquer sorte.

Sob outro prisma, se a reclamação fosse mero exercício do direito de petição, sua propositura não poderia ensejar o recolhimento de custas, na medida em que aludido direito prescinde do recolhimento de taxas para o seu exercício, pouco importando a análise sobre a hipossuficiência do peticionário.

Ademais, como já analisado em linhas pretéritas, a reclamação encerra características específicas e típicas das ações, tais como as condições da ação e os pressupostos processuais.

Desta feita, capitular a reclamação como mero direito de petição é um raciocínio, permissa maxima venia, demasiadamente simplista que, particularmente, não conjugo.

3. CONCLUSÕES

Como vimos ao longo desta breve análise, a natureza jurídica do instituto da reclamação é tema extremamente controvertido, tanto na doutrina quanto na jurisprudência.

Não se poderia aqui, com base em trabalho tão singelo, dizer qual corrente que deve prevalecer em detrimento das demais, até por conta do convencionamento que orienta o direito enquanto ciência, posto que se em determinado momento todos convergirem para assumir que a reclamação tem determinada natureza, por convenção estar-se-ia formado um entendimento pacífico acerca do tema.

O que posso afirmar com certeza é em relação a qual corrente me filio, o que, como visto, conduzirá para a corrente que tipifica a reclamação como ação autônoma de impugnação, com base e fundamento nas construções e pensamentos registrados ao longo do presente trabalho.


4. BIBLIOGRAFIA

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DONADEL, Adriane, A Reclamação no STF e no STJ. Artigo publicado no site Páginas do Direito: www.tex.pro.br.
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NEGRÃO, Theotonio. Código de Processo Civil comentado. 39. ed. São Paulo: Saraiva, 2007.
NERY JÚNIOR, Nelson. Princípios fundamentais: teoria geral dos recursos. 4. ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 1997.
PACHECO, José da Silva. A "reclamação" no STF e no STJ de acordo com a nova Constituição. Revista dos Tribunais, São Paulo, v. 78, n. 646, p. 19-32, ago., 1989.
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PONTES DE MIRANDA. Comentários ao código de processo civil, tomo V. Rio de Janeiro: Forense, 1974.

Autor: Adriano Neiva Pereira Freire Formiga


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