Clichês intercontintinentais



Dia desses fui raspar a careca num barbeiro londrino. O local estava vazio, fui me sentando numa dessas cadeiras pretas com braços apoiados numa base de metal escovado. Havia diversas revistas próximas a mim e resolvi folhear uma delas do meio para o início, reparando apenas que as mulheres europeias, assim como as americanas, valorizam muito mais seus bustos que o traseiro (algo, acrescento, bem brasileiro). Minutos depois, o visualizo:
? Oi, sou o Jeffrey. Que vai ser hoje?
Era um helterofilista branquelo, barba espessa em um carregado sotaque cockney. Ordenei ao homem que raspasse os lados de minha cabeça, porque em cima não havia quase nada. Daí a diante, quando terminei a sentença, reparei que Jeffrey me olhava enviesado.
Tomando-me por estrangeiro, o homem ingadou minha nacionalidade.
? Brazil, eu disse, tentando esconder a falta de aptidão inglesa até para pronunciar o nome do meu país. Todavia, olhando na cara daquele brutamotes fantasiado de cabeleireiro, percebi que ele não havia gostado da resposta, porque deu a balançar a cabeça de um lado para o outro em negativa a minha pessoa. Tanto que passei uns maus bocados porque ele segurava em uma das mãos uma linda navalha alemã Toro J.B.H & S. Solingen raríssima, com detalhes dourados acabados à mão, dentro dum desenho vermelho medievalista, a qual, supunha eu, usá-la em minha garganta ? para escanhoar a barba. Jeffrey continuava atrás de mim, navalhona na mão, com uma boca escancarada cheia de dentes estragados. Fiquei mal. Eu não gosto muito de ver dentes estragados.
? Vocês imigrantes, não sei por que arrumam jeito de sair do país. Você por exemplo, nasceu num país ensolarado, festivo, alegre e cheio de mulheres. O que veio fazer neste lugar?
Aquele dia do barbeiro era um domingo branco e esquálido pela nevasca, mas ainda sim muito aconchegante. Diante do espelho, assisti meus cabelos caírem silenciosos como pequenas pétalas negras no chão frio. Lá fora, dentro do branco das ruas, subitamente, ouço um irresistível solo de guitarra oriundo de algum pub. Isto é para mim, provavelmente como as Ilhas Galápagos devem ter sido para Charles Darwin enquanto elaborava sua teoria evolutiva. Olhei de volta e disse que estava em Londres só por causa de dinheiro. Então ele me perguntou se eu fazia programas. Respondi que deixei meu pai do outro lado do Atlântico porque sou office-boy, lá no outro lado da cidade. Ele continuava me olhando com certo nojo, talvez na dúvida que eu faria programas.
Por fim, sacudi a cabeça (que já tinha pêlos coçando minha nuca e orelhas), passei as mãos sobre a careca e dei o dinheiro ao Jeffrey, que sorriu e disse que gostaria de visitar o Brasil, e eu disse a ele:
? Que nada!, apontando para o pub. Atravessamos a rua e demos nas mesinhas com cervejas geladas e o velho Rock. Eu disse a ele: Lar doce lar! Ele riu e levantou a taça. Batemos. Depois daquele dia, eu deixei o cabelo crescer e nunca mais vi o Jeffrey.



*Lucas Feat


Autor: Lucas Feat .


Artigos Relacionados


Deus Existe?

Meu Primeiro Fio De Cabelo Branco

A Chuva

Ele

Sua Maior Decepção

A Gripe Da TelevisÃo

Historinhas