O Caso Isabela Em Meio Ao Descompasso



O caso Isabela Nardoni foi destaque na mídia nas últimas semanas e indignou a muitos pelo alto grau de crueldade incrustado no âmago do caso. Filmagens, entrevistas, lentidão, pressão, revolta todos esses ingredientes juntos dentro de um caldeirão borbulhante, formando um vapor quente e complexo, cheio de facetas mal exploradas pelos órgãos de imprensa, o grande cozinheiro dessa sopa mal feita. Em cima dos fatos ocorridos, tentaremos explorar essas facetas e discutir temas submersos na tal sopa, os traremos à tona. Claro, em ampla, mas humilde medida.

A mídia deu um tratamento sensacionalista para o caso e elegeu antes da justiça os culpados, o pai e a madrasta. A partir daí, foi realizando uma pressão sem limites: carros de reportagens na frente da casa do casal, estúdios de tv, fotógrafos etc. Todos os dias os jornais falando e falando no caso de forma exagerada. Não demorou e o povo foi para frente da casa dos acusados protestar e atirar pedras no casal; na esperança de agarrá-los e fazer justiça com as próprias mãos, ou seja, insanidade total.

Paralelo a pressão, caminha a justiça com toda sua lentidão. A pressão midiática sobre a cabeça da justiça escancara a todos nós o descompasso entre a velocidade da informação e a capacidade de assimilação das instituições. A imprensa com todo seu aparato tecnológico, intumesceu as residências e as ruas, via impressa, tv, rádio e online, dando manchetes e mais manchetes sobre o caso. Nessa semana mesmo, o jornal nacional filmou os revoltosos, fez uma simulação do interrogatório, depois filmou o enterro da menina, mostrando a mãe chorando desolada e populares prestando homenagens. A intenção é clara: gerar barulho e ganhar audiência. A mídia não se propõe ao debate e a pressão que exerce é hipócrita e interesseira.

Tendo sua ira insuflada pela mídia e assistindo a letárgica justiça brasileira dando habbeas corpus aos "vilões" e demorando puni-los, o povo se investe de super-homem e monta acampamento na frente da residência dos "vilões" na intenção de linchá-los em nome da justiça. Porque o povo não se revolta com os descalabros sociais desse país?

Esse descompasso entre instituições e sociedade pós-moderna, deixa claro que as instituições precisam se adequar diante das novas modalidades da sociedade. Todavia isso não justifica o comportamento irresponsável da mídia e muito menos do povo. Imaginem se a mídia resolvesse fazer o mesmo nos diversos assassinatos que ocorrem nas favelas. Todos os dias morrem diversas crianças na periferia, desidratadas em virtude de dengue, falta de atendimento no SUS etc. Mas a mídia prefere dar destaque a um caso de classe média alta, como é o caso dos Nardoni. O público que ela atende, prioritariamente, o público consumidor. Tudo em função de interesses mercadológicos. Quando a mídia usa a periferia para fazer sensacionalismo, o faz, para assustar a classe média. Mostram os tiroteios nas favelas e incitam as ações bélicas nos morros como forma de defender a elite dos "ratos do morro". É a "Ode aos ratos" do Chico Buarque.

Voltando a pergunta do parágrafo 4: Porque o povo não se revolta contra os descalabros sociais desse país? Parte da resposta está na falta de debate público, individualização e o descompasso. No que tange ao debate público, a mídia não se esforça em discutir os problemas sociais, além de não ser rentável, ela não tem interesse político nisso. O descompasso afeta o Estado, este não consegue responder as demandas na velocidade da necessidade. A individualização corresponde ao fato dos indivíduos estarem preocupados com seus interesses particulares, não com o coletivo. Mas porque ficam tão revoltadas com casos escabrosos como o de Isabela e de João Hélio?

A explicação não é somente o sensacionalismo da mídia e a letargia da justiça. Maquiavel o pai da ciência política, em "O Príncipe", narra a história do Duque que conquistou Romanha, uma província fraca que sempre era vítima de roubos e desordem. Diante de tal quadro o duque nomeou Ramiro de Lorque para governar a província, um homem duro e cruel, que garantia a ordem e a unidade com ações violentas. Depois de instalada a ordem à base ações cruéis, a imagem da província estava um pouco arranhada, então o duque criou tribunais civis e ordenou que Lorque fosse esquartejado em praça pública, em Cesena, a fim de desvincular sua imagem de Lorque e jogar a culpa da crueldade sobre ele. O corpo de Lorque foi cortado ao meio e o povo assistiu ao espetáculo com espanto e satisfação. (O Príncipe, pp.59). Maquiavel foi o primeiro a associar bem e o mal na sociopolítica, ele afirmava que "a pureza das intenções são capazes de todos os crimes e as atitudes mais funestas são capazes dos mais nobres atos."

Claro que os tempos são outros, mas a natureza humana e as paixões permanecem. Resgatando o pensamento de Maquiavel para os tempos pós-modernos, mais precisamente ao caso Nardoni, veremos que o povo ao querer fazer justiça com as próprias mãos, demonstra que teria prazer em ver o casal sendo estraçalhado em praça pública, assim como Lorque. E que ao fazer justiça, estariam vingando a morte de Isabela. Enfim, para os revoltosos, a atitude de espancar o casal é nobre, como meio de se fazer justiça. Mas como fim é funesta, criminosa. No fundo toda essa ira do povo vem do fato das pessoas adorarem violência, tanto que os filmes que mais vendem são os de violência e quando ocorre um crime num bairro, as ruas lotam de curiosos, assim como quando ocorre um acidente. A mídia se aproveita da gula humana por sangue e crime e faz o seu joguinho, montando o circo da irresponsabilidade.

Discutir o descompasso entre as instituições e a sociedade é tarefa de responsabilização pública, a mídia tem obrigação de discutir esse problema, não o faz, porque está impregnada de interesses econômicos e políticos que extrapolam o esclarecimento público. Tal atitude só vem ratificar as palavras de Maquiavel. Sobre o descompasso, "os institutos de representação são bombardeados pela velocidade, pela força dos particularismos, pela indiferença social, pela crise da política. Passam a contar menos." Marco Aurélio Nogueira. As palavras do professor corroboram com as minhas no parágrafo 5. Este descompasso e a falta de debate público está gerando uma grave anomia social. Surgem os tribunais ilegais nos rincões do país e nas favelas. Traficantes, os mais velhos ou chefe do assentamento viram juízes de pequenas causas. Isso pode nos levar para o Estado de Natureza ao qual se referia Hobbes. Muitos que não leram Leviatã, ou se leram não entenderam, falam de forma medíocre e leviana que o homem no Estado de Natureza é o selvagem, muito errado. O que Hobbes quis dizer, é que o homem no Estado de Natureza está desnudado das leis, desprotegido, com medo da morte e sem garantia da paz. É o que ocorre nessas regiões afastadas do Brasil e mesmo nas áreas urbanas, bandidos viram justiceiros e o povo quer ser o juiz e punir os errados de forma funesta. O que é certo e errado nessa hora? O mal e o bem se embaralham. É a vingança do nômade contra o civilizado, a qual se referia Zygmunt Bauman em "Modernidade Líquida".

Devemos nos desvencilhar desse debate medíocre e maniqueísta da mídia, onde o que importa saber: quem é o vilão? Esse debate preto ou branco exige uma posição. Ao contrário disso, devemos explorar os fatos e respeitar suas complexidades. Estamos numa sociedade complexa e devemos agir como tal, com responsabilidade, ao contrário de grande parte da mídia.


Autor: André Henrique


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