O uso da técnica de fluxo de consciência por Virginia Woolf e Katherine Mansfield



O uso da técnica de fluxo de consciência por Virginia Woolf e Katherine Mansfield

Dalton Sérgio Samuel Júnior

Resumo: o presente trabalho visa discutir o conto A Haunted House, da autora inglesa Virginia Woolf, e o conto Bliss, da autora neozelandesa Katherine Mansfield, ambas da escola modernista, sob as perspectivas teóricas do fluxo de consciência e com base em interpretações psicológicas, sociais e históricas.

Palavras-chave: modernismo literário inglês; Virginia Woolf; Katherine Mansfield; fluxo de consciência; Grupo de Bloomsbury.

Abstract: the following work aims to discuss English author Virginia Woolf?s short story A Haunted House, and New Zealandish author Katherine Mansfield?s short story Bliss, being both of the authors modernists, under the theoretical perspectives of the stream of consciousness and based on psychological, social and historical interpretations.

Keywords: English literary modernism; Virginia Woolf; Katherine Mansfield; stream of consciousness; Bloomsbury Group.

1. Considerações iniciais

O presente texto visa discutir o uso da técnica de fluxo de consciência pelas autoras Virginia Woolf, em seu conto A Haunted House (1921), e Katherine Mansfield, em seu conto Bliss (1920). Compreendendo o fluxo de consciência como um método ficcional ligado ao foco narrativo, sendo este, na verdade, uma evolução do próprio foco narrativo. Compreendendo, ainda, que tal técnica consiste em explorar a temática psicológica; porém de um modo tão profundo que toda a narrativa acaba por girar em torno dela. Sabendo também que tal termo foi apropriado da psicanálise e que a criação de tal técnica reflete a situação social e histórica da época.

2. O Modernismo Literário Inglês

O movimento modernista na literatura por volta da virada do século XIX para o século XX criou uma incrível mudança na forma como os escritores viam a sua arte. Este novo grupo de escritores foi afetado pela nova percepção que se realizava do mundo e do lugar do homem nele, e acabaram por tentar comunicar seus medos e opiniões através de novos estilos de escrita.
Entre os mais importantes romancistas, podemos citar Virginia Woolf (Mrs. Dalloway), George Orwell (1984), Aldous Huxley (Brave New World) e James Joyce (Ulisses).
O modernismo como movimento literário atingiu seu ápice na Europa entre 1900 e 1920, tendo como base da temática geral os problemas da vida moderna, como vemos em: "Os problemas mais profundos da vida moderna derivam da reivindicação do indivíduo para preservar a autonomia e a individualidade de sua existência diante da hegemonia de forças sociais, da herança histórica, da cultura externa e da técnica da vida." (SIMMEL, 1903. Tradução minha).
O que nos prova que o romance do início do século XX pode ser pensado como tendo ponto de partida a insegurança no mundo causada pela guerra, e que leva o indivíduo a refugiar-se em si mesmo. É o que, em conformidade, vemos em:

De saída, tem-se a experiência da catástrofe e do assassinato em massa que teria engendrado uma relação de insegurança no mundo, restando ao indivíduo refugiar-se em si mesmo, como forma de se proteger da instabilidade e fluidez do meio circundante. A impossibilidade de vislumbrar na realidade exterior uma referência de apoio para o agir e sentir humanos, reforçando a estrutura psíquica no amparo no real, faz do narcisismo a solução para a existência em face das invenções que, em toda parte, apresenta a destruição em massa como horizonte do futuro ? um futuro que pode estar próximo, longínquo ou nas fantasias subjetivas com que se enfrenta a vida. Essa tensão não apenas gera o medo cotidiano, mas, sobretudo, requer de todos outro reordenamento mental. (SILVA, 2009)

Percebemos, então, que o período de que falamos é caracterizado pelo "eu" que recua ante a realidade, e também que tal fato termina por fracionar a vida psíquica.
Dentre as principais características formais (estilísticas) do modernismo inclui-se o "fluxo de consciência", através do qual os autores apresentam uma preocupação para a influência de fatores externos, como mudança social e histórica, sobre os fatores internos, a vida psíquica ? o que vai muito além do romance realista, que procura fazer o retrato de uma época, dando conta dos espaços sociais etc.

3. O Fluxo de Consciência

O fluxo de consciência é uma técnica narrativa moderna que apresenta a consciência do personagem de modo ideal, sem interferência do autor/narrador ou de qualquer elemento externo.
O termo foi apropriado da psicanálise (o equivalente em inglês de "stream of consciousness"), tendo sido criado pelo psicólogo estadunidense William James (1842 ? 1910), que intentava definir a consciência como um processo contínuo, um fluxo, uma correnteza, e não como um processo fragmentado, dividido, fracionado, apresentado como uma corrente. É o que podemos entender da seguinte passagem:

A consciência, então, não se afigura picada em pedaços. Palavras como ?corrente? ou ?trem? não a descrevem apropriadamente. (...) Não é nada articulada, ela flui. Um ?rio? ou um ?fluxo? é a metáfora pela qual ela é mais naturalmente descrita. Falando dela a partir daqui, vamos chamá-la o fluxo do pensamento, da consciência, ou da vida subjetiva. (JAMES apud. CARVALHO, 1981. Tradução minha).

Tal termo tem sido usado como sinônimo de monólogo interior, porém vale ressaltar que enquanto fluxo de consciência "é propriamente antes um termo psicológico que literário", o monólogo interior é um termo literário "sinônimo de solilóquio não falado". (SCHOLES & KELLOGG apud. CARVALHO, 1981). Também, os termos devem ser distinguidos por se referirem a técnicas diferentes: enquanto o primeiro busca representar por escrito os processos de pensamento de um dado personagem, atingido até mesmo o nível pré-verbal, de fala não articulada, como dito na seguinte passagem: "a ficção de fluxo da consciência difere de qualquer ficção psicológica precisamente por dizer respeito aos níveis menos desenvolvidos do que a verbalização racional ? os níveis à margem da atenção" (HUMPREY, 1976 apud. SILVA, 2009); o segundo é um discurso não pronunciado, isso é, idéias mais elaboradas que a correnteza de pensamento, apenas não externado.
Os escritores que criaram trabalhos envolvendo a técnica focalizaram os processos emocionais e psicológicos que aconteciam na mente dos personagens, dentre eles podemos citar Virginia Woolf e Katherine Mansfield.

4. A autora Virginia Woolf (1882 ? 1941)

Virginia Woolf nasceu Adeline Virginia Stephen em 1882, na cidade de Londres. A eminência de seu pai, Sir Leslie Stephen, como editor, crítico e biógrafo, fez com que Virginia e seus irmãos crescessem num ambiente influenciado pela sociedade literária Vitoriana (1837 ? 1901, reinado da Rainha Vitória do Reino Unido da Grã-Bretanha e da Irlanda).
Após a morte do pai, em 1904, Virginia se mudou para Bloomsbury, na área central de Londres, e veio a conhecer os intelectuais que viriam a formar o "grupo de Bloomsbury" ? um grupo de intelectuais, filósofos e escritores que promoviam discussões informais sobre literatura, estética, crítica, economia, feminismo, pacifismo e sexualidade.
Para confirmar, temos a seguinte citação:

As primeiras reuniões do grupo se debruçavam sobre questões éticas, estéticas e filosóficas, inicialmente num espírito de "agnosticismo", bastante influenciado pelos filósofos G.E.Moore, Whitehead e Bertrand Russell. O círculo inicial mais tarde se expandiu, de modo a acomodar novos interesses ? principalmente estéticos ? e não chegou a formar "uma escola". (LIMA, 2002)

Tal citação nos dá detalhes de como funcionava o grupo e sobre quais questões ele discutia.
Em 1912, Virginia casou-se com Leonard Woolf, com quem fundou, em 1917, a editora Hogarth Press, que revelou inúmeros escritores; entre eles, Katherine Mansfield.
Após a Primeira Guerra Mundial (1914 ? 1918), o grupo se posicionou contra as tradições literárias, políticas e sociais da Era Vitoriana. Nesse grupo Virginia Woolf começou a escrever, primeiro como crítica literária, e depois como escritora de ficção. Sua obra inclui nove romances, mais de quarenta contos e mais de noventa ensaios.
Sobre a conseqüência da Primeira Guerra Mundial na sociedade inglesa, podemos citar:

1914 traz a hecatombe da Primeira Guerra Mundial, com a morte de quase um milhão de jovens bretões. O otimismo e o ufanismo ingleses, a convicção vitoriana de que o progresso saberia solucionar todos os problemas da humanidade, dão lugar à incerteza e à solidão do homem na terra devastada pela guerra (...) Desgostosos com as instituições que não conseguiram impedir o desastre da guerra, os escritores redirigem seu foco de atenção do homem na sociedade para o mundo interior do indivíduo. (PIRES, 1995)

A passagem arrefece a crise social e interior que a Grande Guerra causou sobre os indivíduos da época e também nos indica o porquê do "recuo em direção ao eu" citado anteriormente.
Sua obra é classificada como modernista e ela foi uma das autoras que desenvolveu com maestria a técnica de fluxo de consciência, das qual é considerada uma das pioneiras.

5. A autora Katherine Mansfield (1888 ? 1923)

Katherine Mansfield Beauchamp Murry nasceu em Wellington, em 1888. Era filha de pais ingleses e mudou-se para Londres em 1903, nessa época, planejava ser uma tocadora de violoncelo profissional. Durante esse tempo não se envolveu em atividades políticas como o "sufrágio feminino" no reino Unido, pois na Nova Zelândia as mulheres ganharam o direito de votar em 1893.
Após terminar o ensino na Inglaterra, retornou ao seu país natal em 1906, quando começou a escrever contos e decidiu se tornar uma escritora profissional.
Dois anos mais tarde voltou para Londres, quando rapidamente caiu na vida boêmia, comum aos artistas e escritores da época.
Em 1916 conheceu Virginia Woolf e outros membros do grupo Bloomsbury através de encontros sociais e apresentações de terceiros. Foi quando o casal Woolf publicou seu primeiro conto.
Sua obra conta com dezoito coleções de contos e mais de trinta livros.

6. O uso da técnica de fluxo de consciência por Virginia Woolf no conto A Haunted House

O história tem como personagens principais um casal de fantasmas, daí o nome Uma Casa Assombrada. E nos ensina, através de uma metáfora, o sentido de "tesouro da vida". Quando o casal de fantasmas está a procurar em sua antiga casa pelo seu "Tesouro", o sentido de tal tesouro se nos é revelado: a alegria e amor compartilhado por duas pessoas é o tesouro, o tesouro da vida. Usando fluxo de consciência e ironia, a autora nos revela o significado da história.
A autora usa o fluxo para nos revelar as vidas de seus personagens por meio de seus pensamentos e associações. Sabemos sobre o passado dos fantasmas quando vemos que pensamentos eles associam ao seu passado. Por exemplo, quando estão a discutir sobre a morte:

(...) "Aqui nós dormíamos," ela diz. E ele adiciona, "Inúmeros beijos." "Acordando de manhã--" "A cor de prata entre as árvores--" "No andar de cima--" "No jardim--" "Quando chegou o verão--" "No tempo de neve do inverno-- (...). (WOOLF, A Haunted House. Tradução minha).

Essa citação nos mostra a que lugares e ações os fantasmas associam a alegria e o amor. O uso do fluxo nos dá uma idéia da tempestade de lembranças por que os personagens estão passando, o que também nos dá um melhor entendimento da metáfora da autora.
Também vemos o uso da ironia através de uma palavra ou frase que significa exatamente o oposto do que significam literalmente. A ironia do conto consiste em imaginarmos uma casa assombrada como um lugar ruim. Mas acaba sendo o lugar em várias coisas boas acontecem. Os fantasmas não assombram pessoas, ao contrário, eles as fazem perceber o tesouro que possuem. Vendo o quanto os fantasmas ficaram felizes por achar seu tesouro, o outro casal de personagens, do mundo real, percebem melhor em que lugar está o seu tesouro, isso é, o amor e a felicidade que compartilham. É bem evidente quando o narrador diz:

Agora eles o acharam, seria uma certa parar o lápis na margem. E então, cansado de ler, pode-se levantar e ver por si mesmo. (WOOLF, A Haunted House. Tradução minha).

A ironia é nos fazer pensar que estamos diante de uma história comum sobre fantasmas, mas ao contrário, nos dá uma interpretação mais profunda e significativa sobre a vida de alguém.
A autora, pelo uso de consciência em fluxo e ironia retrata seus pensamentos sobre o significado de uma casa assombrada.

7. O uso da técnica de fluxo de consciência por Mansfield no conto Bliss

Bliss (traduzido para o Português como Felicidade, apesar de tal termo não ser preciso, pois não existe equivalente em Português que dê conta de todas as nuances do termo) é um conto que segue um dia na vida de seu personagem principal, Bertha Young, em Hampstead, Londres. Ela sente-se em êxtase e experimenta toda a sua "perfeita" existência enquanto, ao mesmo tempo, parece um tanto infantil e um tanto ingênua. Nesse dia em particular, ela convida amigos para um jantar. Tais convidados são caracterizados como superficiais e vaidosos por sua conversa fiada. Ao final da história, quando estes vão embora, a protagonista descobre que seu marido está a ter um caso com uma de suas convidadas, Pearl Fulton.
Mansfield recorre à técnica para que o leitor possa se transportar ao interior da mente da personagem e conhecer seus pensamentos secretos e misteriosos ? um mundo desconhecido pela própria Bertha, que se assusta e surpreende pelas suas descobertas e por seu crescimento psicológico, esse determinado dia é como um divisor de águas. Há sempre uma situação inesperada que dá movimento a esse fluxo.
Então, podemos destacar dois momentos em que o fluxo de consciência nos é mostrado: o primeiro, logo no início do conto, enquanto a personagem central está a voltar para casa com compras para o jantar, sentindo-se feliz, viva, em êxtase (bliss):

O que pode alguém fazer quando tem trinta anos e, virando a esquina de repente, é tomado por um sentimento de absoluta felicidade ? felicidade absoluta! ? como se tivesse engolido um brilhante pedaço daquele sol da tardinha e ele estivesse queimando o peito, irradiando um pequeno chuveiro de chispas para dentro de cada partícula do corpo, para cada ponta de dedo?
Não há meio de expressar isso sem parecer "bêbado e desvairado?" Ah! como a civilização é idiota! Para que termos um corpo, se somos obrigados a mantê-lo encerrado em uma caixa, como se fosse um violino raro, muito raro?
"Não, isso de violino não é exatamente o que eu quero dizer" ? ela pensou, correndo escadas acima e apalpando a bolsa, em busca da chave ? que ela esquecera, como sempre ? e sacudindo a caixa do correio. "Não é o que eu quero dizer, pois ? "obrigada, Mary" ? ela entrou no vestíbulo. "A babá voltou?". (MANSFIELD, Bliss. Tradução de Julieta Cupertino);

Podemos notar que embora o narrador e a personagem principal não sejam a mesma pessoa, suas falas e pensamentos são sobrepostas, o que podemos depreender tanto da intimidade do narrador com a história de Bertha, como a alternância entre presença e ausência de aspas ? o narrador completa sua fala com o pensamento da personagem.
Ao final do mesmo dia, após o jantar oferecido, Bertha vê seu mundo estável desmoronar ao flagrar seu marido beijando sua amiga, Pearl Fulton e perceber que eles têm um caso, amiga esta, que até então, Harry fingia desprezar. O fluxo acontece após a traição:

"Vou fechar a casa", disse Harry, estranhamente tranqüilo e contido.

"Sua linda pereira...".

Bertha correu para as janelas largas do jardim. "Deus! O que vai acontecer agora?".

Mas a pereira estava tão linda como sempre, tão imóvel e florida como sempre. (MANSFIELD, Bliss. Tradução de Julieta Cupertino).

8. Considerações finais

Do percurso apresentado, o propósito de refletir sobre o fluxo de consciência em um conto de cada autora, podemos concluir ser esta uma técnica interessante e significativa que, ao mesmo tempo, está em harmonia com o recuo em direção ao eu, resultado da Primeira Guerra Mundial na produção literária. Dá-nos uma lição no primeiro conto, em que Woolf usa a metáfora de "tesouro da vida" e configura os conflitos existenciais no segundo, em que Mansfield retrata de forma sensível o universo da mulher e a relação desta com a sociedade: a segurança, a disciplina e a aprovação.
Conclui-se também que toda essa riqueza de detalhes na construção dos personagens e da história, e também que as nuances e camadas de sentido dos contos são conseguidas através do fluxo de consciência.








Referências Bibliográficas


CARVALHO, Alfredo Leme Coelho de. Foco narrativo e fluxo da consciência: questões de teoria literária. São Paulo: Pioneira, 1981.

LIMA, Vera. Herança e homenagem em Virginia Woolf. Rio de Janeiro: UFRJ, Faculdade de Letras, 2002. 411 fls. Tese de Doutorado em Ciência da Literatura.

MANSFIELD, Katherine. Felicidade e outros contos. Tradução de Julieta Cupertino. Rio de Janeiro: Revan, 1991.

PIRES, Ramira Maria Siqueira da Silva. O Romance Britânico do século XX. Revista Itinerários. Araraquara, UNESP, 1995, número 8, páginas 199 ? 209.

SILVA, Reginaldo Oliveira. Da epopéia burguesa ao fluxo de consciência: a escrita em tempos literários difíceis. Revista Investigações. João Pessoa, UEPB, 2009, vol. 22, número 1, páginas 11 ? 35.

SIMMEL, George. The Metropolis and Mental Life. The Sociology of George Simmel. Nova Iorque: The Free, 1950.

WOOLF, Virginia. Monday or Tuesday. Nova Iorque: Harcourt, Brace & Co., 1921.


Autor: Dalton Sérgio Samuel Júnior


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