CARTA DE UM SONHO AO PRESIDENTE DO MUNDO



CARTA DE UM SONHO AO PRESIDENTE DO MUNDO
"Uma reflexão sobre a esterilidade e a poluição mental de nossos dias"

Por Samuel Amorim Oliveira*

Caro Senhor Presidente,

Desculpando antecipadamente pelo pouco trato com as palavras, atrevi-me a escrever-lhe estas breves linhas pela urgência da causa que exponho. Sei que deve estar esperando o trato de grandes questões mundiais, como a Paz, a Erradicação da fome e da miséria e coisas do tipo, mas não trataremos desses assuntos. Embora eu ouse pensar, honestamente, que minha presente questão possa contribuir decisivamente a tais importantes debates, deixo-os para os sonhos mais competentes que eu, os especialistas nas questões diplomáticas. Sou apenas um pequeno sonho tentando se materializar.

Peço por favor, que o Senhor não passe essa carta para ser lida por algum Assessor, mas que leia até o final esta missiva de clemência. Sei que ai vocês tem esse cargo de filtro de informações, objetivado a ler tudo aquilo que chega para ser lido pela autoridade, e só a esta interessa. Na verdade são autênticas muralhas destinadas a garantir que a autoridade destinatária jamais saberá de coisas importantes, que julgam de menor importância, como pode ser o caso desta carta.

Caso tenha tido o infortúnio prévio de já haver esta carta caído nas mãos de tais equipes; sem ressentimentos. Pediria que me provem que estou errado quanto à utilidade de vossos serviços, encaminhando-a imediatamente ao seu destinatário com a recomendação de uma meticulosa e detida leitura, que também poderá vir acompanhada do carimbo, certamente existente, indicativo conteúdo não ofensivo aos costumes e princípios ideológicos correntes.

Como bem deve saber V.S., nós Sonhos, não possuimos um corpo material, capaz de ser tocado, sentido, cheirado, percebido. Todos sabem que existimos, mas por não termos materialidade, raros são os que conosco dialogam, e quando conseguimos nos materializar, ainda chamam-nos de Realidade. Embora tal fato semântico muito chateie não poucos da minha classe, pessoalmente isso não importa muito, afinal, o objetivo de cada um de nós é exatamente se materializar, ou como dizem, tornar realidade. Não importa que nome dêem ao produto final, em essência, lá estamos: sonhos materializados.

Nosso maior e mais capital problema está na tal materialização, pois precisamos de componentes físicos para que isso aconteça, nada muito diferente de uma semente, que precisa dos nutrientes do solo para crescer e logo se tornar uma árvore frondosa. A diferença é que a semente tem uma raíz, física, que começa todo o processo, fincando no duro chão suas tenazes em busca do precioso minério que lhe dará a substância necessária. Nós, sem raízes e sem uma matéria inicial, temos que nos virar, transformando o i-material em matéria.

Embora vários já tenham sido os métodos estudados ao longo de nossa existência, nenhum outro logrou êxito em sua empreitada. Apenas o bom e velho método praticado por nossos ancestrais, antes mesmo da invenção da escrita, passado de pai para filho pelo hábito. Trata-se de ir caminhando até encontrar uma poça de lama, jogar-se de cabeça - mergulhar mesmo -, e a seguir um bom banho de sol - que pode vir acompanhado de um penteado estilizado ? que nos permitirá secar, ganhando vida física, materialidade, processo que não lhes deve causar estranheza, visto a origem também não muito diferente do homem.

O método é simples, como todas as coisas boas e funcionais, todavia, razões ambientais tem impedido que tal processo ocorra satisfatoriamente nos últimos tempos, frustrando, assim, milhares de sonhos terem sua utilidade funcional e razão de existência justificada. Eu próprio, reiteradas vezes tenho tentado me materializar sem sucesso, e olha que não é culpa minha: possuo ótimo curriculum vitae, e esbanjo vitalidade física.

Primeiramente, enfrentamos a aridez frequente de vários desertos construídos com uma massa piche, a que denominam de asfalto, e calçamentos que não deixam sequer uma fresta para qualquer brotinho, quem dirá uma poça de lama. Caminhando herculeamente naquele ambiente mórbido e quente, onde deparamos com figuras apressadas e muito sizudas, podemos com sorte, chegar a alguma periferia, onde com pouca chance pode-se encontrar alguma terra, mas esta muito árida, e como já expliquei, por não termos raízes, nem pensar em penetrá-la. Nesse ambiente, não raro nos passam uns veículos velozes da era da informação, que levantando um mundareu de poeira, nos enchem os pulmões de tijolos.

Depois de muito caminhar, olhar daqui e dali, alguns afortunados sonhos finalmente encontram a tão sonhada e natural poça de lama, e sem pestanejar lançam-se de cabeça na sua possibilidade de vida, mas ainda assim os problemas não se acabaram. Apenas começaram, pois secar-se será um outro grande obstáculo, visto que a poluição tem sido tão grande a ponto de empalidecer o sol necessário a secagem de nossa lama, e antes mesmo de estarmos secos, prontos, lá está a chuva ácida para nos dissolver e minguar todas as nossas expectativas de materialização.

Realmente, Senhor, nosso caso não se trata de capricho ou faltas de tentativas de contemporaneização, pois já buscamos nos adequar à modernidade, substituido as antigas poças de lama grudenta pelas uniformes e bem dosadas massas de cimento das betoneiras dos caminhões. Vimos neles, a princípio, mesmo uma situação favorável, pois penetrá-los não representa qualquer problema: basta esperar à beira de uma estrada que um deles passem ? e passam muitos -, e lançar-se de cabeça. É até muito divertido rolar naquele enorme basculhante, que não nos obriga a qualquer esforço de nos misturarmos. Problema nisso, é que quase nunca conseguimos sair dali antes da secagem da massa, e milhares dos nossos pares já sucumbiram inclusos nas estruturas de pontes, nos calçamentos, e nos arranha-céus. Poucos heróis que se libertaram, de tão rígidos que se tornaram, não possuem qualquer flexibilidade perante a vida, e tem sido apelidados de "dura realidade", pouca coisa ou nada podendo realizar de seu potencial. Há mesmo sonhos que já se meteram nas ferventes caldeiras metálicas, a exemplo de um grande sonho, de altíssimos ideais e potencial realizador, de nome liberdade, que acabou metalizado, imóvel, em estátua do mesmo nome, sem que nada de seu trabalho pudesse realizar, ainda que por muitos esperado.

Assim, Senhor, é mesmo nossa situação de risco de extinção, pois ora não há lama, ora a poça é de pura areia, sem qualquer liga, ora o sol não nos seca... Ficamos sem nos transformar em realidade. Sei que como Presidente, o Senhor tem toda a autoridade para mandar desasfaltar um pouco das terras barrentas, diminuir um pouco a poluição mental, ensinar as crianças a nos valorizarem, os sonhos...

Por fim, lembre-se, Senhor, que sem nós o mundo morre. As caras ficam sizudas, tristes, as cores perdem a sua vida.

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Samuel Amorim Oliveira é Engenheiro Agrônomo atuante na área de Perícias Agronômicas, Ambientais e Geotecnologias, área em que ministra cursos. É Graduando em Administração de Empresas pela Universidade Federal de Goiás ? UFG e adora escrever...
E-mail: [email protected]
Autor: Samuel Amorim Oliveira


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