O Meia



Naquele tempo, eu era aluno da Universidade do Estado do Rio de Janeiro (UERJ). Estava cursando o quarto período de Direito. A faculdade era considerada a melhor do Estado graças ao bom índice de aprovação nos concursos. Tinha muito orgulho de estar no meio de tantos bons alunos, de ter conseguido passar no concorrido vestibular.

Era uma quinta-feira, acordara com febre e dores nos olhos. Tinha uma epidemia de dengue no Estado e, logicamente, a suspeita era essa. Mas eu odiava fazer segunda chamada. Queria ficar livre o mais rápido possível, então tomei um remédio e saí da cama.

Eu e um amigo de turma íamos de ônibus para a faculdade, rotina habitual que iria acabar dentro de poucos dias, pois logo ganharia um carro. Não agüentava mais ter que ficar horas esperando um caro ônibus para demorar quarenta minutos (sem trânsito) até chegar à faculdade. Dias que eu sabia ter somente uma aula, nem pensava muito e ficava num instante decidia ficar em casa.

Inquieto pela difícil prova que me esperava, comecei a ler a matéria ali mesmo, sentado no lado do corredor do ônibus enquanto meu amigo já lia na janela. Na minha turma, a gente dividia, cada um transcrevia uma aula para facilitar a vida de todos. E, por sorte, o professor só cobrava o que ele tinha dito em sala.

Tínhamos um excelente professor de Direito Constitucional. Ele chegava na sala de aula e ficava uma hora e quarenta minutos falando tudo sobre a matéria, citando vários autores, sem ler ao menos uma anotação, nada. Todos ficavam impressionados como tudo aquilo estava dentro da cabeça dele e a naturalidade com que desenvolvia os temas. Porém a prova não costumava ser fácil e a média para passar na faculdade era sete.

Não sei se foi a suspeita de dengue ou a possibilidade de uma nota ruim que me deparei com um curioso questionamento. Seguia lendo sobre processos legislativos no país, leis em sentido material, quando um exemplo citado pelo professor me chamou atenção: "lei número 8666 que dispõe sobre licitação e contratos administrativos".

Não foi o exemplo em si, até porque não tinha dúvida que se encaixava muito bem na definição, mas o problema estava na forma que eu li: "oito, meia, meia, meia". Logo me perguntei de onde viria aquele meia? A resposta estava clara! Se uma dúzia é igual a doze, meia dúzia é seis. Não precisava ser nenhum gênio para raciocinar tal equação.

A grande questão é: por que não falar seis? Prontamente levei a questão ao meu amigo, interrompendo seu estudo. No início ele achou que eu pudesse estar delirando pela febre, mas concordou que nunca havia parado para pensar sobre isso.Às vezes, falamos coisas comuns ao dia a dia que nem ao menos refletimos de onde vem aquelas palavras ou o porquê de falarmos daquele jeito.

Começamos a discutir sobre a importância tamanha daquele meia. E mais, por que a dúzia foi tão esquecida? Será que na hora de darmos o número do nosso telefone, não poderíamos dizer: "vinte e seis, dúzia, quarenta e nove, duas dúzias". Por que só o meia? Onde ele ganhou tanto privilégio? Pense bem, ele está presente até em nossas anedotas. Quem nunca ouviu a piadinha do tipo:

-Meu telefone é, dois, sete, quatro, meia mole, meia dura!

Por um momento ficamos assustados com a possibilidade do fim do número seis no mundo. Será que daqui a uns cinqüenta anos estaremos sobre o domínio do meia? Imaginem como seriam os diálogos:

-Quantos anos você tem filho?

-Meia anos pai!

Ou pedindo informação na rua...

-Que horas são, por favor?

-Meia horas e vinte e meia minutos!

Acabamos por fim chegando assustados à faculdade e decididos a colocar essa questão a todos. Quem sabe para criarmos uma campanha: "EM DEFESA DO SEIS"! Mas antes teríamos a prova de constitucional que havia sido esquecida naquela discussão importantíssima.

Ao chegar em casa à noite, mostrei a questão para minha mãe e como todas as mães fazem, ela me deu um bom conselho: ir procurar no dicionário. E, para o meu espanto, descobri toda a verdade escondida por trás do meia. No dicionário estava escrito: "meia. O número 6, usado na fala, para evitar confusão com número 3".

Será que só eu não sabia disso? Senti uma frustração dentro de mim, tanta discussão para banirmos o meia do mundo e lá estava a sua real importância. Foi duro aceitar a verdade. Senti vergonha por ter sido tão rude e precipitado com o meia. Pensei até em um jeito de pedir desculpas oficiais.

Entretanto, o pior ainda estava por vir. Na semana seguinte, quando eu e meu amigo recebemos a nota da prova de Constitucional. Mesmo não tendo feito a prova juntos, tiramos a mesma nota, afinal havíamos perdido o mesmo tempo discutindo sobre o meia.

E lá estava ele. No alto da folha de papel almaço, rindo, desdenhando da nossa cara, bem acima da rubrica do professor. Nota: MEIA!


Autor: Rodrigo Firmo


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