A RESPONSABILIDADE CIVIL DO TRANSPORTADOR AÉREO EM FACE DO CAOS AÉREO



Pedro Ivo Fontenelle Cabral

1 INTRODUÇÃO

Após os graves acidentes aéreos ocorridos recentemente no Brasil, instalou-se no país uma crise sem precedentes no setor de transporte aéreo.
O cenário de caos que tem sido construído nos últimos meses se iniciou com a colisão, em pleno vôo, de uma aeronave de grande porte com um jato executivo, vitimando 154 pessoas, no dia 29.09.2006. Após essa tragédia, sucedeu-se outra, desta vez no aeroporto de Congonhas, onde uma aeronave chocou-se, no solo, com um prédio da companhia aérea, matando um maior número de pessoas ainda.
Nesse cenário, as viagens aéreas tornaram-se menos atrativas, pois há atualmente insegurança por parte dos passageiros, que, além do medo, passaram a conviver com atrasos e cancelamentos freqüentes de vôo, longas filas, saguões lotados, e, para piorar a situação, sem receber assistência devida por parte das empresas aéreas ou do Estado.
A sociedade voltou seus olhos para problemas relativos ao tráfego aéreo, que, até então, eram praticamente ignorados, e percebeu, com apreensão e desconfiança, que a toda a estrutura estava abalada e talvez não fosse tão segura quanto se pensava.
Observa-se que a tranqüilidade até então existente nos aeroportos foi substituída por apreensão, expectativa, indignação e sensação de impunidade pelos danos sofridos, sem que consigamos vislumbrar o final da crise e sem que tenhamos identificado ainda, de forma bem clara, o responsável pelos danos resultantes, razão pela qual torna-se oportuna a discussão jurídica acerca da responsabilidade por esses danos.
Sem adentrar no questionamento sobre as causas da crise, procuraremos, neste trabalho, abordá-la sob o enfoque da responsabilidade civil das empresas de transporte aéreo pelos danos causados aos passageiros.
É nosso propósito analisar a possibilidade de as empresas aéreas alegarem a existência da crise aérea com a finalidade de eximirem-se de responsabilidades constantes dos contratos de transporte aéreo celebrados com seus passageiros.
2 CONTRATO DE TRANSPORTE
O contrato de transporte se caracteriza pela obrigação assumida por uma das partes de transportar coisas ou pessoas de um local para outro, com zelo e segurança, e possui como algumas de suas características as seguintes: (FIUZA, 2004, p. 558-559 e 560-561)
a) é típico, pois está previsto nos artigos 730 a 756 do Código Civil e também em leis esparsas;
b) é puro, pois não resulta da combinação de outros contratos;
c) quanto à forma, é consensual, pois considera-se celebrado apenas com o acordo de vontades;
d) pode ser oneroso ou gratuito e sendo oneroso, é bilateral, pois, à obrigação do transportador de efetuar, com segurança, o transporte para o destino e dentro do prazo acertados, corresponde a obrigação do passageiro de remunerá-lo;
e) é comutativo, pois as partes conhecem desde o início o conteúdo da sua obrigação.
Nesse contrato, a empresa se obriga a levar pessoa ou coisa de um lugar para outro, mediante retribuição, conforme determina o artigo 730 do Código Civil., assumindo o transportador a obrigação de levar o passageiro ou a coisa, dentro do prazo previsto, ao destino acertado.
É também um contrato de adesão, pois ao passageiro não se oportuniza a discussão de suas cláusulas, que são previamente estipuladas pelo transportador para que o passageiro apenas manifeste adesão ao seu conteúdo. (CAVALIERI FILHO, 2001, p.211-212).
3 RESPONSABILIDADE CIVIL DO TRANSPORTADOR AÉREO
A obrigação de reparar um dano está prevista na Constituição Federal de 1988, que assegura, no artigo 5º, inciso V, o direito à indenização por danos materiais ou morais ocasionados por outrem, dispondo:
Art. 5º (...)
V ? é assegurado o direito de resposta, proporcional ao agravo, além da indenização por dano material, moral ou à imagem;
Os atrasos e cancelamentos de vôos, por exemplo, podem causar prejuízos materiais, como despesas com alimentação e hospedagem no período de espera, e frustração de um negócio, e também prejuízos morais, como o desconforto e sofrimento resultantes de uma longa espera. (COSTA JÚNIOR, p. 3)
Muito além desses transtornos, os acidentes aéreos registrados também provocaram a morte de centenas de pessoas e as informações divulgadas, revelam a ocorrência de sucessivas falhas, tanto por parte do controle de tráfego aéreo, mantido pela União, quanto pelas empresas aéreas, e também a concorrência de fato de terceiro, como no caso da colisão do jato executivo contra a aeronave, em pleno vôo.
Resta saber então se, na ausência de culpa do transportador, a responsabilidade poderia ser transferida à União ou a terceiro, ou se, não se identificando o responsável pelo dano, o passageiro deixaria de ser indenizado por ele.
A identificação do responsável pode demorar e assim não se poderia deixar a vítima do dano à espera dessa identificação, para que depois pudesse ajuizar uma ação de reparação contra o culpado.
Pela leitura do preceito constitucional, não resta dúvida de que a vítima de um dano tem direito à indenização, porém questiona-se: a quem seria atribuída essa responsabilidade em face do caos aéreo e se haveria um limite para o valor da indenização. Pergunta-se ainda se as empresas aéreas poderiam eximir-se dessa responsabilidade alegando culpa de terceiro, força maior ou qualquer outro argumento excludente da culpa.
Analisando a natureza da relação jurídica existente entre o passageiro e a empresa de transporte, verifica-se que é contratual, regendo-se, portanto, pelos preceitos aplicáveis ao contrato.
É princípio geral de direito que os contratos devem ser cumpridos. (FIGUEIREDO, 2007), portanto, o descumprimento de um dever assumido no contrato gera para o lesado o direito à reparação do dano resultante.
Assim, como em qualquer contrato, no contrato de transporte o transportador responde pelos danos causados a seus passageiros.
Fixada a responsabilidade da empresa aérea, resta traçar seus contornos no ordenamento jurídico.
As leis que regiam a responsabilidade civil do transportador aéreo eram, antes do Código de Defesa do Consumidor, o Código Brasileiro de Aeronáutica (Lei n. 7.565/86), para o transporte aéreo nacional, e a Convenção de Varsóvia de 1929, para o internacional.
Em ambos a responsabilidade do transportador aéreo era objetiva, com culpa presumida, mas tarifada, isto é, limitada a um valor máximo. Seria, entretanto, ilimitado o valor da reparação civil, se comprovada a existência de dolo ou culpa grave por parte do transportador.
Porém, com a entrada em vigor do Código de Defesa do Consumidor, destinado a regular relações de consumo, suas normas passaram também a incidir sobre o contrato de transporte aéreo, tendo em vista que existe, na espécie, uma relação jurídica em que há, de um lado, um fornecedor de serviço (a empresa aérea) e, do outro, um consumidor desse serviço (o passageiro), constituindo a denominada relação de consumo.
O artigo 6º, inciso VI, do CDC prevê, entre os direitos básicos do consumidor, a efetiva reparação de todos os danos patrimoniais e morais, individuais, coletivos e difusos, independentemente da comprovação de culpa por parte do fornecedor.
Assim, enquanto no regime do Código Brasileiro de Aeronáutica e da Convenção de Varsóvia a responsabilidade do transportador era objetiva e tarifada, sendo ilimitada apenas no caso de dolo ou culpa grave, pelo Código de Defesa do Consumidor, a responsabilidade é objetiva e efetiva, isto é, sem limitação prévia, em qualquer hipótese.
Estabelece-se, dessa forma, um conflito aparente entre as normas que tratam da responsabilidade civil das empresas de transporte aéreo e surge a questão: teria o CDC derrogado as normas anteriores, isto é, revogado seus dispositivos que tratam da responsabilidade civil?
Trata-se de antinomia, descrita da seguinte forma por BOBBIO:
o encontro de duas proposições incompatíveis, que não podem ser ambas verdadeiras, e, com referência a um sistema normativo, o encontro de duas normas que não podem ser ambas aplicadas.
A solução para resolver o conflito parece-nos que pode ser encontrada no critério cronológico para a solução de antinomias. Por esse critério, entre duas normas incompatíveis, prevalece a norma posterior: lex posterior derrogat priori.
Aplica-se perfeitamente à situação estudada, pois as normas possuem a mesma hierarquia e, portanto, o conflito não se resolveria por esse critério.
Assim, acreditamos que, em face do Código de Defesa do Consumidor, o transportador aéreo tem responsabilidade objetiva, ilimitada e solidária em face de danos provocados aos passageiros em virtude do serviço prestado, isto é independe de ter agido com culpa e não se submete a limites impostos por outras normas.
No entanto, as empresas aéreas têm o direito de ressarcir-se pelo dano suportado, de forma regressiva, acionando os culpados em ação autônoma ou denunciando-os da lide nos próprios autos da ação indenizatória, para possa, na mesma ação indenizatória, ressarcir-se dos danos suportados.
Não se exclui, no entanto, a responsabilidade de terceiros e, no caso da União, esta pode ser responsabilizada solidariamente ou mesmo exclusivamente, quer por que os tenha realmente causado, como no caso de falha no controle aéreo que é mantido por ela, quer porque os serviços de transporte aéreo são de competência da União, que transfere-os às empresas aéreas através de contratos.
4 CONCLUSÕES
a) o transporte aéreo brasileiro vive um momento de crise, que teve início com trágicos acidentes ocorridos no país;
b) os usuários de transportes aéreos passaram a conviver com inúmeros transtornos, como atrasos e cancelamentos freqüentes de vôos, provocando-lhes situações e as viagens aéreas tornaram-se Nesse cenário, as viagens aéreas tornaram-se menos atrativas, pois há atualmente insegurança por parte dos passageiros, que, além do medo, passaram a conviver com atrasos e cancelamentos freqüentes de vôo, resultando em danos materiais e morais;
c) sucederam-se lesões aos direitos dos passageiros e, até o momento, persiste um clima de intranqüilidade e sensação de impunidade pelos danos, sem que consigamos vislumbrar o final da crise e sem que tenhamos identificado ainda, de forma bem clara, o responsável pelos danos resultantes, razão pela qual torna-se oportuna a discussão jurídica acerca da responsabilidade por esses danos;
d) A pergunta que todos se fazem é a mesma: quem responde pelos danos. As empresas aéreas poderiam alegar fato de terceiro para eximir-se de responsabilidade pelos danos nos quais não tenha culpa em sentido amplo (dolo ou culpa);
e) o contrato de transporte é contrato nominado previsto no Código Civil, e, em face dele, o transportador assume a obrigação de transportar coisas ou pessoas com zelo e segurança;
f) a responsabilidade do transportador aéreo por dano estava prevista na Convenção de Varsóvia de 1929, para o transporte internacional, e no Código Brasileiro de Aeronáutica, para o transporte aéreo nacional. Essas normas dispunham que a responsabilidade do transportador aéreo por dano, na inexistência de culpa, era objetiva, com culpa presumida, mas tarifada;
g) o Código de Defesa do Consumidor, entretanto, regulou de forma diferente a responsabilidade civil do fornecedor, conceito no qual podem ser enquadradas as empresas de transporte aéreo, pois estabeleceu o princípio da efetividade da reparação de danos patrimoniais e morais, independentemente de culpa, isto é, há responsabilidade objetiva sem tarifação;
h) estabelece-se, assim um conflito aparente entre as normas anteriores e o CDC, nos dispositivos que tratam da responsabilidade civil das empresas de transporte aéreo;
i) Vislumbra-se, como critério solucionador desse conflito o critério cronológico, no qual a lei posterior revoga a anterior, naquilo que com ela for incompatível. Esta é a hipótese que se verifica na questão da responsabilidade civil;
k) Assim, em conclusão, acreditamos que o CDC derrogou as normas anteriores, isto é, revogou seus dispositivos no que se refere à responsabilidade civil do transportador, que, na relação de consumo estabelecida, é o fornecedor, mantendo assim a objetividade da responsabilidade e eliminando os limites impostos pela norma anterior
l) Ressalve-se, no entanto, que as empresas poderão pleitear perante os culpados pelo dano, de forma regressiva, o ressarcimento dos valores pagos a título de indenização, pois não se exclui a responsabilidade da União ou de terceiro pelo dano causado.
REFERÊNCIAS
BOBBIO, Norberto. Teoria do ordenamento jurídico. 8. ed. Brasília: Editora Universidade de Brasília, 1996.
CAVALIERI FILHO, Sergio. Programa de responsabilidade civil. 2. ed. rev. aum. e atual. São Paulo: Malheiros, 2001.
COSTA JÚNIOR, Ademir de Oliveira. A crise aérea e a responsabilidade civil das empresas de aviação. Disponível em ?http://jus2.uol.com.br/doutrina/imprimir.asp?id=10080?. Acesso em 10.10.2007.
FIGUEIREDO, Luiz Augusto Haddad. Apagão aéreo: o consumidor e o aspecto jurídico da crise aérea. Disponível em ?http://conjur.estadao.com.br/static/text/52949?display_mode=print?. Acesso em 07.11.2007.
FIUZA, César. Direito civil: curso completo. 8. ed. rev. atual. e ampl. Belo Horizonte: Del Rey, 2004.
NORONHA, Fernando. A responsabilidade civil do transportador aéreo por danos a pessoas, bagagens e cargas. Revista Seqüência, n. 45, p. 151-171, dez de 2002.
Autor: Pedro Ivo Fontenelle Cabral


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