O JOGO SIGNIFICANTE: UM OLHAR SOBRE A AQUISIÇÃO DA ESCRITA A PARTIR DA TEORIA DO VALOR DE SAUSSURE



Jomson Teixeira da Silva Filho

RESUMO: Este artigo tem como objetivo principal questionar a concepção de escrita como representação da fala, embora entenda que essa é a posição teórica predominante no campo que concerne à escrita especialmente no que diz respeito à aquisição. Baseado em autoras como Lier-De-Vitto & Andrade (2008), Mota (1995), Bosco (2005), Faria (1997) e De Lemos (1992 e outros) além é, claro de Saussure, pretendo discutir sobre a possibilidade de uma perspectiva da escrita que considera o funcionamento lingüístico-discursivo, o jogo significante e suas relações vistas a partir da teoria do valor encontrada em Saussure, para a interpretação de fenômenos que emergem da relação do sujeito com a escrita. Apresento para tanto, dados de escrita infantis, coletados de trabalhos das referidas autoras para melhor discutir tais fenômenos, inclusive aqueles que estão pautados na relação oralidade/escrita.
PALAVRAS-CHAVES: Aquisição da escrita; teoria do valor; jogo significante; sujeito; linguagem.

ABSTRACT: This article's main objective is to question the concept of writing as representation of speech, but considers that this is predominant in the field theoretical affixing it comes to writing especially with regard to the acquisition. Based on authors like Lier-De-Vitto & Andrade (2008), Mota (1995), Bosco (2005), Faria (1997) and De Lemos (1992 and others) than it is of course de Saussure, I intend to discuss the possibility of perspective that considers the writing operation linguistic-discursive, the game and significant relations seen from the theory of value found in Saussure, for the interpretation of phenomena that emerge from the subject's relation to writing. Present for both data, writing for children, collected works of these authors in order to better analyze these phenomena, including those that are graded in relation orality / writing.

KEYWORDS: writing Acquisition; value theory; significant game, subject, language.

INTRODUÇÃO

Neste artigo serão revisitadas as concepções que analisam produções de escritas infantis que servirão de base para introduzir um ponto de vista que reconhece o jogo significante no funcionamento da linguagem, que como diz Lier-De-Vitto & Arantes (2008), "instaura e governa a relação da criança com a escrita". (p. 55).
Faz-se necessário, desde já, trazer o que destaco no título deste trabalho e que será por vezes aqui retomado, a saber, o jogo significante, para deixar claro que estou assumindo uma perspectiva teórica alinhada a uma leitura de Saussure, que traz à tona uma reflexão sobre o sujeito.
Para isso faço uma breve retomada daqueles que considero estar entre os mais significativos trabalhos no campo da aquisição da escrita. Mota (1995) com sua tese de doutoramento "O quebra cabeça: a instância da letra na aquisição da escrita", Bosco (2005) "A errância da letra: o nome próprio na escrita da criança", Faria (1997) em sua dissertação de mestrado "Nas letras das canções a relação oralidade-escrita", Lier-De-Vitto & Andrade (2008) no artigo "Considerações sobre a interpretação de escritas sintomáticas de crianças" e também Saussure em seu Curso de Linguística Geral.
Procuramos aqui, questionar a noção de escrita como sendo representação da oralidade e da linguagem como objeto de conhecimento acessível ao sujeito diretamente por meio da percepção e observação.
Retiramos assim o sujeito da posição de origem, para a posição de sujeito efeito de linguagem, capturado pelo seu funcionamento, pelo jogo simbólico de significantes.
Apresentamos por fim, a análise de alguns dados retirados do "corpus" das autoras citadas dando ênfase a suas análises, mas também colocando nossa leitura e olhar sobre eles.

1. DA NOÇÃO DE ESCRITA

Bosco (2005) afirma que todo trabalho que se propõe a discutir questões relacionadas à escrita acaba tratando das relações entre o oral e o escrito. A autora continua dizendo que a literatura, ao trazer esse tema como questão o faz em termos de oposições, relativas àquilo que é do oral e do escrito, como se pode perceber nos exemplos por ela enumerados e repetidos aqui: presença de interlocutores na linguagem oral e ausências desses na linguagem escrita, ancoragem situacional do oral e afastamento da situação do escrito, fugacidade do oral e permanência do escrito. (p.114).
Quando passamos para o campo que estabelece uma relação entre o oral e o escrito, como fizemos a pouco, percebemos que na tradição ocidental, essa relação é pautada na assunção de que a escrita é representação da fala, da oralidade. Coloca-se então a linguagem oral em um patamar de privilégio, atribuindo à escrita um valor secundário e menos importante. Dessa forma como bem afirmam Lier-De-Vitto & Andrade (2008), em grande parte dos estudos voltados para a escrita infantil, assume-se que a escrita tem o estatuto de representação gráfica da pauta sonora da linguagem. A aquisição da escrita seria, então, decorrente de uma construção conceitual da relação fonema-grafema, que ocorreria em situação escolar. Fracassos, falhas e desvios nesse processo levam, inexoravelmente, à suposição de uma dificuldade inerente à criança ? o que determina seu encaminhamento para a clínica (psicopedagógica e fonoaudiológica, predominantemente). Se o insucesso, no processo de alfabetização, é atribuído à criança, ao chegar à clínica fonoaudiológica, tal suposição ganha força ao ser encapsulada no interior do discurso organicista em que ela é circunscrita à dificuldade de ordem perceptual e/ou cognitiva. Dá suporte a esta afirmação a natureza dos aparatos diagnósticos e de reabilitação do campo da Fonoaudiologia, que são notadamente derivados de uma concepção centrada em capacidades do indivíduo. (p.55).

A noção de escrita como representação da oralidade como colocada acima, a assunção de um conceito de linguagem no qual essa é diretamente transmissível e acessível, ou seja, um objeto que pode, por, isso, ser naturalmente apreendido/aprendido por um indivíduo devidamente dotado de capacidades cognitivo-perceptuais.
Há, nessa concepção, uma total aceitação à idéia de naturalidade e transparência na relação entre o que é da ordem do perceptual e o que é da ordem do lingüístico. Corroborando com o que Lier-De-Vitto & Andrade chamaram de "lógica dualista da relação sujeito-linguagem" (op.cit. p.55).
Existira assim, de um lado um sujeito que é dotado de capacidades que o permitem "apreender e segmentar o objeto" e, de outro, o objeto com propriedades e características totalmente discerníveis e disponíveis para que o sujeito dotado de capacidades possa internalizá-lo e compartimentá-lo.
Essa noção que toma o sujeito e a linguagem numa perspectiva de um para um, ou seja, sujeito-objeto nos parece totalmente inaceitável, uma vez que o sujeito aqui é tomado, como diria Cláudia de Lemos, como sujeito efeito de linguagem, ou, seja, "do centro de captura, em que ele é confundido com faculdades biologicamente determinadas, o sujeito passa a ser capturado pela linguagem". (Andrade 2006, p.24).
A partir dessa perspectiva, intentamos reivindicar outro lugar para a escrita, no que diz respeito inclusive à relação que essa estabelece com a oralidade. Pretendemos fugir da noção de escrita como representação da fala, da relação dual oral/escrito, por considerar a língua como um sistema que funciona através de suas relações/manifestações lingüísticas.
Não pretendemos desde já apresentar um conceito fixo para a escrita, como poderia parecer mais coerente, de modo que pudesse determinar o que de fato faz parte do domínio da escrita. Seguimos, no entanto, os passos de Bosco (2005) afirmando que essa é uma tarefa que implicaria passar por diversos campos do saber, tamanha a complexidade que abarca esse tema. Esperamos, contudo, deixar clara a concepção de escrita que adotamos neste trabalho.
Abaurre (2002), em uma comunicação publicada, interessa-se em discutir a representação feita pelas crianças da relação existente entre a fala e a escrita. Essa autora questiona a afirmação de que a criança escreve como fala e se pergunta até onde essa afirmação pode ser válida.
Para responder tal pergunta, a autora recorre ao vasto material que tem colhido para suas pesquisas e afirma, ao analisar esses dados que essa afirmação é "ingênua" e "equivocada" (p. 126). Assim. Afirma Abaurre


Nas centenas de textos já examinados, nunca nos deparamos com um caso se quer que pudesse ser considerado como uma mera tentativa de transcrição da fala. A tarefa que aguarda o aprendiz de escrita é bem mias complexa do que "escrever a fala" [...]. (2002, p.126).


Das palavras da autora, podemos concluir que a escrita possui um funcionamento próprio, baseado no Jogo das formas escritas, das formas gráficas, que captura o sujeito quando este está imerso em discursos escritos, quando esse está em contato com portadores de texto.
Assim, como acontece na linguagem como um todo, o sistema da escrita
constitui seu valor no jogo das relações entre seus elementos que se deixam determinar pelas cadeias manifestas e latentes , ultrapassando, dessa forma, o que é da ordem do oral, abarcando uma dimensão que é exclusivamente própria da escrita .
Para finalizar este tópico, trago mais uma vez as palavras de Bosco (2005) quando afirma que "deve-se recusar a definição de escrita como "figuração", "representação" da fala, uma vez que nem o fonema nem o grafema possuem em si uma essência, e, por isso, não se definem como positividades." (p.110). Voltarei a esse ponto ao longo deste trabalho.

2. DO JOGO SIGNIFICANTE

Neste ponto do trabalho queremos chamar a Saussure na condição de fundador da Linguística Moderna, ou seja, da Línguística como ciência ou do estudo científico da linguagem.
Como a muito vem sendo dito, para que se considerasse a lingüística como ciência era necessário que se concebesse com clareza, o seu objeto de estudo. É justamente o que propõe Saussure ao fazer o recorte e eleger a língua como objeto primordial dos estudos da ciência lingüística, separando assim, a língua, da realidade heteróclita e multiforme da linguagem.
Saussure, dentre outras coisas, estabelece a separação entre língua e fala e define a primeira como sendo objeto de classificação. O autor rompe com o já tradicional estudo da linguagem, ao estabelecer um objeto e dar a ele um caráter científico.
Rodrigues (1975), afirma que:

A grande novidade de Saussure será justamente a de rejeitar a visão de um "objeto dado" e postular uma perspectiva teórica: o objeto lingüístico não é o objeto dado, mas o objeto posto, constituído, produzido pelo trabalho de investigação. (p.9).


A partir desse objeto posto, as línguas deixam de ser realidades passíveis de serem apreendidas pela observação e/ou percepção. Segundo Andrade (2008), esse autor estabelece uma perspectiva não indutivista, implementando outra visão, de cunho dedutivista nos campos de estudos lingüísticos na qual não será no objeto dado que se buscará o que há de geral na linguagem.
Saussure desconfiou do caráter positivo das unidades elementares dadas e procurou explicar a determinação das unidades enquanto "efeito de relações numa cadeia concreta de significantes". Resumidamente podemos afirmar que a ciência da linguagem nasce do distanciamento de métodos indutivos e de sua crença no poder da observação.
As unidades em Saussure são efeitos da relação do jogo significante, daquilo que não é visível ou perceptível diretamente, apesar de se constituírem de unidades concretas. É o que observa Saussure ao dizer que "a língua apresenta este caráter estranho e surpreendente de não oferecer unidades perceptíveis à primeira vista". (1916, p.124).
Embora a primeira parte do Curso de Linguística Geral, que apresenta a teoria do signo e que como afirma Faria (1997), apesar de esta teoria ter sido sobreposta à teoria do valor, seja coerente com a visão de que o som é o produto do conceito, como afirma Hegel , e que assim qualquer outro significante seria secundário, como no caso da escrita, que representaria a voz, o som, como bem exemplifica a citação de Saussure ao afirmar que "língua e escrita são dois sistemas distintos de signo, a única razão de ser do segundo é representar o primeiro (...)" (Saussure, 1972, p.34), podemos perceber, através da citação de Faria (1997) citando, por sua vez Derrida, que "é preciso opor Saussure a si mesmo", sobretudo a partir da teoria do valor, que aponta para o reconhecimento de que a letra e o fonema não possuem uma essência, sendo seu valor puramente negativo e diferencial.
Dessa forma, o que liga um ao outro não diz respeito à positividade de suas propriedades, pelo simples (?) fato de que elas não existem, não sendo possível representá-los em si próprios ou representar um pelo outro.
Podemos então afirmar, como insiste Saussure em dizer, que as unidades são categorias concretas, embora não transparentes que não se definem em sua essência, mas que têm justamente como características, ser aquilo que as outras ao são.
A solução proposta por Saussure para responder ao problema da delimitação das unidades é justamente aquilo que compõe sua maior novidade e um ponto nevrálgico para este trabalho: a teoria do valor. Saussure afirma


a idéia de valor nos mostra que é uma grande ilusão considerar um termo simplesmente como a união de certo som com certo sentido. Defini-lo assim seria isolá- lo do sistema do qual faz parte; seria acreditar que é possível começar pelos termos e construir o sistema fazendo a soma deles. (p. 132).


Dado que a delimitação das unidades se faz através da relação de valor, o autor afirma que as relações e diferenças dentro do sistema lingüístico se dão a partir de duas esferas distintas, mas que se complementam, a saber, uma "em praesentia" denominada de sintagmática, e outra "em absentia" chamada de associativa, mais tarde também conhecida pelo termo paradigmática, e que Cláudia Lemos a partir de uma releitura de que Lacan faz de Saussure e Jakobson, chamou de processos metonímicos e metafóricos.
Levando tudo que foi dito até agora para o campo da aquisição da escrita, segundo Mota (1995), na hipótese da representação, a linguagem não pode ser vista como um sistema e as suas partes- fonema, sílaba, letra- é atribuído um caráter de positividade, de identidade. Diz Mota (1995)


Não é reconhecida a sua natureza negativa e relacional que só permitem que se atualizem, isto é , que assumam um valor no jogo do funcionamento da língua. Ou, em outras palavras para retomar aqui a expressão de Derrida, na cadência do movimento da diferencia, cujos efeitos ultrapassam a instância de cada unidade, determinando o deu valor. (op.cit: 98)


Observando também os dados de Bosco (2005) sobre os escritos infantis, percebemos que estes dão visibilidade de que para eles não cabe uma análise pautada na essência, na positividade, ao contrário, é possível percebermos que cada elemento constituinte da cadeia grafada não tem um valor dado anteriormente, mas como diz Bosco (2005) "o adquire como efeito da montagem textual, que coloca em cena, na leitura, cadeias manifestas e cadeias latentes". (p.121).
A teoria do valor é aqui retomada justamente para trazer à tona aquilo que Bosco (2005) chamou de "privilégio do significante no sistema de diferenças", ou seja, a língua na qual os significantes funcionam em relação com outros significantes e cada significado nasce do efeito dessas relações, que como diria De Lemos, relações entre as já citadas cadeias manifestas e cadeias latentes.
A abordagem que vimos fazendo até agora sobre o sistema da escrita coloca então em suspensão, a já tão comentada positividade das unidades lingüísticas e colocada em prova pelo próprio Saussure através da teoria do valor.
Resumidamente podemos dizer que o sistema da língua ou os elementos que compõem esse sistema não são caracterizados por suas qualidades próprias ou positivas, mas pelo fato de não se confundirem entre si.
Isso parece refletir o funcionamento da língua, o jogo

da representação na qual a relação e a diferença atuam como primitivos, o valor simbólico de um significante perde seu estatuto de significado anterior, obtendo na sua relação com outro significado anterior, obtendo-se na sua relação com outro significante, seja ele oral ou escrito. (FARIA, 1997, p.110).


E ainda "a unidade lingüística remete a um funcionamento que ao engendrar relações do tipo parte-todo, cria lugares estruturais ocupados pelo que, como fruto dessas relações, se constitui em unidades". (op. cit.: 133). Unidades essas que só adquirem seu valor no jogo dos significantes.
A partir dessa leitura feita de Saussure, resta-nos afirmar que aqui não há lugar para um sujeito epistêmico, dado que esse sujeito é capturado pela linguagem, ou seja, não esperamos em relação à criança um saber, nem capacidades cognitivas prévias que determinam seu acesso à linguagem, nem indivíduo psicológico, nem indivíduo da espécie. Passemos assim aos dados.

3. DAS ESCRITAS INFANTIS

Mota (1995), em sua tese de doutorado toma como ponto central a aquisição da escrita. Chamo neste momento a autora para delinear o quadro teórico que assumimos neste trabalho e que vemos explicitando mesmo que de forma indireta, a saber, o trabalho que vem sendo desenvolvido por Cláudia de Lemos.
Em seu trabalho, Mota afirma que o quadro teórico desenvolvido por Cláudia Lemos, dentre outras coisas, tem o mérito de se situar em lugar que aparece como alternativa, dentro dos estudos em aquisição da linguagem, aos estudos da Psicolinguística e ao mesmo tempo por caracterizar um retorno ao estruturalismo europeu ressignificado pela Psicanálise de linha francesa.
Correndo o risco de sermos extremamente redundantes, queremos destacar, aqui, que os dados que serão analisados o serão de acordo com o quadro teórico a que fizemos referência anteriormente, a saber, o Interacionismo defendido por Cláudia de Lemos e também por todas as autoras que convocamos durante todo esse trabalho.
Isso se justifica pelo fato de essa teoria conceber a relação do sujeito com a língua de tal forma que o sujeito é considerado totalmente impedido de "controlar" sua entrada na linguagem, como se o primeiro tivesse algum tipo de poder sobre a segunda. Ao contrário, como bem explicitado anteriormente, o sujeito aparece como sendo afetado pela língua, como efeito da língua.
De acordo com essa perspectiva teórica, a relação entre a oralidade e a escrita não está pautada na representação direta desta por aquela. Na medida em que a escrita estabelece uma relação com a oralidade, de igual modo, não se representam, visto que o fonema e o grafema não possuem em si mesmo uma essência e não podem ser tomados como entidades dotadas de positividades.
Assim, como afirma Faria (1997b), "a passagem do texto oral para a forma escrita pressupõe um desfazer-se do texto para, em outro lugar, com outra forma e a partir de uma estrutura e de um funcionamento diferentes, fazer-se texto novamente." (p.43).
No segundo tópico, trouxemos para nossos questionamentos a teoria do valor de Saussure, por considerarmos que não cabe abordar essas questões sem levar em conta esse ponto.
Derrida (1975), é um outro autor que vem da filosofia para também tratar de questões sobre a escrita. Sem nos atermos em mais detalhes, Derrida afirma que o estatuto do signo em Saussure é lingüístico e que por isso representa para outro signo e não uma idéia ou coisa. Vale considerar o que afirma Saussure quando diz que mexer em qualquer signo reflete em todo o sistema, uma vez que o valor de qualquer termo está determinado por aquilo que o rodeia. É sob esse prisma que passamos agora a apresentar alguns dados.
O dado que se segue foi abordado por Lier-De-Vitto & Andrade (2008). Trata-se de um episódio acontecido durante terapias fonoaudiológicas.
Um menino de sete anos apresenta uma escrita fixa, cristalizada, que fica restrita ao próprio nome e a algumas "palavras" retiradas de temas e personagens de videogames. As autoras afirmam que essa escrita não apresentava um valor de "escrita", oferecendo características de desenho, "de imagens sem mobilidade significante, espalhadas aleatoriamente sobre o papel" (op. cit. 2008, p.64).
Em sua tese de doutorado intitulada "A errância da letra: o nome próprio na escrita da criança", Bosco (2004), afirma que a escrita da criança em alfabetização parte geralmente de seu próprio nome, suspeitando que nas primeiras produções escritas de crianças não são quaisquer letras que aparecem, corroborando com o fato de que são as letras de seu próprio nome que insere a criança na escrita, ou seja, na rede de significantes da escrita.
Como dissemos anteriormente, a escrita dessa criança aparece como um bloco fixo, pois apesar de trazer partes de "seu nome" é "imóvel" . Vejamos então, produções que demonstram haver uma mudança na escrita dessa criança.



Aqui, pela primeira vez, percebemos uma descristalização na escrita dessa criança. Vejamos através da descrição apresentada pelas autoras como isso pode ser percebido:

A criança começa a escrever "Nintendo". Antes de terminar, a terapeuta lê, na escrita ainda incompleta, "Nintendo". A criança fala "Nintendos" e, pela primeira vez, acrescenta mais um "o" ao final do segmento. A terapeuta, surpresa, repete: "Nintendos?!" e o menino acrescenta um "s" sob "Nintendo" (não havia espaço disponível no papel para que o "s" fosse acrescentado na seqüência do segmento "Nintendoo"). Logo em seguida e em "outra linha", escreve a primeira parte de seu nome ("Luiz") e, em seguida, "Mário" (personagem de jogo eletrônico). Cabe esclarecer que até esse momento ambos os nomes eram escritos em sua forma composta: "Luiz X" e "Mário Bros". (LIER-DE-VITTO & ANDRADE, 2008, P.64).


Percebemos através dos acréscimos a Nitendo e das segmentações dos nomes que foram sendo desmembrados como o funcionamento da linguagem está capturando, de forma singular, esse sujeito.
Observemos o segmento 2:



Trazemos agora, as palavras das autoras, dispensando assim, qualquer comentário anterior:

A criança escreve "Marioo". Depois de um curto intervalo, volta para o papel e acrescenta "7" ? esse acréscimo cria embaraço à interpretação, torna o segmento equívoco: estariam grafados dois "os" ou dois "zeros"? É fato que podemos apreender um deslizamento metonímico dos dois "o" de "Nintendoo" para "Marioo", mas a criança acrescenta "7" - outro significante emerge dessa composição amalgamada ("Marioo7"). Poderíamos pensar que "007" estava antecipado como possibilidade (in absentia) sob Nintendoo"? É fato que a duplicação da letra "o" (?) / do número "0" (?), relacionada ao "S" (escrito e falado pela criança no segmento 1), levam numa direção que favorece sua interpretação como marcação de número. Aliás, como a leitura da criança virá a confirmar: ela lerá "zero". Após escrever "Marioo7", o menino escreve "Luiz" e começa a traçar "Mário". Ela pára em "Ma" e lê pausadamente a linha superior, como se fosse copiá-la: "Zé ? RO ...Zé" e interrompe: diz "Zé! Minino!" e escreve "Zé". O resultado é "LUIZMAZE".


Muito se tem para falar sobre esse dado, que de tão questionador serviria de base para que todo este artigo pudesse ser escrito. No entanto, queremos aqui ressaltar correndo o risco de cair em uma análise reducionista, alguns acontecimentos.
O primeiro diz respeito ao fato de que a escrita dessa criança, ao contrário de suas primeiras produções, já nos deixa ver como o funcionamento da língua em suas relações aparece nessa escrita.
A criança escreve e depois volta a sua escrita porque vê nessa algo que lhe toca, e ao ressignificar sua escrita acrescentando um "7" no final da palavra ""marioo", que por sua vez causa um enigma à terapeuta, um questionamento. Do cruzamento de dois significantes, "Marioo" e "7" surge um outro significante, "Marioo7", que por sua vez pode pelos eixos de funcionamento da língua, a saber, metafórico e metonímico, trazer à tona outros significantes.
Vemos aqui que tudo que se faz com a língua, se faz porque a própria língua o permite, enquanto jogo simbólico, jogo de significantes que ao se relacionarem com outros significantes convocam por sua vez significantes em uma rede de relações que não é possível "capturar", visto que esse sujeito, mesmo que inconscientemente, está assujeitado a esse funcionamento.
Observemos agora uma produção escrita de uma criança retirado do trabalho de Mota (1995):


Se atentarmos para essa produção com mais cuidado, poderemos perceber vestígios daquilo que chamaremos de jogo gráfico, ou seja, letras que mesmo não formando palavras que podem ser consideradas como sendo palavras da língua constituída seguem uma sistematicidade.
Para aqueles que analisam essa escrita visando encontrar palavras "fonetizadas" como prova empírica de que essa criança já está se alfabetizando, essa sistematicidade talvez não lhe salte aos olhos, não cause nenhum tipo de estranhamento, já que é vista como uma "pré-escrita", como natural nesse estágio de desenvolvimento.
Ao contrário, para aqueles que olham para essa escrita buscando enxergar o jogo da linguagem é totalmente possível ver uma relação de estruturas complexas. As letras se organizam de tal forma que nos parece sintagmas e por "palavras" separadas por espaços em branco, como pede o funcionamento que é próprio da escrita.
Essas unidades já nos deixam perceber uma organização, apesar de não poderem ser enquadradas em classificações categoriais, que remontam ao que diz Saussure sobre o funcionamento da língua sobre os eixos sintagmáticos e paradigmáticos, ou seja, às leis gerais da linguagem, aos processos metonímicos e metafóricos.
Nas palavras de Mota (2006), "recusamos, portanto que tais unidades articuladas possam ser vistas como elementos positivos e categorizáveis, pois elas emergem sob efeito da relação [...] de encontro e não de representação no sentido psicológico do termo" (p.151).
Observando ainda a figura abaixo, vemos que as unidades da língua na escrita desse sujeito não se estruturam por acaso, mas que mais uma vez obedecem aos eixos metafóricos e metonímicos.


Devemos observar que o modo como as palavras vão sendo escritas pela criança se assemelha muito de perto da maneira como os adultos escrevem palavras da língua constituída. Letras aparecem, somem, retornam, mudam de lugar. È assim que entra em cena o jogo dos significantes, que movimentam cadeias manifestas, que podem trazer à superfície cadeias latentes. O jogo do funcionamento da língua.

CONSIDERAÇÕES FINAIS

A partir das considerações apontadas nesse artigo, procuramos delinear uma perspectiva teórica que visa estabelecer de um ponto de vista diferente da daquele que toma a escrita como representação gráfica da oralidade, emergindo assim, uma outra concepção da relação sujeito/língua(gem).
Procuramos na primeira parte introduzir as questões de forma elementar buscando esclarecer alguns pressupostos teórico-metodológicos. Na segunda parte do artigo enfatizamos a problemática da escrita, em especial sua aquisição, na qual tentamos marcar nosso caminho com relação ao que seria para nós esse domínio ou esse campo da linguagem que demanda cada vez mais trabalhos voltados para ele.
Na terceira parte, trouxemos a noção de jogo significante, a partir da teoria do valor de Saussure, ressignificado ainda pelas teorias De Cláudia de Lemos e outros, na qual, insistimos em um conceito de linguagem pautado nas relações entre signos, significantes, e não na essência ou positividade.
Por último trouxemos dados de trabalhos muito significantes na área de aquisição da escrita que têm aberto caminhos para que muitas outras questões possam ser suscitadas.
Longe de terminar esse artigo afirmando que encontramos respostas que devem ser seguidas, afirmamos mais uma vez que questões devem levantadas de modo que muitos outros trabalhos possam surgir com o intuito de entender a complexidade de se tratar de assuntos que envolvam a linguagem e o sujeito enquanto efeito dessa linguagem, em especial no que concerne à escrita.
É essa concepção de linguagem que, de certa forma nos ajuda a tentar entender essa relação (sujeito/linguagem), nos mais variados aspectos. A escrita do sujeito surdo, privado da audição desde sempre, também coloca questões que podem ser analisadas sob essa perspectiva. Mas esse é um assunto que demanda muito mais do que pode ser falado nas "considerações finais" de um artigo.

REFERÊNCIAS

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Autor: Jomson Teixeira Da Silva Filho


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