RAPensando o Brasil de perto



Tárcia Barbosa

RESUMO

Este artigo mostra o retrato de um Brasil díspar que traz em sua história as marcas da escravidão, os efeitos de um racismo insolente que continua a manter todo um povo à margem. Na emergência de uma inclusão sócio-político-cultural é que aparece o rap como uma grande ferramenta capaz de dar visibilidade às discussões que acontecem no sub-mundo das periferias, onde vivem os herdeiros e herdeiras das grandes desigualdades sociais. A partir daí analisamos trechos de algumas músicas do rap que comprova a necessidade de repensar a realidade vigente no país.

Palavras chave: rap, preconceito, poder, consciência, negro.


O rap é um movimento que teve suas origens em Nova Iorque na década de 70 inventado pelos descendentes africanos (filhos de migrantes) e que se instalaram nos guetos dessa cidade. Geralmente, é cantado e tocado por um DJ , que fica responsável pelos efeitos sonoros e mixagens, e por MC?s que se responsabilizam pela letra cantada. Um dos pioneiros MC?s a se inserir neste estilo musical foi Afrika Bambaataa (1974) em Nova Iorque, que inventou a técnica de "encaixar" uma música na outra, sem as pessoas percebessem que mudou de faixa. Posteriormente, outros grupos ingressaram-se nesse movimento como: Laest Poets e Gil Scott Heron.

No Brasil, na década de 60, Jair Rodrigues já ensaiava o rap com a música "Deixe isso pra lá"; posteriormente em 1986, na cidade de São Paulo, aconteceram os primeiros shows de rap no teatro Mambembe pelo DJ Theo Werneck. Nesta época, as pessoas não aceitavam o rap pois consideravam-no como algo violento e tipicamente de periferia. Na década de 90, o rap ganha as rádios e a indústria fonográfica começa a dar mais atenção ao estilo. Os primeiros rappers a fazerem sucesso foram Thayde e DJ Hum. Logo a seguir, começam a surgir novos expoentes no rap nacional entre eles os que mais se destacam são: Racionais MC?s, Pavilhão 9, Detentos do rap, Câmbio Negro, Xis e Dentinho, Planet Hemp, Gabriel o Pensador, Negra Li e MV Bill.

O rap também é utilizado e misturado por outros gêneros musicais. O movimento "Mangue Beat", por exemplo, presente na música de Chico Science e Nação Zumbi fez muito bem esta mistura, além de Marcelo D2 na música "Meu samba é assim".

Atualmente, o rap está congregado ao cenário musical brasileiro. Venceu os preconceitos e saiu da periferia para ganhar o grande público. Dezenas de Cds de rap são lançados anualmente, porém o mesmo não perdeu sua essência de denunciar as injustiças vividas pelos pobres das periferias das grandes cidades.

Este estilo, para alguns tradicionalistas, provoca ainda um conflito na tradição sonora brasileira, tanto na construção musical quanto na linguagem verbal por ter uma batida rápida e acelerada e a letra vir com muita informação e pouca variação melódica. Essa postura diferenciada torna-se polêmica, porque os rappers - em sua maioria jovens negros das periferias - procuram apresentar um discurso de enfrentamento acerca da chamada "democracia racial brasileira".

A postura dos jovens cantadores de rap vai de encontro à grande parte dos negros brasileiros que ainda almejam adequar-se ao cenário nacional, através da ideologia do branqueamento que exige e sustenta sua imagem de má índole e cordialidade. A primeira, quanto ao estereótipo, cor da pele, sorriso, que comprova a presença do negro em alguns anúncios plubicitários de acordo com os interesses elitistas. A segunda é usada no sentido "harmonioso" numa sociedade etnocêntrica branca, quando o negro aceita a posição que lhe é submetida, deixando transparecer que está tudo bem. O rap faz justamente o inverso, pois transmite nas letras de suas músicas revolta, denúncia, chamando a atenção para o "mascaramento" que há na sociedade.

Em meio a esta conjuntura violenta e imprecisa na qual vivemos, percebe-se a intenção da luta pela igualdade de direito nas letras das músicas do rap. Este denuncia as crueldades e injustiças que toda população pobre suporta devido a problemas governamentais e sociais. Constataremos nas músicas a seguir citadas uma ratificação do nosso foco de pesquisa que busca mostrar o "avesso" do país, sem "camuflações".

A música Capítulo 4 Versículo 3 do álbum Sobrevivendo no inferno do grupo Racionais MC?s tem como temática principal a violência policial, quando a polícia aparece de forma autoritária, humilhando jovens negros da periferia de São Paulo:

60% dos jovens de periferia sem antecedentes criminais
já sofreram violência policial
há cada 4 pessoas mortas pela polícia 3 são negras
nas universidades brasileiras
apenas 2% dos alunos são negros
há cada 4 horas
um jovem negro morre violentamente em São Paulo
aqui quem fala é primo preto mas um sobrevivente. (Racionais MC?s, Capítulo 4 versículo 3)


Nos primeiros versos, podemos constatar a denúncia de massacres cometidos aos jovens da periferia de São Paulo, estando presentes índices oficiais, que comprovam a violência física e moral, quando "60% dos jovens de periferia sem antecedentes criminais já sofreram violência policial". Isso provoca revolta por parte desses jovens que passam a enxergar os policiais como inimigos e não como cumpridores da lei que visam assegurar a integridade do cidadão.

Outro tipo de violência presente na música é a da política social, quando é colocado o seguinte dado: "nas universidades brasileiras apenas 2% dos alunos são negros". Isso nos remete à reflexão do porquê de esses não terem a oportunidade de ingressar na universidade, em síntese, por uma questão histórica, quando o negro vivia como escravo em situações sub-humanas, sem que lhe fosse permitido o direito de integrar-se à sociedade, mesmo com a suposta "libertação". Como sabemos, o negro para ter um reconhecimento na sociedade engajou-se e engaja-se até hoje em manifestações que repare a liberdade formal negada, a exemplo do sistema de cotas.

Percebendo o poder abusivo dos policiais expresso na música é que contextualizamos a idéia que Michel Foucault em "Vigiar e Punir", desmistifica o termo "poder": "(...) esse poder se exerce mais que se possui que não é o ?privilégio? adquirido ou conservado da classe dominante, mas o efeito de conjunto de suas posições estratégicas (...)" (1975, p.26).

A analogia foi feita no intuito de evidenciar que o poder exercido pelos policiais não é mais legítimo que o dos negros, já que todos possuem um poder, de acordo com Foucault, porém as estratégias utilizadas pelos policiais trazem, além de um discurso etnocêntrico branco, instrumentos físicos de coação, como uma arma, querendo mostrar que eles são os dominadores e os negros dominados, bloqueando assim a percepção dos negros em relação ao seu poder, ressaltando que alguns movimentos, a exemplo do rap, contrariam essa idéia por contestá-la, e ainda na música em análise esse constatação é bastante explícita:

vinte e sete anos contrariando a estatística
seu comercial de tv não me engana
eu não preciso de status nem fama
Seu carro e sua grana já não me seduz
e nem a sua puta de olhos azuis
eu sou apenas um rapaz latino americano
apoiado por mais de 50 mil manos
efeito colateral que o seu sistema fez
racionais capítulo 4 versículo 3 (Racionais MC?s, Capítulo 4 versículo 3)


O trecho "eu sou apenas um rapaz latino americano" faz uma contextualização ao cantor de MPB Belchior em sua música "Apenas um rapaz latino-americano", que mostra um sujeito sem status. Os Racionais MC?s identificam-se com o mesmo sujeito de Belchior pela questão social, a diferença se dá porque o sujeito dos Racionais tem o apoio de "50 mil manos", podendo ser compreendido como uma elevação dos excluídos, produto de uma ação elitista.

Deus, nesta música, é lembrado como referência que "não deixa o mano aqui desandar", já que todas as outras referências: radio, jornal, revista e outdoor estão aí para "transformar um preto tipo A num neguinho". Deus é lembrado como pai cujo desejo indica ao filho o que é ser um homem "preto tipo A".

Enquanto os Racionais concentram seu discurso na violência policial, o rapper MV Bill na música Contraste Social, no álbum Traficando Informação, apresenta um discurso forte, contra hegemônico, concernente às disparidades sociais que afligem as comunidades dos grandes centros urbanos. A letra dessa música fala principalmente das diferenças existentes entre classes, mostrando a violência, descrença política e faz uma crítica acerca da contradição em relação à cidade do Rio de Janeiro que a Bossa Nova fez questão de consagrá-la como "Cidade Maravilhosa", que na verdade apresenta desemprego, miséria, injustiça e violência:


Eu quero denunciar o contraste social/ Enquanto o rico vive bem, o povo pobre vive mal/ Cidade maravilhosa é uma grande ilusão/ Desemprego, pobreza, miséria, corpos no chão/ As crianças da favela não tem direito ao lazer/ Governantes só falam e nada querem fazer. (MV Bill, Contraste Social)

Ainda nesta música, está presente o preconceito da cor e o poder que a mídia exerce na sociedade. Ao criticar um certo distanciamento entre a realidade e a fantasia que a televisão apresenta, o autor procura ainda enfatizar a condição do negro no Brasil, que é posta em segunda instância e coloca o branco como paradigma, enquanto deveria oportunizar a todos os grupos independente de cunho social ou étnico: "Discriminados na rua, na praia, na condução/ A televisão esquece da pobreza/ Impondo a playboyzada como padrão de beleza/ Por isso que muito cara fica revoltado". (MV Bill, Contraste Social)

MV Bill busca ainda, nas letras de suas músicas, mostrar como a resistência é importante àqueles que estão à margem, já que no Brasil, a partir dos anos 30, é estabelecida uma sociedade hierarquizada. Nesse período, o país passava por um processo de transição, em que sua economia baseava-se na monocultura que é a principal renda dos negros e mudou para a industrialização, quando passou a ser exigida mão de obra qualificada, porém esses negros, recém-saídos de um período de mais de trezentos anos de escravidão, mas não libertos dos preconceitos. A partir de então, os elementos étnicos raciais são ordenados tendo por referência apenas a elite branca do centro sul, resultado de processo de branqueamento através da chegada dos imigrantes europeus ao Brasil. A música Preto em movimento, do álbum O bagulho é doido, relata como se dá essa resistência:

Por amor a melanina
Coloco em minha rima
Versos que deram a volta por cima
O passado ensina e contamina
Aqueles que sonham com uma vida em liberdade
De verdade (MV Bill, Preto em movimento)

A valorização da cor da pele é claramente expressa nos dois primeiros versos "Por amor a melanina coloco em minha rima". A análise do passado é posta como meio de rever o presente e pensar no futuro, já que a "liberdade" ainda não existe de fato.

Outros rappers que não se omitem quando o assunto é desigualdade, são Negra Li e Helião, como podemos constatar no trecho da música Olha o menino do álbum Guerreiro, Guerreira, que traz a problemática do trabalho infantil e a falta de investimento na área de educação.

Na citação a seguir, é relatado que as crianças são exploradas quanto ao trabalho precoce, sendo impedidas de viverem a sua infância, já que possuem a responsabilidade de sustentar a família, expondo-se a violência sexual, ao mundo do crime, prostituição e ao uso de drogas.

cheio de coragem, de luta que tem
vendendo drop?s no trem
hoje em dia outra história
menino não joga bola, não joga! (...)
(Olha o menino, Negra Li e Helião)

Ainda nesta música, uma outra vertente a ser abordada é a falta de investimento na área educacional que acaba provocando algumas conseqüências, a exemplo da criminalidade:

(...) olha o menino ainda não tem idade mais realidade na criminalidade
pode ser bem feio daquele jeito
olha o menino resolvendo
bate de frente a repressão
olha o ministro cadê a educação (...)
(Olha o menino, Negra Li e Helião)


Nos dois primeiros versos, é abordada a vivência do jovem da periferia com o crime. Na seqüência, notamos ironia e um alerta ao Ministério da Educação que pouco investe em um ensino de qualidade: "Olha o ministro, cadê a educação", já que a mesma é um meio essencial para tirar o indivíduo do mundo do crime e torná-lo um cidadão crítico.

Como podemos averiguar, as letras das músicas aqui apresentadas além de trazer no seu conteúdo o debate acerca das questões sociais, produzem, através da melodia, uma expressão artística que propicia um sucesso de mercado e de política do rap, levando em consideração também um outro fator significativo, a expressão globalizada da música negra. É interessante refletirmos sobre o termo "música negra", visto que este no Brasil é substituído por black music, uniformizando os problemas e as expressões artísticas, demonstrando a dominação cultural e lingüística dos EUA (Estados Unidos da América). Mesmo considerando a "era do estrangeirismo", achamos por bem ainda ser o termo "música negra" dentro do contexto nacional brasileiro o mais apropriado, já que ao ser substituído, ele de uma certa forma, impede a percepção de efeito político que há nessa música.

O que procuramos defender neste trabalho, desde o titulo, foi a releitura de um Brasil, que nos é "ocultado" e o rap teve uma contribuição significativa nesta discussão, como porta-voz de uma classe marginalizada, vindo de encontro a todo um discurso que é repetido desde a colonização. O rap faz uma rasura nos fundamentos da representação do Estado Nacional Brasileiro de forma direta e dá-nos oportunidade de conhecer o que está nas entrelinhas desse ambiente áspero e hostil para que posteriormente reflitamos essa situação e possamos tecer nossa própria opinião.














REFERÊNCIAS

FOUCAULT, Michel. Vigiar e Punir: história da violência nas prisões. São Paulo: Vozes, 2001.

HALL, Stuart. A identidade Cultural na Pós-Modernidade. Trad. Tomaz Tadeu da Silva, Guacira Lopes Louro - 10º ed. Rio de Janeiro: DP & A, 2005.

Revista Palmares ? Cultura Afro-Brasileira. Ano I, nº 2, dezembro de 2005.

SANTOS, José Henrique de Freitas. Afroplagicombinadoresciberdélicos: Afrociberdelia e plagicombinação nas letras de Chico Science & Nação zumbi. Salvador: Ed. Quarteto, 2006.

www.comciencia.br acesso 13/01/07 às 15:24horas

www.klepsidra.net acesso 12/01/07 às 9:30horas

www.rogerrapper.pop.com.br acesso 22/12/06 às 14:00horas

www.bonde.com.br/canais acesso 11/01/07 às 14:22horas

www.territorio.terra.com.br/canais acesso 13/01/07 12:45 horas

www.noticiasdoplanalto.net acesso 10/01/07 às 12:40 horas

www.suapesquisa.com/rap acesso 10/01/07 às 12:05 horas

www.flogao.com.br/euamorap/news acesso 08/01/07 às 19:00horas

www.cliquemusic.uol.com.br/ acesso 15/01/07 às 7:30 horas

MV Bill ? Contraste Social- álbum Traficando Informação, 1999.

MV Bill ? O Preto em movimento ? álbum O bagulho é doido, 2006.

Negra Li ? Olha o menino ? Guerreiro, Guerreira, 2004.

Racionais MC?s - Capítulo 4 Versículo 3 - álbum Sobrevivendo no inferno, 1998.
Autor: Tárcia Barbosa Silva


Artigos Relacionados


Oxigênio Libera Download De Músicas

A História Do Jota Quest

A Contestação Negra Na Música "a Mão Da Limpe Za" De Gilberto Gil

Quem Criou A Música?

A História De Ne-yo

A História Do Green Day

A História Da Banda Men At Work