Tião Valentão e Zé Boca de Burro



Tião Valentão e Zé Boca de Burro

Em meio ao sol escaldante do interior goiano, em uma pequena cidade do interior goiano chamada Itapuranga, terra de gente hospitaleira e muito acolhedora, respeitadora e conservadora dos costumes antigos, entre alguns mineiros nervosinhos e nordestinos arretados surge uma figura que merece respeito e mais do que isso, por que não medo? Dentes de ouro e garrucha na cintura, seca pimenteira só com o olhar que dizem ser mais venenoso que cascavel pronta pra dar o bote, sorte de lampião que se engraçava lá pelas terras do sertão nordestino longe de Tião, não fosse isso, o cangaceiro ia piar fino na mão desse cabra, melhor, no cano de sua garrucha enferrujada.
Não por acaso até cachorro bravo se esconde e mia feito gatinho manhoso quando tá perto de Tião, mas de onde veio tão grande valentia e porque Tião é tão temido entre o povo dessa miserável cidadezinha esquecida por Deus e que teve de acolher esse pobre diabo que nem mesmo sua mãe quis dar um colo?
Na boca do povo corre um boato que lá pelos anos de mil novecentos e uns tantos um homem chegou pela cidade, com semblante de pistoleiro e cara de encrenca, naqueles tempos isso bastava pra ganhar o medo e no mínimo o respeito dos moradores, dizia a minha avó que quando avistava mesmo que de longe uma silhueta que lembrasse uma pessoa, os mais velhos logo mandavam as crianças se esconderem na tulha de arroz com medo de desertores (fugitivos de guerra). Segundo as vozes da cidadezinha ele serviu na Força Expedicionária Brasileira (2ª Guerra Mundial), e voltou do campo de combate sem amor a vida e homem de muita coragem, não tinha problemas em matar e depois se alimentar dos restos mortais de quem o enfrentava, não tinha medo nem mesmo do coisa ruim, e disse que se mesmo o cara lá de baixo se engraçasse com ele, não acharia nem o rumo do inferno de volta, que ia bater nele com vara de goiabeira e depois dar banho de salmoura. O que todos não sabiam era que Tião foi apenas cozinheiro da tropa brasileira e que nunca nem sequer visitou o campo de combate, pois no fundo era medroso e covarde. Mas ao chegar de volta pra sua terra via que era bem tratado e acima de tudo como cabra bravo e corajoso, acabou aceitando a mentira e aproveitar suas vantagens.
Mas o que fez Tião pular de um simples desertor para o próprio demo em pessoa foi um acontecido presenciado pelo povo de Itapuranga. Lá pelos meados do mês de junho quando todo mundo deixava de dormir mais cedo e ia pra quermesse da Igreja Católica pra festejar a Festa de São Sebastião, um gole da branquinha daqui, um beijo na morena dali e qualquer moço de família se torna homem bravo, imagina Tião que chegara recentemente da guerra e não tinha medo de nada ? bom, pelo menos era isso que ele dizia - foi só uns goles da "braba" e ele se achava mais valente que porco de brinco. Foi numa dessas que um casal que rodopiava no salão do baile passou perto de Tião e o moço pisou meio que sem querer no pé do miserável, ah, bastou uma olhadela trocada pelos machos para ver que os santos não se cruzavam, o moço bailarino logo disse que não era de briga mas que se for preciso nem mudava de cor pra mostrar pra nego valente que braço de roceiro foi feito pra derrubar homem de pouca coragem, Tião com sua reputação de "ex-guerrilheiro" a zelar não podia deixar barato ? ainda que todos os seus ossos tremessem de medo -, e disse que não precisava de mais que cinco segundos pra derrubar o jovem dançante. Nessa hora a música parou e o resto do baile só tinha olhos para a briga que estava prestes a começar, a roda se abriu no meio do salão e o moço bailarino armou o braço pra acabar logo com aquela história, e quando projetou seu corpo em direção a Tião tropeçou em uma pedra e caiu aos pés do homem "valente" que apenas se encarregou de esbofetear o pobre coitado, também pudera, chutar cachorro morto todo mundo dá conta! Mas foi tudo tão rápido que os olhos dos que viam não perceberam que foi o tombo de seu algoz que o fez perder, e Tião ficou conhecido a partir daí como Tião Valentão.
O respeito e o temor que recebia do povo itapuranguense não era nada ruim, era convidado para as festas e sempre era bem tratado por todos, parecia mais celebridade, e numa dessas festas apareceu lá pelas bandas de Itapuranga um homem de cara feia, que também não era flor que se cheire, conhecido como Zé Boca de Burro, chamado assim porque, dizem boatos que ele cavalgava pelas estradas de Goiás no lombo de um burrinho, que não agüentava ver uma sombra de árvore que logo empacava e dali não saía, numa dessas Zé perdeu as estribeiras e com um só golpe na boca do animal desfaleceu o pobre burro.
O tal do Zé tava na festa de casamento de um casal tradicional da cidade, e lá estava Tião Valentão, convidado especial do pai da noiva, foi só começar os comes e bebes que Zé boca de Burro encheu a cara e logo tava pisando alto, o pai da noiva com medo de o sujeito estragar a festa da filha foi acionar a valentia de Tião para expulsar de lá o forasteiro encrenqueiro, Tião como não podia se negar e perder sua valentia, tomou coragem e chamou o bêbado para deixar a festa e ir beber em outro lugar, Zé como não era de levar desaforo pra casa, foi logo dizendo que tava doido pra quebrar a cara de alguém naquela noite. Pronto! A confusão tava armada, pobre de Tião que se via naquela situação, não tinha coragem nem sequer de matar galinha pra fazer farofa e agora ia brigar logo com aquele "monstro" enfurecido. E novamente a roda se abriu e Zé Boca de Burro com um só cruzado de canhota desmontou o pobre Tião Valentão, que ficou no chão com quatro dentes a menos em sua boca, dos quais dois até hoje não foram encontrados, uns dizem que Zé Boca de Burro os usa dependurados como colar em seu pescoço, disso eu não sei, só sei que a valentia de Tião acabou desde então, ele que nunca foi corajoso agora vivia como um pobre coitado e perambulava pelos bares e botecos de Itapuranga enfiando a cara na branquinha pra esquecer-se do vexame que passou, e até hoje não houve macho que se metesse com Zé Boca de Burro que é o típico Valentão do interior goiano.

Autor: Diego Reis Cardoso


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