Consumismo Global E Caos Amazônico



O grande desafio é como nós vamos fazer parte do mundo
e como o mundo vai fazer parte da Amazônia
(Lúcio Flávio Pinto)

Como a globalização tem gerado processos padronizados de produção e consumo, que, a todo momento, subvertem e/ou (dependendo do contexto econômico regional) reatualizam as fronteiras convencionais do mundo atual, facilitando e acelerando o ciclo reprodutivo do capital, empresas transnacionais, à medida que promovem o desenvolvimento de suas forças produtivas, têm-se apropriado das riquezas naturais existentes pelos quadrantes do globo, preterindo ou dinamizando regiões conforme suas necessidades cada vez mais amplas de realização de lucro (MELLO, 2000).

Daí a razão pela qual são inúmeros os estudiosos da questão ambiental que fazem críticas contundentes e sistemáticas à civilização capitalista, que alcançou, sobretudo a partir da metade do século XX, um elevado nível de mundialidade à custa de uma intensa e, em determinados casos, irreparável degradação do meio ambiente, pois, não por coincidência, data desse período o início da questão ambiental no planeta (MELLO, 2000; PINTO, 1992; PUREZA, 2005).

Um exemplo de análise referente à problemática ambiental amazônica vem ser o estudo de Meirelles Filho (2006), segundo o qual a exploração irracional dos recursos naturais – que provoca, dentre outras coisas, o desflorestamento, a extinção fauno-florística, bruscas alterações climáticas, assoreamento dos rios, desertificação etc. – se deve ao padrão de vida (ecologicamente insuportável, a médio e longo prazo) adotado pelas sociedades ditas modernas. Meirelles Filho (2006, p. 157) é enfático: "A única e verdadeira causa para o desaparecimento da Amazônia é a nossa ganância por mais carne bovina, por mais madeira, mais ouro".

De acordo com Meirelles Filho (2006, p. 157-8), se não fosse a busca insaciável "pela elevação de nosso padrão de consumo", não se estaria discutindo o desencadear de uma série de problemas de ordem sócio-ambiental no contexto da Amazônia contemporânea. Na perspectiva desse autor, portanto, a causa fundamental, seminal, de toda problemática ambiental na região – assim como em outras partes do planeta – reside no consumismo (MEIRELLES FILHO, 2006). Meirelles Filho (2006, p. 158) chega a dizer, literalmente: "Nas tristes e frias prateleiras dos supermercados temos à nossa disposição diversos pedaços da Amazônia e das florestas tropicais do planeta, na forma de frango, picadinho ou barriga de porco".

Portanto, sua crítica tem uma forte inclinação a considerar, como fator predominante do aumento do desmatamento na região amazônica, nos três últimos decênios do século passado, não a produção econômica, em si, mas o padrão de consumo ambicionado pelos homens hodiernamente (MEIRELLES FILHO, 2006). Essas sociedades massificadas ocupam, principalmente, os centros urbanos de grandes cidades entrecortadas por agudas contradições sócio-econômicas e ambientais, fazendo pressão diuturna sobre os recursos naturais existentes em regiões onde a maioria dos países é extremamente pobre ou, quando muito, de economia emergente (MEIRELLES FILHO, 2006).

A satisfação material e cultural dessas sociedades urbanas massificadas condiciona toda uma produção igualmente massiva de bens agrícolas, pecuários e extrativistas. Mas não apenas o consumismo, acresce Meirelles Filho (2006), é algo com que os analistas ambientais devem se preocupar. Aponta também outros aspectos, embora não com o mesmo nível de importância. Assinala o conformismo de muitos setores sociais (ainda que ditos progressistas e detentores, como de fato o são, de informações relativamente privilegiadas, como é o caso de pesquisadores universitários, de órgãos públicos e de ONG's) e a impunidade, ambos concorrendo, juntamente com o consumismo, para agravar o quadro social e ambiental revelador daquilo que ele classifica de caos amazônico (MEIRELLES FILHO, 2006).

Meirelles Filho (2006) entende por caos amazônico um processo que se traduz no recrudescimento das contradições sociais, econômicas, políticas e culturais instaladas em meados do século XX. Trata-se de uma síntese do que, nos termos desse autor, as "onze bestas do Apocalipse" têm feito na região. De acordo com sua classificação, as bestas apocalípticas, presentes na região, seriam: i) a pecuária bovina extensiva; ii) a soja; iii) o carvão vegetal; iv) a exploração madeireira predatória; v) o modelo fundiário historicamente adotado no país; vi) narcotráfico e guerrilha; vii) tráfico fauno-florístico, isto é, a biogrilagem; viii) a caça predatória; ix) as grandes obras (hidrelétricas, mineralógicas, estradas etc.); x) o garimpo; e xi) a pesca predatória (MEIRELLES FILHO, 2006).

Importa discorrer, brevemente, aqui, sobre o primeiro desses itens, para se compreender outro aspecto da problemática ambiental amazônica tratada por Meirelles Filho (2006). O autor, a esse respeito, se reporta às condições históricas sob as quais se consolidou e se generalizou a atividade pecuária no país. Segundo sua análise, a história do Brasil "se confunde com a história da pata do boi. O Brasil foi ocupado ao longo de cinco séculos, silenciosamente, pelo olhar bovino e inclemente" (MEIRELLES FILHO, 2006, p. 160). O mesmo se pode afirmar quanto à história da pecuária brasileira ser, de alguma forma, a história da devastação florestal.

Para o pasto de algumas dezenas de milhares de reses, um número igual ou, em muitos casos, superior de árvores de floresta primária precisou ser pisoteado pela estrepitosa e ubíqua marcha bovina. Assim como aconteceu na Caatinga (sertão semi-árido nordestino), Mata Atlântica (área costeira sudestina) e Cerrado (Centro-Oeste brasileiro), vem acontecendo na Amazônia. Segundo Meirelles Filho (2006, p. 160), "O que se presenciou na Amazônia brasileira após a década de 1960 [foi] a mera continuidade da expansão da pecuária bovina".

Não obstante, o autor defende a idéia de que a pecuária bovina, de um ponto de vista econômico, não tem sido um negócio rentável, mesmo para o capitalista; nem ambientalmente sustentável, para o conjunto da sociedade. O desmatamento na Amazônia é feito (em grande parte) em função do avanço da pecuária bovina extensiva, sem, contudo, corresponderem seus rendimentos (quase sempre inferiores) aos investimentos inicialmente empregados (MEIRELLES FILHO, 2006).

O Instituto do Homem e Meio Ambiente da Amazônia (IMAZON) denuncia a baixa produtividade na referida atividade econômica, à vista que grande parte das terras desflorestadas não se converteu, para além dos lucros gerados pela extração da madeira, em área produtiva (MEIRELLES FILHO, 2006). Nas palavras desse autor, lê-se a propósito: "Observa-se que em vez de recuperar suas pastagens, os fazendeiros, independentemente de seu tamanho [...], preferem desmatar novas áreas na própria propriedade ou adquirir fazendas em regiões de fronteira pioneira. É mais barato!" (MEIRELLES FILHO, 2006, p. 161).

Devido a essa exploração indiscriminada e irracional dos recursos naturais amazônicos, é que o IMAZON elaborou uma divisão regional para melhor visualizar as atividades econômicas presentes e em vias de serem implantadas na região, pois cujo elevado potencial destrutivo da pecuária extensiva tradicional tem ameaçado os ecossistemas amazônicos. A primeira área é de florestas e ambientes florestais sem sinal de pressão humana – representando 53%; ao passo que a segunda e a terceira áreas de florestas e de ambientes florestais, respectivamente de pressão humana consolidada (19%) e incipiente (27%), somam quase a metade da região vivendo atualmente sob algum tipo de pressão econômica ameaçadora da integridade ambiental (MEIRELLES FILHO, 2006).

Conclui Meirelles Filho (2006, p. 161) que o avanço da pecuária bovina extensiva sobre a Amazônia é o maior "na história do planeta Terra"! Por outro lado, já que a pecuária, na sua avaliação, não é um negócio tão rentável quanto pensam os fazendeiros, nem ambientalmente sustentável pelo que enumera das conseqüências negativas ao meio ambiente, por que, então, a pecuária avança rapidamente sobre as florestas da região?

Na ótica do autor, isso é atribuído tanto ao problema educacional de que padece historicamente o empresariado rural ("[...] O pecuarista não está preparado para atuar em outros setores econômicos, precisa ser capacitado [...] Se é necessário modificar o padrão de ocupação da Amazônia, a primeira ação é capacitar os pecuaristas para fazer contas e verificar a rentabilidade de seus negócios [...]") e à intolerância a mudanças ("[...] A maior parte dos pecuaristas é arredia. É até agressiva diante de qualquer opinião alheia a seu mundo"); quanto ao medo dos pecuaristas de investirem de forma inovadora — porém com riscos — em suas atividades ("[...] o pecuarista tem medo de mudar e perder") (MEIRELLES FILHO, 2006, p. 163). Por tudo o que foi exposto até então, o autor resume sua análise geral a respeito da pecuária bovina extensiva com estas palavras:

A civilização da pata do boi é a civilização do ferro de marcar, do medo, do açoite, da escravidão, da violência velada. A falta de visão e de compromissos dos pecuaristas com a humanidade está nos levando embora a Amazônia, queimada e transformada em bife, apenas para saciar sua ganância e incapacidade em lidar com os anseios legítimos das presentes e futuras gerações (MEIRELLES FILHO, 2006, p. 163).

Diante do posicionamento de Meirelles Filho (2006), conclui-se que o autor trata a relação entre fator cultural e fator econômico não segundo uma complexidade que tal tema demanda. Embora ambos os fatores, em sua perspectiva acerca da problemática ambiental amazônica, apareçam como imanentes ao mesmo e único processo (qual seja: o processo de reprodução do capitalismo mundial) dá primazia ao primeiro, sem perceber aspectos macrossociológicos orientando a mentalidade bovina de grande parte dos pecuaristas brasileiros e da demanda urbana das grandes cidades.

O que é mais grave não é tanto o fato de ele reputar o modo de vida cultural como fator superior ao econômico (pois esse tema requer uma análise mais aprofundada), mas por restringir a causa do desmatamento à simples conduta questionável dos grandes empresários rurais, agentes econômicos que deveriam, ao contrário, racionalizar a atividade pecuária. Assim, o autor atribui bem mais à mentalidade atrasada dos pecuaristas brasileiros o modo irracional com que habitualmente gerem seus negócios, do que a outros fatores não menos importantes e, em dados casos, até muito mais.

No entender de Meirelles Filho (2006), o pecuarista não dá a mesma atenção às suas atividades econômicas, como o fazem os agricultores em relação às suas (atenção caracterizada pelo investimento em processos de preparo do solo e de produtos químicos contra pragas; em compra de maquinário, sementes selecionadas ou melhoradas geneticamente etc.); razão pela qual o autor se pergunta: "Por que não aumentar a produtividade da pecuária na região, antes de pensar em novas áreas de desmatamento?" (MEIRELLES FILHO, 2006, p. 167). E mais. "Por que não aumentar a produtividade da pecuária no Brasil não amazônico, antes de pensar em expandir seus pastos sobre a região?" (MEIRELLES FILHO, 2006, p. 167-8).

Ele, então, diz que a questão continua a ser cultural, para mais adiante, no entanto, contradizê-la: "O baixo preço da terra e a grande disponibilidade de terras facilitam a adoção desse sistema perverso de desperdício" (MEIRELLES FILHO, 2006, p. 169). Ora, está aí o fulcro da mentalidade capitalista rural dos empresários da pecuária brasileira. Se o preço das terras na Amazônia não fosse baixo, nem as mesmas existissem em abundância, como e por quanto tempo os pecuaristas do sul e sudeste brasileiros persistiriam com essa mentalidade atrasada - tão criticada por Meirelles Filho (2006) –, a qual só premia o desperdício e a ineficiência?

A história ensina que onde o desenvolvimento tecnológico (isto é, a produtividade do trabalho) foi mais acentuado, encontrou-se, ali, um meio ambiente relativamente hostil, cujos recursos naturais disponíveis ao homem foram, antes de tudo, escassos, exigindo-lhe maior dispêndio de trabalho manual e intelectual para transformar e dominar – não apenas - os fenômenos da natureza (um domínio, no entanto, não sem conseqüências sócio-ambientais indesejáveis ao próprio homem) (MEIRELLES FILHO, 2006)[2].

Quanto à problemática ambiental na Amazônia, importa frisar que a mesma não existiria com igual magnitude no mundo hodierno, se o capitalismo não demandasse das forças políticas e econômicas locais e regionais determinadas formas de ocupação de áreas florestais nativas e formas de apropriação dos recursos naturais (tornando-os, num passe de mágica, meras mercadorias) capazes de lhe garantirem condições ótimas para sua reprodução ampliada em nível global.

Não se trata exatamente deste ou daquele setor do empresariado brasileiro, mas de uma mentalidade capitalista coerente com a lógica de reprodução do sistema produtivo nacional e, fundamentalmente, mundial. O que vale para grupos econômicos cuja mentalidade empresarial é atacada por Meirelles Filho (2006), vale para o conjunto da sociedade consumidora das grandes cidades capitalistas.

A crítica sociológica ao consumismo se tornaria nula, gerando uma hermética e improfícua circularidade, caso se abstraísse dos fatores concorrentes o móbile primeiro que demanda as estratégias de padronização e expansão do hábito de consumo coletivo no mundo hodierno: a produção mundial capitalista. Todo o processo civilizatório gerado, desde os albores da Era moderna, não visa a outro fim, senão capitalizar e realizar a mais-valia extraída (das mais diversas formas de exploração econômica) em prol do modo de produção mundial, que é o capitalismo (MELLO, 2000).

Contrariando a tese de Meirelles Filho (2006), segundo a qual a mentalidade de determinados setores do empresariado rural nacionais deve mudar para serem obtidas mudanças na forma de exploração dos recursos naturais amazônicos[3], a civilização capitalista, tanto em seu aspecto econômico (atividades agrícolas, pecuárias e extrativas predatórias ou não), quanto cultural (consumismo, indústria cultural e de massa etc.), tornando o mundo seu palco, é a verdadeira causa (múltipla, complexa e dinâmica) da problemática ambiental não só, mas principalmente, amazônica.

REFERÊNCIAS

MEIRELLES FILHO, João. O livro de ouro da Amazônia. 5ª ed. Rio de Janeiro (RJ): Ediouro, 2006.

MELLO, Alex Fiúza de. Capitalismo e mundialização em Marx. São Paulo (SP): Perspectiva, 2000.

PINTO, Lúcio Flávio. A Amazônia: a fronteira do caos. Belém (PA): s/e, 1992.

PUREZA, A. R. Políticas Desenvolvimentistas e questão agrária na Amazônia: a necessária anomia ao nascedouro das ciências sociais no Pará. Disponível em: <www.klepsidra.net/klepsidra25/cienciassociais.htm>. Acesso em: 02/10/2007.

Notas




Autor: André Pureza


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