A ADAPTAÇÃO PARA O CINEMA DE EM ALGUM LUGAR DO PASSADO, DE RICHARD MATHESON



A ADAPTAÇÃO PARA O CINEMA DE EM ALGUM LUGAR DO PASSADO, DE RICHARD MATHESON

Traduzir é, nessa medida, repensar a configuração de escolhas do original, transmutando-a numa outra configuração seletiva e sintética.
Julio Plaza, Tradução Intersemiótica.

Neste presente estudo, temos como objetivo mostrar que pequenos detalhes alterados em uma obra literária, quando transposta para o cinema, podem gerar significações totalmente diferentes das originais. A construção de sentido é alterada, perdendo e ganhado novos significados e permitindo outras interpretações. Temos como meta, portanto, mostrar que estas pequenas omissões podem mudar o significado de uma história.
A obra aqui estudada é Somewhere in time (Em algum lugar do passado, 1975) do escritor norte-americano Richard Matheson e sua respectiva adaptação cinematográfica, dirigida por Jeannot Szwarc e com roteiro do próprio Matheson em 1980. Este estudo, do ponto de vista teórico, apóia-se em alguns conceitos de Bakhtin e de Pere Gimferrer, que fez estudos relacionando cinema e literatura.
Iniciaremos com a apresentação da obra literária, que originalmente foi intitulada de Bid time return (Ordena que o tempo volte), título mudado somente após o lançamento no cinema, devido ao grande sucesso da película. O enredo nos conta a história de Richard Collier uma personagem que consegue ou imagina fazer uma viagem no tempo (de 1972 para 1896) para reencontrar um grande amor ? Elise Mckenna.
Primeiramente, discorreremos sobre as personagens do livro, começando pelo protagonista Richard Collier que é uma personagem já morta, contando a sua trajetória através de um diário escrito por ele e publicado pelo irmão posteriormente. Richard é um homem extremamente misantrópico e antissocial, talvez devido à situação em que se encontra. Ele vê a vida sem objetivo, tem muitas atitudes distímicas, ou seja, enxerga negatividade e melancolia em tudo. Fato demonstrado nas passagens a seguir:
A godlike feeling to uncreate entire communities with a stroke of will. (MATHESON, 2008, p.24)
E
Why did I come here? It all seems senseless now. A hundred and twenty-eight miles for what? (Ibid, p.25)
Notamos, nestes dois trechos, a visão que a personagem tem do mundo. Mais adiante será falado sobre o que o levou a tomar esta posição diante da vida.
Uma personagem secundária, mas de extrema importância na obra, é Robert Collier, irmão de Richard. Suas ações geram uma outra interpretação de todo o enredo. Como percebemos adiante:

Yielding to the publisher, I?ve done extensive pruning in the first section of the manuscript. Again, I?m not sure I?ve done the right thing. (...) Still, I do feel guilty about it.  (Ibid, p. 11)

It is not surprising that Richard envolved the desilusion that he had traveled back through time to meet Elise Mackenna. (Ibid, p. 313)

Vemos, acima, trechos que geram dúvidas sobre o que realmente aconteceu a Richard. Temos, nesta obra, a expressão definida por Umberto Eco como ?obra aberta?, ou seja, há mais que uma interpretação do mesmo texto; se de um lado existe um Richard que acredita ter retornado ao passado; do outro temos um irmão que alterou o texto original e contesta a possível viagem no tempo de Richard.
Por último, temos Elise McKenna, que vive em outra época (1896) e foi criada a partir da biografia de uma atriz, Maude Adams. Ela surge para Collier através de uma fotografia, que o encanta e faz com que ele busque cada vez mais informações sobre esta mulher, ela é o elo entre ele e o passado, entre a tristeza e o amor.
Para concluir sobre a obra literária, falaremos de alguns aspectos importantes dentro da narrativa: o conflito central do herói, Richard, é tentar manter-se vivo e ser feliz pelo menos em um momento de sua vida, pois ele tem uma doença em estágio terminal; a localização espacial se dá no ano de 1896, data em que Elise McKenna (Maude Adams) representou uma peça de teatro dentro do hotel em que ele está, e que segundo o livro de hóspedes, Richard também esteve lá neste mesmo ano, pois há a sua assinatura nele; e por fim, com o êxito em sua viagem através do tempo, ele tem três dias ao lado de McKenna que lhe é extremamente carinhosa e lhe presenteia com um relógio de algibeira Elgin, marca muito famosa no século XIX nos Estados Unidos. Este presente os ligará para todo o sempre, pois Richard retorna a 1972 com este relógio na mão. Tanto McKenna, quanto o relógio e alguns escritores são calcados no mundo real, criando a sensação de legitimidade do enredo de Matheson . Todos estes fatores serão alterados na versão para o cinema.
Então façamos a nossa analogia com filme homônimo, que evidentemente dialoga com a narrativa. Esta relação dialógica é estabelecida tanto pela reprodução dos enunciados presentes no enredo de Matheson, como também pelo conhecimento anterior de situações próximas constituintes da própria vivência do homem e, também, da Literatura. Alguns livros como The time and the man, de J.B Priestley, Time and again, de Jack Finney, são citados dentro do enredo de Somewhere in time e realmente fazem parte da literatura universal, já Travel trhough the time, aparece dentro do roteiro e foi escrito por um antigo professor de Richard, existindo somente na realidade fílmica.
Todos os livros, acima citados, têm um protagonista que consegue retornar no tempo através do processo de indução da mente, garantindo à obra (tanto a fílmica quanto a literária) intertextualidade, ou seja, a relação entre textos estudada por Mikhail Bakhtin. Usaremos a definição dada pelo professor Izidoro Blikstein :
(...) o discurso seja qual for nunca é autônomo. Suportado por toda uma intertextualidade, o discurso não é falado por uma única voz, mas por muitas vozes, geradoras de muitos textos que se entrecruzam no tempo e no espaço (...) (BLIKSTEIN, 1999, p.46)
Apesar de haver esta relação dialógica e intertextual, a ênfase que daremos a este estudo é a tradução intersemiótica (Literatura/ Cinema), que apesar de reconhecer que se trata de uma adaptação, pois surgiu a partir de uma obra literária, ela respeita esta nova linguagem, a cinematográfica. O termo inicialmente foi estudado por Júlio Plaza, mas usaremos a obra do já citado aqui Pere Gimferrer, que aponta um fator determinante:
(...) el material de una novela son las palabras, el material de una película son las imágenes (...) ¿En qué medida se puede hablar de adaptación y no de creación nueva y autónoma? (GIMFERRER, 2006, p. 54)
E é exatamente isto que Matheson criou como roteirista: uma obra nova. O roteiro do filme tem a mesma base do enredo do romance ? amor através de uma viagem no tempo ? no entanto, as alterações produzem uma inversão na personalidade do protagonista que gera novos sentidos à obra. E, na maioria das vezes, tentar utilizar um enredo de um livro como se fosse um roteiro de cinema não cria um filme coeso, conforme vemos abaixo:
(...) y de ahí el fracaso de una película tan ambiciosa como el Ulisses (1966), de Joseph Strick, que se limitaba a poner en imágenes el argumento de la novela de Joyce, sin caer en cuenta de quel el problema previo era hallar un equivalente visual de su modo de relatar (...) (GIMFERRER, 2006, p. 34)
Talvez, pensando deste modo, Matheson tenha feito as suas alterações nas personagens, pois temos Richard Collier sendo apresentado como um homem feliz e realizado profissionalmente, que só faz uma viagem para outro estado para tentar escrever uma nova peça de teatro. O conflito deste herói é outro, é manter-se feliz, mesmo que seja em uma localização espacial considerada impossível (1912). Já havia uma estabilidade na vida dele, mas ele queria manter o amor que encontrou através do tempo. O Richard criado para o cinema não tem nenhuma doença, é saudável e rodeado de amigos, não está fugindo de uma terrível realidade, a proximidade da morte.
Já Elise McKenna faz parte dos dois pólos: ela pertence tanto a 1912 quanto a 1972. Notamos, aí, uma mudança de data para que a personagem pudesse realmente estar viva, pois ela teria em torno de 80 anos, garantindo, assim, uma credibilidade a esta alteração para o cinema. A última personagem, que seria Robert Collier, não existe no filme, ou seja, a ambiguidade apresentada na narrativa se desfaz no roteiro. Ganhamos, deste modo, só a visão de Richard, de que a viagem no tempo e que o encontro com Elise McKenna realmente aconteceram.
Apesar de não haver um Robert Collier, há a criação da personagem Arthur, um senhor, assistente de hotel, presente na chegada de Richard em 1980 (a viagem no tempo só é feita oito anos após o primeiro encontro entre o nosso protagonista e McKenna) e, também, no momento em que ele retorna a 1912, pois Arthur, naquela época, tinha 5 anos. Matheson, como roteirista, cria duas personagens que estão presentes nas duas localizações espaciais (Elise Mckenna e Arthur), o que garante a veracidade das ações de Richard, uma vez que estas pessoas não são somente conhecidas por ele, mas também por todos os que convivem naquele ambiente.
O relógio de algibeira, também inserido no romance, aparece como elo principal entre o passado e o presente de Richard. A cena que inicia o filme mostra Elise, já idosa, entregando o relógio a Richard, este é o primeiro contato entre ele e o passado, todas as ligações vão sendo feitas a partir deste encontro, pois ele descobre que Elise faleceu no dia em que entregara o presente a ele. Diferente da narrativa, a aparição do relógio faz um caminho inverso, do presente para o passado, retornando para o presente novamente, posto que Richard falece com este na mão. Toda a sua realização amorosa e a memória deste momento estão contidas neste relógio, desde o início do filme, apesar de Richard não se lembrar disto em 1972, seu contato novamente com o relógio que o liga à Elise se dá somente em 1980.
Analisando todas estas modificações, verificamos a necessidade delas, por tratar-se de uma outra linguagem: a cinematográfica. Não há a possibilidade de ser fiel às palavras, o que existe no cinema é a criação de uma nova forma de arte, que pode se basear na Literatura, mas que não trabalha com palavras. Portanto, esta passagem da linguagem simbólica para a icônica requer as suas adaptações, Matheson percebeu a impossibilidade de transpor um livro em imagens, criando um filme tão belo quanto o romance, mas que tem significações/motivações diferentes.


Notas
1 "Experimento uma sublime sensação de aniquilar comunidades inteiras, com um só golpe de vontade" (MATHESON, 1990, p. 23. Tradução Luísa Ibañez)


2 "Por que vim aqui? Tudo agora é ilógico. Duzentos e seis quilômetros para quê?" (MATHESON, 1990, p.23. Tradução Luísa Ibañez)

3 "Cedendo os originais ao editor, fiz uma vasta supressão de trechos inúteis na primeira parte do manuscrito. (...) De qualquer modo sinto-me culpado pelo o que fiz" (MATHESON, 1990, p. 11 . Tradução Luísa Ibañez)

4 Não é de surpreender que Richard desenvolvesse a ilusão de que havia recuado no tempo para encontrar Elise Mckenna. (MATHESON, 1990, p. 282. Tradução Luísa Ibañez)

5 O material de uma novela são as palavras, o material de um filme são as imagens (...) Em que medida se pode falar de adaptação e não de uma criação nova e autônoma? (Tradução nossa)

6 E daí ao fracasso de um filme tão ambicioso como o Ulisses (1966), de Joseph Strick, que se limitava a colocar em imagens o argumento da novela de James Joyce, sem levar em conta que o problema prévio era encontrar um equivalente visual para o modo de narrar de Joyce. (Tradução nossa)

BIBLIOGRAFIA
BARROS, Diana Luz Pessoa de; FIORIN, José Luiz. Dialogismo, polifonia, intertextualidade. São Paulo: Edusp, 1999.
FIORIN, José Luiz. Introdução ao pesamento de Bakhtin. São Paulo: Ática, 2006.
GIMFERRER, Pere. Cine y literature. . Barcelona: Seix Barral, 2005.
MATHESON, Richard. Somewhere in time. Nova Iorque: Tor Book, 2008.
___________. Em algum lugar do passado. São Paulo: Editora Círculo do Livro, 1990.
PLAZA, Julio. Tradução intersemiótica. São Paulo: Perspectiva, 1987.


Autor: Ana Cláudia Ferreira De Queiroz


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