Álvaro de Campos: um poeta solitário.



Álvaro de Campos: um poeta solitário.


Busca-se com esse estudo analisar a ruptura com as formas da tradição poética e a intensidade da negatividade e do sentimento de isolamento em Álvaro de Campos (heterônimo de Fernando Pessoa), o qual utilizou, para atingir esses sentimentos, a agressividade. Será dado enfoque ao poema "Todas as cartas de amor são ridículas", que diz:

Todas as cartas de amor são
Ridículas.
Não seriam cartas de amor se não fossem
Ridículas.

Também escrevi em meu tempo cartas de amor,
Como as outras,
Ridículas.

As cartas de amor, se há amor,
Têm de ser
Ridículas.

Mas, afinal,
Só as criaturas que nunca escreveram
Cartas de amor
É que são
Ridículas.

Quem me dera no tempo em que escrevia
Sem dar por isso
Cartas de amor
Ridículas.

A verdade é que hoje
As minhas memórias
Dessas cartas de amor
É que são
Ridículas.

(Todas as palavras esdrúxulas,
Como sentimentos esdrúxulos,
São naturalmente
Ridículas.)

Percebe-se, primeiramente, no poema acima, a quebra da forma comum à poesia, pois o poema é composto por versos brancos e livres, ou seja, não apresenta rima, nem forma fixa ? os versos têm tamanhos variados que acompanham a emoção do poeta. Campos teve influências do escritor norte-americano Walt Whitman (1819-1892) que não seguia a tradição formal da poesia. Um a vez que o próprio Campos escreveu uma poesia destinada a Whitman, intitulada Saudação a Walt Whitman, cuja uma das passagens é:


Olha pra mim: tu sabes que eu, Álvaro de Campos, engenheiro,
Poeta sensacionista,
Não sou teu discípulo, não sou teu amigo, não sou teu cantor,
Tu sabes que eu sou Tu e estás contente com isso!


é visto, no trecho acima, uma influência clara, a começar pelo titulo, mas que o poeta nega em primeira estância, para depois, acentuar tal influência, alegando ser ele mesmo, Álvaro de Campos, o próprio Whitman.
O maior representante do lirismo em Portugal, Luis Vaz de Camões (1524?-1580), escrevia seus poemas em forma de soneto, compostos por dois quartetos e dois tercetos, e que continham dez sílabas poéticas, isto é, havia uma fixidez rígida em seus poemas, que também podem ser conhecidos como sonetos camonianos. E ele era (e ainda é) o mestre de todos os poetas portugueses. Campos faz uma ruptura quando nega a forma camoniana e reverencia Whitman. O ornônimo de Campos, Fernando Pessoa admite essa negação camoniana quando alega a falta de originalidade dos poetas de sua pátria, dizendo:

Toda a literatura portuguesa clássica dificilmente chega a ser interessante...o conjunto da literatura portuguesa dificilmente e quase nunca é portuguesa. É provençal, italiana, espanhola e francesa, ocasionalmente inglesa... (p.64)

e também em seu livro Páginas intimas, quando afirma: We work away from Camoens, from all the tedious nonsenses of Portuguese tradition, towards the future . Vê-se nessa afirmação sobre Pessoa e seus heterônimos, uma vez que ele usa o pronome pessoal nós, e na anterior o distanciamento que deveria haver entre eles (Fernando Pessoa e seus heterônimos) e a tradição. O próprio objeto de análise desse estudo, "Todas as cartas de amor são ridículas", aborda um tema lírico, mas que foge às regras estruturais do classicismo.
Existe também um movimento que pode ter exercido algum poder sobre a escrita de Campos: o Futurismo, pois esse movimento fez uma ruptura com a tradição poética até então existente, afirmando que na poesia deveria haver a exaltação da agressividade, abominação do passado (tradição) e a destruição da sintaxe, com as palavras dispostas ao acaso (palavras em liberdade), entre outros. Todas essas regras foram seguidas por Campos no poema aqui trabalhado porque não há uma rima sequer em "Todas as cartas de amor são ridículas", os versos estão dispostos de forma irregular e, também, no trecho destinado a Whitman, Campos diz ser sensacionista, que significa ser turbulento, impulsivo, o qual vive intensamente suas sensações. Tal impulso (sensacionismo ligado à percepção) pode ser comprovado no verso final de cada estrofe, nos quais ele termina dizendo a palavra ridículo, associada às cartas e ao próprio sentimento amoroso, isso garante uma agressividade ao poema.
No que diz respeito ao lirismo, "Todas as cartas de amor são ridículas" aborda um tema trabalhado em exaustão nas poesias, o amor, porém, aqui, ele sempre estará vinculado ao adjetivo ridículo. Campos já inicia dizendo que não existe a possibilidade de não ser ridícula uma carta de amor, no lirismo poético isso nunca aconteceria. Como no escritor já citado acima, Camões, o amor nunca poderia ser um sentimento ridículo, tal amor poderia ser vivido ou somente idealizado, e esse sentimento poderia até causar a morte, mas nunca seria associado ao ridículo. Na primeira estrofe, Campos utiliza a palavra todas que garante a intensidade da insignificância das cartas de amor, pois não há exceções, todas cartas são ridículas para ele. O verbo ser, utilizado em todas as estrofes, fortalece a permanência desse sentimento, pois as cartas de amor foram, são e sempre serão ridículas, porque o verbo ser indica a conservação de um estado, porém ele terá um motivo para creditá-las assim, que será visto mais adiante .
Na segunda estrofe, ele permanece afirmando que as cartas de amor são ridículas, entretanto ele se inclui entre as pessoas que as escrevem (tornando-se, assim, subjetivo), pois, assim como as das outras pessoas que as escreveram, as dele também foram ridículas. E é um fato que ocorreu no passado porque o eu-lírico escreveu em seu tempo tais cartas de amor, esse tempo indica provavelmente a mocidade, na qual as cartas de amor são muito comuns.
Eis que na terceira estrofe, surge um questionamento, pois o eu-lírico indaga a existência do amor, pois usa a conjunção condicional se que indica uma possibilidade e não uma certeza, quando diz: se há amor. E se esse tal amor existe é uma regra que ele seja ridículo, pois ele afirma que as cartas têm de ser ridículas, não há como separar esse adjetivo, que qualifica negativamente, do amor, porque amar é ser ridículo, o amor é um sonho que pode ser escrito em cartas de uma forma idealizada, mas que na vida real é de uma dificuldade imensa, que é claro, não consta essa problemática nos escritos amorosos.
A quarta estrofe é iniciada com a conjunção adversativa mas que mostrará a necessidade de amar mesmo sendo um sentimento bobo, e que deixa os amantes confusos e se sentindo ridículos. E, também, a palavra afinal que retifica as cartas de amor, dando, assim, uma essencialidade a elas, pois o amor é necessário à vida; mesmo sendo ridícula a tal dedicação absoluta ao outro, essa dedicação faz parte do ser, por isso há a constatação que todas as criaturas que nunca amaram, que nunca escreveram uma carta de amor é que são ridículas. Campos já se auto-definira como ridículo em um outro poema, Poema em linha reta , quando afirma:

Eu que tantas vezes tenho sido ridículo, absurdo
...
Que tenho sido grotesco, mesquinho, submisso e arrogante
...
Que quando não tenho calado, tenho sido mais ridículo ainda ; (p.401)


Logo é concluído que esta estrofe é antitética relacionada às anteriores, uma vez que nas três primeiras estrofes ele, o eu-lírico, afirma que as cartas de amor são ridículas, porém nesta quarta estrofe ele chega a constatação que ridículo é aquele que nunca amou, que não teve para quem enviar suas cartas expressando seus sentimentos.
A próxima estrofe começa com um desejo do eu-lírico, pois ele usa a expressão quem me dera a qual indica uma vontade dele de voltar ao passado. Aqui, é utilizado o verbo no pretérito imperfeito do indicativo, escrevia, o qual descreve uma situação que ocorreu antes do momento em que se fala e que já não acontece mais, pertence ao passado, ou seja, ele não está mais inserido em uma relação amorosa. No segundo verso, ele afirma que escrevia tais cartas sem se dar conta do que estava fazendo, era inconsciente, para ele, as cartas não eram ridículas, pois havia inocência, ingenuidade que não deixava ele enxergar defeitos no amor. O estudioso da semiótica, Rolland Barthes, descreve exatamente essa situação que o eu do poema está vivendo, pois afirmou: Que é que eu penso do amor? Em suma, não penso nada. Bem que eu gostaria de saber o que é, mas estando do lado de dentro, eu o vejo em existência, não em essência.(p.95). O que ocorre com o eu-lírico é o processo inverso, pois uma vez que ele não está vivenciando uma relação amorosa, ele está do lado de fora, a única coisa que lhe resta é pensar sobre ela, o que faz com que ele veja as cartas de amor como sendo ridículas porque ele não tem para quem escrever.
Ainda na quinta estrofe, pode ser verificada uma transformação do eu-lírico, algum fato o transformou nesse ser que vê o sentimento mais almejado pelos seres humanos de um modo ridículo, por não conseguir tê-lo. É sabido que Álvaro de Campos era um engenheiro naval e que morava em grandes centros urbanos, um homem moderno, que vivia dentro dos mecanismos agitados do século XX. Todos esses fatos o transforma num poeta triste, que também é nomeado por alguns estudiosos de sua obra como o poeta do não, da negatividade. Ele era um homem melancólico, que chegou a dura constatação da limitação e da solidão pessoal. Esse ser melancólico é muito comum no mundo moderno, pois esse passa por mudanças constantemente. Pode-se ver isto, claramente, na afirmação da filósofa Maria Helena Pires Martins, em sua obra Filosofando :

Talvez esse vazio se deva à dificuldade de expressão do amor no mundo contemporâneo. O desenvolvimento dos centros urbanos criou o fenômeno da "multidão solitária": as pessoas estão lado a lado, mas suas relações são de contigüidade... (p.354)

Para o entendimento dessa visão do eu-lírico, é extremamente necessário conhecer essa privação de contato que o mundo moderno gera, e o poeta Álvaro de Campos vivia nesse mundo de isolamentos afetivos. O próprio poeta admitiu essa situação no poema Cruzou comigo, veio ter comigo, dizendo:

Coitado do Álvaro de Campos!
Tão isolado na vida! Tão deprimido nas sensações!
Coitado dele, enfiado na poltrona da melancolia!
...
Coitado do Álvaro de Campos, com quem ninguém se importa! (p.332)

Há um contraste entre a sexta estrofe e as outras, pois é expresso nessa estrofe o tempo atual, indicado pelo advérbio hoje, que traz a fala do eu, sua subjetividade para o tempo presente (modo indicativo), mostrando, assim, sua situação atual, além disso ele também inicia esse verso com uma expressão, a verdade é que a qual dá uma sensação de desabafo, neste momento sim há sinceridade. Tal sinceridade, fica evidente nessa estrofe, mostra que o eu-lírico está desesperançado, pois ele vive remoendo as lembranças dessas cartas de amor, e para ele isso é ridículo, pois aquilo aconteceu num passado distante e não acontecerá novamente. Tanto que para demonstrar essa desilusão, ele utiliza o substantivo memória, o qual não traz o prazer de vivenciar uma relação amorosa. Ele vive em um jogo, porque lembra do passado, quando era um amante inocente, e do hoje, no qual é um homem amargurado, por só vive de memórias, existe, aqui, dois momentos distintos que geram a intensidade do poema.
No arremate do poema, Campos utiliza o parênteses, com essa pontuação os versos adquirem um tom confessional, pois esse sinal indica versos com caráter explicativo que são proferidos num tom mais baixo do que o restante do poema. E nessa confissão, ele utilizará um adjetivo ? esdrúxulo ? que caracterizará os substantivos palavra e sentimento. A palavra esdrúxulo significa extravagância, excentricidade, ou seja, há uma extravagância quando ele denomina as cartas de amor como sendo ridículas, ele a adjetivou assim porque não tem alguém para amar. Nessa última estrofe, não aparecem as cartas de amor, pois tudo o que foi dito antes é um desabafo de um ser solitário. Ridículos, aqui, são as palavras e os sentimentos esdrúxulos que ele usou por todo o poema para falar do amor, pois na penúltima estrofe, ele alega que ainda pensa no passado, que sente saudades desse tempo.
Percebe-se que a beleza do poema de Álvaro de Campo está na lucidez que o eu-lírico tem de que o amor valioso, que ele faz falta, pois, apesar de ele negá-lo em quase todas as estrofes e estar insatisfeito, no final, ele abre seu coração para dizer que estava mentindo quando classificou o amor como sendo uma coisa ridícula, pois compreende que apesar de ser inexplicável, por isso Campos o chamou de ridículo, ele é essencial.
































BIBLIOGRAFIA

CRESPO, Angel. Estudos sobre Fernando Pessoa. Lisboa: Teorema, 1984.
NICOLA, José de. Análise e interpretação de poesia. São Paulo: Scipione, 1995.
PESSOA, Fernando. O guardador de rebanhos e outros poemas. São Paulo: Cultrix, 1997.
________Obra poética. Rio de Janeiro: Nova Aguilar, 1986.
________Páginas intimas e de auto-interpretaçao. Lisboa: Ática, 1963.


Autor: Ana Cláudia Ferreira De Queiroz


Artigos Relacionados


AnÁlise Do Poema “amor Vivo” Do Autor Antero De Quental

Poema Em Linha Curva!

Eis O Poeta

Cartas De Amor

Análise Do "soneto De Fidelidade" (vinícius De Moraes)

Poeta Do Amor!

A Linguagem PoÉtica