DEJEÇÃO



O homem jamais pode produzir pela arte o que a natureza faz. Almejou produzir ouro e nunca pode sequer fazer lama, conquanto esteja cheio dela. Chegou a nos mostrar um pato artificial que andava, bicava, mas foi impossível fazê-lo digerir e formar verdadeiras eliminações.
A arte seria capaz de produzir uma substância que, tendo sido preparada pelas glândulas salivares, em seguida pelo suco gástrico, pelos pela bílis hepática e pelo suco pancreático, tendo fornecido no seu caminho um líquido esbranquiçado que se transformou em sangue, tornando-se finalmente nesse composto fétido e pútrido que sai dos intestinos pela força surpreendente dos músculos?
Com toda certeza, há tanta engenhosidade e potência para assim formar essa dejeção que repugna a vista e para preparar-lhe os condutos que servem a sua saída, quanto para produzir a semente que gerou Alexandre, Virgílio e Newton, e aos olhos com os quais Galileu viu novos céus. A eliminação desses excrementos é tão necessária à vida quanto à nutrição.
Engenho semelhante os prepara, os impele e os evacua, tanto no homem quanto nos animais.
Que não nos cause espanto o fato de que o homem, com toda a sua pompa, nasça entre a matéria fecal e a urina, uma vez que estas partes dele mesmo, mais ou menos elaboradas,mais freqüente ou mais raramente expulsas, mais ou menos pútridas, decidem seu caráter e a maioria das ações de sua vida.
Certa vez em Lovaina, um suíço de fígado azedo, e se calhar ainda muito mais embriagado que os figurantes que se faziam de boi e de burro meteu-se com eles: floresceu grossa pancadaria, quiseram enforcar o suíço, que escapou por pouco.
O mesmo homem travou violenta discussão em Haia, na Holanda, por ali ter ousado defender, com galhardia, o partido de Barneveldt contra um fanático gomarista. Em Amsterdã foi preso por ter dito que os padres são o flagelo da humanidade e a origem de todas as desgraças. "Homessa!" gritava espantado o bom homem," se uma pessoa acredita que as boas ações ajudam â nossa salvação, metem-se na cadeia; se a gente desata a rir de um galo e de um burro, arrisca-se a ficar dependurado na forca!"
Vejam que por mais burlesca que seja esta anedota, demonstra-nos claramente que se pode ser condenado à forca num ou dois pontos de nosso hemisfério e , no entanto, consideram-nos inocentes no resto do mundo.


Autor: Guilherme Campelo


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