Da Responsabilidade Civil por Abandono Afetivo... Sob o prima dos princípios: Dignidadade da Pessoa Humana e Afetividade



As inúmeras mudanças sociais ocorridas nos últimos tempos tem se refletido incidentalmente no direito de família, o que levou a reconhecer e consagrar novos valores, como o afeto, de forma a elevar o entendimento de envolvimento familiar a partir do dever de convivência.

Inicialmente faz-se necessário conceituar o que se entende por convivência familiar. Segundo o Dicionário Aurélio, convivência "é o ato ou efeito de conviver; familiaridade; relações íntimas; trato diário". Registra ainda que conviver "é viver em comum; ter familiaridade, convivência". Desta foma, podemos concluir que o dever de convivência está intimamente ligado às questões familiares, é, pois, o trato diário decorrente dos vínculos familiares.

Trazendo sob a égide jurídica, a nossa Constituição Federal preconiza em seu artigo 227 que é dever do Estado, da família e da sociedade proporcionar a convivência familiar. O Código Civil de 2002, nos artigos 1634, II diz que compete aos pais ter os filhos menores em sua companhia e guarda; o artigo 1632 alerta que a separação judicial, o divórcio e a dissolução da união estável não alteram as relações entre pais e filhos e completa que aos primeiros cabem o direito de ter os segundos em sua companhia.

Já o Estatuto da Criança e do Adolescente em seu artigo 4º repete o texto constitucional, quando assegura também o direito à convivência familiar à criança e ao adolescente, quando determina que é dever da família garantir, prioritariamente "a efetivação dos direitos referentes à dignidade, ao respeito, á liberdade e à convivência familiar e comunitária." Mais ainda, em seu artigo 19, dispõe:

"Toda criança ou adolescente tem direito a ser criado e educado no seio de sua família e, excepcionalmente, em família substituta, assegurada a convivência familiar e comunitária, em ambiente livre da presença de pessoas dependentes de substâncias entorpecentes."


Ressalte-se que é através da convivência familiar que surge a figura da affectio, que passa a ser o elemento concreto da realização da dignidade da pessoa humana. Consagrado nos artigos 226, § 4º e 227 da Constituição Federal, o princípio da afetividade, visa a proteção da entidade familiar, de forma a tutelar não apenas a família formada pelo casamento, mas também todas aquelas que se formam pela comunhão do afeto, independente de vínculo biológico. É a base para a formação de todo e qualquer indivíduo, quer quando prescinde da paternidade biológica, quer quando suplanta o aspecto biológico.

Cite-se a lição de MARIA BERENICE DIAS, segundo a qual:

"A paternidade deriva do estado de filiação, independente de sua origem, se biológica ou afetiva. A idéia de paternidade está fundada muito mais no amor do que submetida a determinismos biológicos. Também em sede de filiação, prestigia-se o princípio da aparência." (DIAS, Maria Berenice. Manual do Direito das Famílias, Ed. Livraria do Advogado, Porto Alegre, 2ª ed., p. 335/334).

Destarte, é o afeto que delineia o caráter, sendo a família estruturada a base da sociedade, a sua falta conduz ao desequilíbrio social, assim é a família indubitavelmente o núcleo de toda sociedade. Eis, que, é de fundamental importância a valorização e a manutenção dos vínculos afetivos entre pais e filhos, não no sentido de obrigar a amar, mas no sentido de fazer-se cumprir os deveres decorrentes do poder familiar.

Não bastasse isso, é preciso considerar também, conforme assinala Silvio Rodrigues, que:
"Dentro da vida familiar o cuidado com a criação e educação da prole se apresenta como a questão mais relevante, porque as crianças de hoje serão os homens de amanhã, e nas gerações futuras é que se assenta a esperança do porvir".

Não resta dúvidas quanto a importância do convívio familiar da criança ou adolescente com os pais, "o conviver que é basicamente afetivo enriquecido com uma convivência mútua alimenta o corpo, mas também cuidar da alma, da moral, do psíquico. Estas são as prerrogativas do poder familiar e principalmente da delegação divina do amparo aos filhos" (SILVA, Cláudia Maria. Descumprimento do dever de convivência familiar e indenização por danos à personalidade do filho. Revista Brasileira de Direito de Família. São Paulo: Abril Cultural, 2000, p. 123)

É partindo desse prisma que se pretende chegar ao princípio da dignidade da pessoa humana. Posto isto, analisemos tal princípio, a palavra dignidade vem do latim dignitas que significa honra, virtude ou consideração. Daí se entender que dignidade é uma qualidade moral inata e é a base do respeito que lhe é devido. Aqui, faz-se necessário tecer algumas considerações a cerca dos valores que compõem à dignidade humana, ou seja, que dizem respeito aos valores íntimos da pessoa, tais como o direito à intimidade, à privacidade, à honra, ao bom nome e outros inerentes à dignidade humana, conforme preceitua o inciso V do artigo 5º da Constituição Federal, qualquer lesão a esses direitos assegura o direito de resposta além da eventual indenização por dano material e moral.

Nesse diapasão, abre-se precedentes diante a possibilidade de indenização decorrente do abandono afetivo, trata-se de uma forma compensatória de se buscar a indenização pela falta de convivência familiar, amparo afetivo, moral ou psicológico. Dispõe nosso ordenamento jurídico que aquele que violar direito ou causar dano a alguém, ainda que exclusivamente moral, comete ato ilícito, conforme disposição do artigo 186 do Novo Código Civil, in verbis:

Art. 186. Aquele que, por ação ou omissão voluntária, negligência ou imprudência, violar direito e causar dano a outrem, ainda que exclusivamente moral, comete ato ilícito.
.
Já o artigo 927 do mesmo diploma legal dispõe que o dano causado a alguém por cometimento de ato Ilícito deve ser reparado. Assevera Sílvio de Salvo Venoza, que:

"Dano moral é o prejuízo que afeta o ânimo psíquico, moral e intelectual da vítima" e completa: "será moral o dano que ocasiona um distúrbio anormal na vida do indivíduo; uma inconveniência de comportamento ou, como definimos, um desconforto comportamental a ser examinada a cada caso"

O professor Álvaro Villaça Azevedo considera que:

"O descaso entre pais e filhos é algo que merece punição, é abandono moral grave, que precisa merecer severa atuação do Poder Judiciário, para que se preserve não o amor ou a obrigação de amar, o que seria impossível, mas a responsabilidade ante o descumprimento do dever de cuidar, que causa o trauma moral da rejeição e da indiferença" (Jornal do Advogado ? OAB/SP ? n° 289, dez/2004, p. 14).

Por seu turno, o novo Código Civil pune com a perda do poder familiar aquele que deixar o filho em abandono (art. 1.638, II), entendido o abandono não apenas como o ato de deixar o filho sem assistência material, mas o descaso intencional pela sua criação, crescimento, desenvolvimento e moralidade (Direito civil ? direito de família, v. 6, p. 368-371).

A primeira decisão a cerca do tema, veio do Rio Grande do Sul, condenado o pai ao pagamento de indenização por danos morais, no valor de duzentos salários mínimos, em sentença datada de agosto de 2003, transitada em julgado, atualmente em fase executória. Destaque-se que na mesma oportunidade manifestou-se contrária a concessão da indenização o Ministério Público, conforme parecer da Promotora De Carli dos Santos:

"não cabe ao Judiciário condenar alguém pelo desamor, senão, os foros e tribunais estariam abarrotados de processos se, ao término de qualquer relacionamento amoroso ou mesmo se, diante de um amor platônico, a pessoa que se sentisse abalada psicologicamente e moralmente pelo desamor da outra, viesse a pleitear ação com o intuito de compensar-se, monetariamente, porque o seu parceiro ou seu amor platônico não a correspondesse."

No mesmo sentido entendeu o STJ, no REsp 757.411-MG, Rel. Min. Fernando Gonçalves, julgado em 29/11/2005, publicando sua decisão que, a seguir, se resume:

"Escapa ao arbítrio do Judiciário obrigar alguém a amar ou a manter um relacionamento afetivo, que nenhuma finalidade positiva seria alcançada com a indenização pleiteada."

Em recente julgado, o juiz da 31ª Vara Cível de São Paulo, Dr. Luis Fernando Cirillo, condenou um pai, por danos morais, a indenizar sua filha, no importe de 190 salários mínimos, aproximadamente, reconhecendo que a "paternidade não gera apenas deveres de assistência material, e que além da guarda, portanto independentemente dela, existe um dever, a cargo do pai, de ter o filho em sua companhia". Apesar de considerar não ser razoável que um filho "pleiteie em Juízo indenização do dano moral porque não teria recebido afeto de seu pai", o ilustre magistrado sentenciante, ponderou de outro norte que:

"não se pode rejeitar a possibilidade de pagamento de indenização do dano decorrente da falta de afeto simplesmente pela consideração de que o verdadeiro afeto não tem preço, porque também não tem sentido sustentar que a vida de um ente querido, a honra e a imagem e a dignidade de um ser humano tenham preço, e nem por isso se nega o direito à obtenção de um benefício econômico em contraposição à ofensa praticada contra esses bens." (31ª Vara Cível Central de São Paulo ? Processo n° 000.01.036747-0 ?j.)

Realmente, não há de se falar em obrigação de sentir amor, não se trata de obrigação de fazer, ou sentir, mas de respeito aos princípios, por hora, mencionados. Também há de concordar que é bastante arbitrário e abusivo esperar que o pai seja punido monetariamente por não conviver com o filho.

Por fim, adverte a professora Teresa Ancona Lopez:

"É preciso cuidado para não transformar as relações familiares em relações argentarias, de tal sorte que dependendo de cada caso concreto, o juiz deverá ser sábio na aplicação do direito em face de postulações a esse título. Diz mais: "é preciso avaliar como a pessoa elaborou a indiferença paterna. Acredito que só quando ficar constatado em perícia judicial que o projeto de vida daquele filho foi truncado pelo abandono, configurando o dano psicológico, é que cabe indenização." (Jornal do Advogado ? OAB/SP ? n° 289, dez/2004, p. 14).
Autor: Hiasminni Albuquerque


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