DELINQUENCIA JUVENIL. NOTAS HISTÓRICAS E CRIMINOLÓGICAS DE UM (DES)CASO SOCIAL DO ESTADO BRASILEIRO



DELINQUENCIA JUVENIL. NOTAS HISTÓRICAS E CRIMINOLÓGICAS DE UM (DES)CASO SOCIAL DO ESTADO BRASILEIRO








GEORGE LAURINDO DE ANDRADE
















"A rua é o vazadouro de todas as impurezas e a feira de todas as indecências (Nelson Hungria)."

"Escolas cheias, cadeias vazias (Rui Barbosa)."

"As crianças abandonadas e errantes que mendigam, roubam e se prostituem são como esterco de onde germinará o crime (Zola)."

SUMÁRIO

1. INTRODUÇÃO..................................................................................01
2. NOTAS HISTÓRICAS DO (DES)CASO.........................................02
3. O REFERENCIAL DOUTRINÁRIO E NORMATIVO.................09
4. O QUE É, ONDE E COMO ATUA O ESTADO?............................18
5. À GUISA DE CONCLUSÃO.............................................................23
ANEXOS
BIBLIOGRAFIA


























1. INTRODUÇÃO

As citações foram inseridas no artigo de forma proposital. Um dos objetivos primordiais do modesto trabalho a ser delineado, constitui-se nos comentários doutrinários recolhidos dos mais diversos autores, alguns optando por soluções para a questão do menor delinqüente unicamente pela leitura do método positivista, e de sua vertente jurídica normativista. Outros porém, apresentam explicações diversas, situando o problema, suas causas, e conseqüentes desdobramentos, pela ótica do estruturalismo. Há ainda autores que apresentam o fato sob a ótica da criticidade e da dialética. São diversos por conseguinte os matizes e nuances, e instrumentais teórico-metodológicos à disposição do observador do tema.
É de conhecimento da sociedade brasileira em geral, e por específico do meio jurídico, que o Brasil contempla legislação posta em vigor, com característica específica de espécie normativa, adequada para tutelar os intereses de crianças e adolescentes considerada das mais completas e modernas em vigor no mundo ocidental.
Inobstante a presença no ordenamento jurídico pátrio de lei tão avançada, mormente, para o mundo subdesenvolvido, ao mesmo tempo, subsistem e elevam-se cada vez mais as estatísticas e notícias narrando a prática de atos de violência contra e por menores.
Compreender e refletir a cerca das razões primordiais, que, enfeixam quadro tão complexo, e, constrangedor de mais uma das "trajédias sociais" brasileiras, é um dos objetivos deste despretencioso artigo.
Por outro lado, a despeito do que foi referido acima, a existência de norma não assegura a efetividade e garantia da proteção ao menor, e delinquente infrator. Ao revés, o que a realidade posta tem demonstrado, é exatamente, o paradoxo da norma e políticas públicas, em contraponto com o quadro de grave crise de violência contra e praticada por adolescentes infratores.
Este trabalho utiliza-se em sua quase totalidade de recolha a fontes bibliográficas das mais variadas e enriquecedoras para o debate da problemática do menor, mormente do menor em situação de risco, convergente para a delinquência. A recolha biblográfica a ser intentada, evindencia a importância da transversalidade do tema, bem como, da interdisciplinaridade convergente.
A sociedade brasileira ante a perplexa condição de miserabilidade e desgraça crescente de parcelas da juventude, nos mais diversos pontos do nosso território, questiona-se, primordialmente, através de diversas instituições, quer sejam públicas ou privadas; quer sejam postas na ordem do dia pelo debate midiático, ou simplesmente pela opinião dos mais diversos segmentosrepresentativos da sociedade brasileira.
E a problemática não é nova. Não se trata de questão que brota da contemporaneidade, ou mesmo, tendo por nascedouro a chamada crise da modernidade. As raízes da crescente delinquência juvenil, como "(des)caso" presente na vida social, tem como coadjuvantes não somente o Estado, mas a própria tecitura social, a qual, omissa e procratinadora, pouco ou nada fez para equacionar este gravame da segurança no país.
A "sensação " de que o menor delinquênte, é ao mesmo tempo um perigo, contrasta, co a efetiva e real condição de vítima, por excelência, da exclusão e da injustiça social atinente a conjuntura do Sistema político-econômico, e de sua interrelação infra e superestrutural.
O Direito posto, não consegue, por assim dizer, dar vazão e equacionamento a problemática tão complexa e relevante como esta, que será doravante superficialmente abordada, mesmo adotando doutrina tão moderna, qual seja, a da proteção integral da criança e doadolescente. É dedutível refletir, e, inferir acerca das limitações jurídicas e de suas ferramentas, mesmo que estabeleçam garantias,como as dispostas não somente no Estatuto da Criança e do Adolescente, mas sobretudo na Carta Magna, ou como foi outrora cognominada "Constituição Cidadâ".
Este paradoxo que consigna instrumentos jurídicos e políticos de proteção integral à criança e ao adolescente, passa a compor qual, antítese, aos números e inúmeros fatos e atos infracionais, produizidos e reproduzidos todos os dias no interior das sociedades brasileiras a evidenciar, como que, em síntese, um quadro de grave crise de segurança pública e institucional, a deslocar o Estado, de seu posto de ente e agente real de justiça social.
O presente artigo, além de buscar apoio nas fontes bibliográficas, sobretudo nas fontes históricas, em dados estatísticos e sua análise, objetiva de modo interdisciplinar abordar e refletir a questão da violência juvenil no Brasil, como um fato social grave, relevante e de repercussão jurídica de nossos dias.
Doravante sigamos na exposição de algumas notas históricas, com o fito de analisar a evolução da questão levantada.

2. NOTAS HISTÓRICAS DO (DES)CASO

Antes de tecer maiores comentários sobre uma "pretensa", mas com certeza, despretenciosa coletânia de anotações de natureza histórica, convêm citar o texto que segue (LEMOS BRITO, p. 21 e ss, apud MACHADO, 2003), trata o mesmo de referencial doutrinário e histórico, com vistas a iniciar uma reflexão deveras pertinente e bastante atual, inobstante ter sido referida no século XIX:
"Quem estudar as estatísticas do crime, nos últimos tempos, há de parar perplexo, eentristecido e assombrado, ante a evidência desta verdade: o coeficiente dos crimes praticados por menores duplicou no espaço de alguns anos! O douto e paciente perscrutador das estatísticas alemãs em matéria de criminalidade, PROFESSOR ASCHAFFENBURG, não pôde conter o seu espanto diante das conclusões a que chegam todos os investigadores. Na Alemanha, a proporção de menores condenados é, sobre a totalidade dos delinquentes sujeitos à ação do Código Penal, entristecedora. Só no espaço de tempo que vai de 1882 a 1899, as condenações de menores por ofensas corporais tiveram um acréscimo de 74%, ao passo que a proporção para os adultos reponsáveis por iguais delitos foi apenas de 51%. [...] Bastam, porém, os quadros que nos oferece ALFREDO NICEFORO, Professor da Universidade de Lousanne, para que fiquemos enleados, e pasmos, tal o aumento das infrações penais, ou das contravenções praticadas por menores em vários países da Europa. Assim, para a Itália: (Menores por cem julgados) 1890-22,96; 1891-23,70; 1892-22,95; 1893-22,46; 1894-23,52; 1895-25,28. Na França (Menores por cem julgados) 1826/50-13,20; 1880-17,99; 1890-17,46; 1891-17,78; 1892-18,21; 1893-18,42. Numa síntese mais apurada, a delinquência dos menores aumentou, na Áustria, 1882 a 1892 - 12%; na Holanda, idem, 37%; na Hungria, idem, 24%; na Dinamarca, idem, 25%; na Suécia, idem, 48%!! (3- no ano de 1916, por exemplo, dos 1500 menores presos pela polícia da capital de São Paulo, 190 foram presos por gatunagem, 182 por embriaguez, 199 por vagabundagem, 458 por desordem, e 486 por outros motivos de menor gravidade. CÂNDIDO MOTA, Os menores delinquentes em São Paulo, 1909, p. 31. Na Bahia, em 1912, por exemplo, sobre os 166 identificados ciminalmente, houve 45 menores até 20 anos, ou seja, 28 por cento. Esta porcentagem subirá muito se verificarmos as simples prisões e as condenações. Veja-se o Relatório do Chefe de Polícia de 1912). Conclui-se que o problema da criminalidade dos menores tomou aspecto gravíssimo, a provocar o zelo dos criminalistas e dos homens de Estado( sublinhado meu)."
Ao lado das citações assinaladas pelos eminetes Nelson Hungria e Rui Barbosa, acima referenciados e da citação de Lemos de Brito, podemos perceber que a questão da criminalidade juvenil, como espécie do quadro penal pátrio, naõ se constitui como fato novo na vida social brasileira. Torna-se imprescindível volver ao passado para entender como pobreza, exclusão social, miséria e violência, tornaram-se comuns à vida das crianças e adolescentes ao longo do tempo.
Com base nos estudos fornecidos pela professora Martha de Toledo Machado, em percuciente trabalho inttiutlado: A Proteção Constitucional de Crianças e Adolescentes e os Direitos Humanos (MACHADO, 2003, P. 29), é necessária a distinção entre os conceitos de infância desvalida e adolescência criminosa, pois com o passar do tempo enormes abusos aos direitos humanos fundamentais básicos para os dois grupos, acabaram por serem praticados. Tal confusão, já era estabelecida na Europa desde o século XVIII.
Em geral os Estados europeus primordialmente, tratavam os menores na condição de infância desviante, ou infância carente/delinquente, utilizando-se inclusive do Direito material e de sua aplicação através de instituições determinadas para aplicação de políticas repressivas.
Somente com o descortinar do século XVIII, é que a criança estabelecida pela categoria de infância, emerge do"sono letárgico" da pexa de criança desviada ou delinquente, passando a reber maior atençao da sociedade européia em geral.¹
No período medieval crianças e adultos misturavam-se, sem que houvese uma separação nítida e perceptivel.
No medievo, mormente na Europa centro ocidental, a criança não era entendida como categoria em relação aos adultos. Com o desenvolvimento da vida urbana, e a transformação da instituição educacional, a escola, como local de socialização e educação, os infantes passam a sere percebidos de forma diferenciada em relação aos adultos.
Foi sem dúvida alguma, o fator urbanização, que, agudizou a problemática das condições de sobrevivência das crianças. A vida nas cidades ao longo do período da Revolução Industrial, antecedida da exclusão dos pequenos ex-proprietários de terras, acabou por enreda-los, em grandes "bolsões" de mão-de-obra barata para a indústria, a promover grandes convulsões sociais no mundo capitalista.
Tais mudanças na ordem econômica e política, inseriram as crianças no mundo do trabalho a ponto de gerar mais miserabilidade social, inclusive por afastar da escola, o infante em formação. Esses excluídos e marginalizados seres humanos, por séculos, viveram apartados das minimas condições de cidadania; empurradas para o trabalho cada vez mais em idade precoce; padecendo de fome, violências insuportáveis; submetidas a elevadas taxas de mortalidade, em suma: "pequenos seres moribundos e miseráveis.²
Deste quadro pérfido e sub-humano, é dedutível inferir, com logicidade, que a criminalidade juvenil, em grande parcela sobremaneira acelerou-se, atingindo patamares nunca antes percebidos. Oriundos dos extratos sociais mais excluídos, não somente tornou-se perceptível como problema social de criminalidade crescente, passando a "aturdir e perturbar", o já convulsionado tecido social europeu, sendo objeto de nota histórica desde o século XVIII.³
É importante afirmar que em nosso país, como de resto em quase todo o mundo ocidental, para não fugir da regra acima descrita, a confusão conceitual, anteriormente levantada (MACHADO, P. 31), criança carente/criança delinqüente se fez e faz presente, aprofundado pela conjuntura do suposto crescimento da criminalidade juvenil, consubstanciou-se num pseudo e falacioso argumento histórico e ideológico, que no dizer da mestra acima aduz:
"E foi nesse quadro de expressiva preocupação com o suposto aumento da criminalidade juvenil que se construiu a perversa confusão conceitual criança carente/criança delinqüente, que no Brasil de hoje, como diversas outras partes do mundo ainda continua a produzir seus efeitos. É que historicamente, e num processo de cunho estritamente ideológico, construiu-se, friso, uma identificação entre a infância socialmente desvalida e a infância delinqüente.
Tal mecanismo histórico é estritamente ideológico porque nasceu e se desenvolveu sempre e em todas as comunidades absolutamente desvinculadas de toda realidade fática. Isso porque, se é fato que boa parte dos jovens autores de condutas criminosas era oriunda dos segmentos menos favorecidos da população, também é fato, que a imensa maioria das crianças desvalidas nunca praticou nenhum ato definido como crime, seja no Brasil do século XX, seja na Europa ou nos Estados Unidos dos séculos XVIII e XIX.
Pese repito, tal circunstância fática, por uma perversa inversão das premissas, toda a infância desvalida passou a ser vista como delinqüente.
E assim historicamente se construiu a categoria criança não-escola, criança desviante, criança em situação irregular, enfim, carente/delinqüente, que passa a receber um mesmo tratamento - e a se distinguir de nossos filhos, que sempre foram vistos simplesmente como crianças e jovens -, compondo uma nova categoria, os menores.
É deveras esclarecedora a crítica reflexiva desenvolvida pela autora citada. Além de conjugar historicidade e atualidade para questão do menor delinqüente no Brasil, arremata pontuando a questão da visão distorcida da realidade, portanto, discurso vazado ideologicamente, com o qual, tivemos a pretensão de citar oportunamente, em caráter de abertura do artigo as palavras do eminente e culto Rui Barbosa, obviamente, um observador dos problemas sociais de seu tempo, muito embora para os mesmos também entendesse, por oportuno serem tais problemas (sociais, do trabalho, da delinqüência juvenil, etc.) como até mesmo um caso de polícia.
Inobstante o douto Rui Barbosa, também asseverasse para a educação, a ferramenta de solução do problema da criminalidade, vinculado às idéias liberais, enfatiza-se o discurso das problemáticas na linguagem burguesa como "Questão Social", ao que o paradigma marxista, configura como "luta de classes", ao que ousamos nos vincular, partindo do pressuposto da influência da estrutura social, e de sua correlação com as superestruturas da sociedade capitalista.
É nesse "emaranhado" de complexidade das relações sociais, que, encontra-se a questão confusa e ideologizada, do menor submetido a todos os tipos de violência, bem como, excluído da proteção e dos direitos inerentes à sua condição como pessoa humana, muito embora o discurso oficial, e político jurídico, até apresente doutrina e norma protetiva para albergar sobretudo o menor desvalido, e o delinqüente.
Avançando na senda da evolução histórica do tema abordado, embora sob o enfoque filosófico e sociológico, a categoria infância carente e infância delinqüente, já interessava como objeto de discussão antes do século XIX.
É importante não perder de vista a contribuição de dois grandes historiadores para melhor concepção dos dramas vividos pela criança submetida às relações sociais omissivas e degradantes ao longo da história. Dada a impossibilidade neste arrazoado de aprofundar a narrativa cronológica da problemática do menor, escolho duas citações de Philippe Ariès, e de Leo Huberman, as quais por oportuno adequam-se ao entorno conjuntural da criança, mormente da criança de rua em contraposição à criança "educada".
A primeira citação tendo por recolha a obra História Social da Criança e da família, do historiador francês, Philippe Ariès, discorre sobre a rudeza da infância escolar, e está centrada nos séculos XVI e XVII (ARIÈS, P. 121, 2006):
"(...) Nos séculos XVI e XVII, os contemporâneos situavam os escolares no mesmo mundo picaresco dos soldados, criados, e, de um modo geral, dos mendigos. Um cônego de Dijon, falando sobre o juventude dourada da cidade (à qual pertencia o filho do presidente da Corte Suprema), e de sua partida em 1592 para 'ir para as universidades das Leis em Toulouse', chamava-a literalmente de escória. (...) Uma nova noção moral deveria distinguir a criança, ao menos a criança escolar, e separá-la: a noção de criança bem educada. Essa noção praticamente não existia no século XVI, e formou-se no século XVII. Sabemos que se originou das visões reformadoras de uma elite de pensadores e moralistas que ocupavam funções eclesiásticas ou governamentais. A criança bem educada seria preservada das rudezas e da imoralidade, que se tornariam traços específicos das camadas populares e dos moleques. (...) Esses hábitos no princípio foram hábitos infantis, os hábitos das crianças bem educadas, antes de se tornarem os hábitos da elite do século XIX, e, pouco a pouco, do homem moderno, qualquer que seja sua condição social. A antiga turbulência medieval foi abandonada primeiro pelas crianças, e finalmente pelas classes populares: hoje, ela é a marca dos moleques, dos desordeiros, últimos herdeiros dos antigos vagabundos, dos mendigos, dos 'for-da-lei', dos escolares do século XVI e inicio do século XVII."
A segunda citação retirada da obra História da Riqueza do Homem, escrita por Leo Huberman (HUBERMAN, 1982), insere a criança, seus sofrimentos ante as relações do mundo do trabalho no século XIX, e esclarece a distorcida visão criança desvalida, criança delinqüente:
"Os capitalistas achavam que podiam fazer como bem entendessem com as coisas que lhes pertenciam. Não distinguiam entre suas 'mãos' e as máquinas. Não era bem assim - como as máquinas representavam um investimento, e os homens não, preocupavam-se mais com o bem-estar das primeiras.
Pagavam os menores salários possíveis. Buscavam o máximo de força de trabalho pelo mínimo necessário para pagá-las. Como mulheres e crianças podiam cuidar das máquinas e receber menos que homens, deram-lhes trabalho, enquanto o homem ficava em casa, frequentemente sem ocupação. A princípio os donos das fábricas compravam o trabalho das crianças pobres, nos orfanatos; mais tarde, como os salários do pai operário e da mãe operária não eram suficientes para manter a família, também as crianças que tinham em casa foram obrigadas a trabalhar nas fábricas e nas minas. Os horrores do industrialismo se revelam melhor pelos registros do trabalho infantil naquela época.
Perante uma comissão do Parlamento em 1816, o Sr. John Moss, antigo capataz de aprendizes numa fábrica de tecidos de algodão, prestou o seguinte depoimento sobre as crianças obrigadas ao trabalho fabril:
'Eram aprendizes órfãos? - Todos aprendizes órfãos.
'E com que idade eram admitidos? - Os que, vinham de Londres tinham entre 7 e 11 anos. Os que vinham de Liverpool, tinham 8 a 15 anos.
'Até que idade eram aprendizes? - Até 21 anos.
'Qual o horário de trabalho? - De 5 da manhã até 8 da noite.
'Quinze horas diárias era um horário normal? - Sim.
'Quando as fábricas paravam para reparos ou falta de algodão, tinham as crianças, posteriormente, de trabalhar mais para recuperar o tempo parado? - Sim.
'As crianças ficavam de pé ou sentadas para trabalhar? - De pé.
'Durante todo o tempo? - Sim.
'Havia cadeiras na fábrica? - Não. Encontrei com freqüência crianças pelo chão, muito depois da hora em que deveriam estar dormindo.
'Havia acidentes nas máquinas com as crianças? - Muito frequentemente."
Num quadro desolador e desesperador acima narrado, as condições sociais propícias para ampliação da miséria e da delinqüência estavam sobremaneira assentadas. Não é de se esperar que tais condições de miserabilidade impostas pela ordem econômica não conspirassem decisivamente como um dos fatores primordiais para aprofundar os dilemas dos quais, a criminalidade juvenil estaria associada.
Falar em dignidade da pessoa humana; direitos humanos fundamentais; proteção jurídica de crianças e adolescentes em tal contexto social, é pensar, com o devido respeito, "no sexo dos anjos."
Para o viés jurídico, é somente por ocasião da entrada em vigor no Brasil, do chamado Código Criminal, sob forte influência do Direito Romano (ANIBAL BRUNO, apud MACHADO, 2003), no século XIX, sob o ângulo do direito penal encontrava-se disposta a inimputabilidade prevista para crianças restrita aos 9 anos de idade, bem como na questão das penas impostas aos adultos. A criança interessava especificamente também ao enfoque disciplinado pelo direito de família, nas questões sobre pátrio poder, filiação, dentre outras.
Narra MACHADO( P. 34, 2003) que no Direito dos Estados Unidos, encontra-se o nascedouro da legislação de proteção ao menor, sendo o estado de Ilinois, no ano de 1899, o primeiro a estabelecer um Tribunal de Menores. A partir de então, na Europa, mais precisamente na Inglaterra (1905), e posteriormente Alemanha (1908), Portugal (1911), França (1912), aportando em terras latino americanas em 1921, na Argentina, e no Brasil no ano de 1923, por ocasião do Decreto Federal de nº 16.273, com a instituição do primeiro tribunal de menores, no Rio de Janeiro, então Distrito Federal.
É importante relembrar e por oportuno ressaltar que estes tribunais e juízos de menores, foram instituídos atrelados às concepções ideologizadas acima mencionadas, sob o manto da alegação de tutelar a defesa e proteção das crianças desassistidas por omissão da sociedade e do Estado, sob a égide do discurso das exigências da defesa da sociedade (MENDEZ, apud MACHADO, P. 35, 2003). È segundo o abalizado autor, este o momento do nascedouro do sistema de controle socio-penal da infância marginalizada e excluída. A criança era na realidade a grande vítima de profundas e insistentes gravames aos seus direitos fundamentais, obviamente, sequer estabelecidos.
Nas palavras de MENDEZ (apud MACHADO, 2003), é oportuno citar:
"(...) com a criação dos Tribunais dos Menores e, logo em seguida, do corpo legal e doutrinário do direito do menor, criou-se um sistema de controle sociopenal da infância marginalizada socialmente - e portanto vítima de fundas violações em seus direitos humanos fundamentais (Direito à vida, à saúde, à educação, ao trabalho protegido) -, na medida em que tal instância visava e permitia a aplicação de medidas de natureza penal (qual seja, a privação da liberdade, pela segregação em casas de internação)a 'comportamentos não-criminais de menores.' Isso somente se revelou possível em razão da identificação jurídica e ideológica entre infância carente e infância delinqüente, nos moldes já referidos (grifos meus)."
Os conhecidos Juizados de Menores espalhados pela Europa e América Latina, só começaram a proliferar-se, empós a realização do lº Congresso Internacional de Menores, realizado na cidade de Paris, França, no ano de 1911, do qual, surgiram as linhas mestras do novel direito. As linhas mestras do evento internacional, na lição de MENDEZ (apud MACHADO), prenunciavam a construção do ordenamento jurídico para os menores e por oportuno as reflexões serão doravante acrescidas:
"a) Deve existir uma jurisdição especial de menores? Sobre que princípios e diretrizes deverão se apoiar tais tribunais para obter um máximo de eficácia na luta contra a criminalidade juvenil?"
"b) Qual deve ser a função das instituições de caridade ante os tribunais e o Estado?"
"c) O problema da liberdade vigiada ou probatória. Funções dos tribunais depois da sentença (grifo meu)."
Ora é perceptível que a despeito do avanço no tratamento processual penal da criança, ou menor delinqüente, em afastá-lo das prisões com os criminosos adultos, o que no dizer de muitos doutrinadores é prenúncio do sistema jurídico protetivo ao menor, mesmo assim, a confusão conceitual e os objetivos punitivos apontavam para o combate à criminalidade do menor, o que não deixa de ser uma leitura distorcida da realidade conjuntural da criança e do adolescente.
O advento dos Juizados do Menor, e por que não dizer do Direito do Menor, coincidia portanto com a premissa de combate ou repressão à criminalidade juvenil,e o Direito de base nitidamente positivista, assim o concebia, tomando por base a leitura sociológica da criminologia também positivista, a qual, enxergava a sociedade, sob o lema da "ordem", e da sociedade, em analogia a um grande organismo, no qual, "os sintomas e as doenças", são patologias, que necessitam de tratamento, para restabelecer a sanidade e, portanto, ser restaurada a ordem em oposição ao caos.
Tal preocupação eminentemente repressiva desta etapa da evolução do Direito do Menor, nada mais converge para a postura do Direito coercitivo e autoritário, prestando-se nitidamente para salvaguarda dos interesses de setores sociais privilegiados, relegando a grande maioria da população dos interesses reais, assentados na efetivação das igualdades, e tendo no Estado o condutor dessa opressão jurídico-formal. A doutrina da proteção integral só seria positivada em outros moldes ou concepções de Direito e de Estado, o que no caso brasileiro, surgiria em etapa reservada para o último quartel do século XX.

O REFERNCIAL DOUTRINÁRIO E NORMATIVO

No século XX, mais precisamente sob a conjuntura do mundo bipolar, as nações latino-americanas, e por oportuno o Brasil, atravessaram períodos de intensa agitação política e instabilidade econômica. Altos índices inflacionários corroeram os salários dos trabalhadores, aliados às chamadas políticas econômicas ortodoxas, e a péssima distribuição de renda, solaparam e desestruturaram milhões de famílias, colocando-as na marginalidade, a viverem abaixo da linha da pobreza. Por conseguinte, a violência e a criminalidade, embora reprimidas, cresceram de maneira diversificada, inclusive a delinqüência juvenil. Que o digam as numerosas rebeliões nas unidades das chamadas FEBEMS.
Em meados dos anos oitenta, do século passado, os ventos da redemocratização varreram os resquícios da ditadura militar, sepultando os chamados "anos de chumbo". Com a volta da democracia, em 5 de outubro de 1988, foi promulgada a nova Constituição da República.
A nova Carta Magna recepcionou em seu texto, os direitos fundamentais, bem como suas garantias. No âmbito do Direito Internacional, a proteção dos chamados direitos infanto-juvenis, adquiriu grande força, com os chamados movimentos internacionais de proteção à infância, notadamente com a Convenção Internacional sobre os Direitos da Criança, celebrada pela ONU, em 1989. O Brasil adotou, in totum, o texto da referida Convenção, por ocasião do Decreto nº 99.710 de 1990.
A entrada em vigor da Lei nº 8.069/1990, estabeleceu verdadeira mudança de ordem jurídica no Direito da Infância e da Adolescência, com nova legislação infraconstitucional, positivando o chamado Estatuto da Criança e do Adolescente - ECA.
O ECA adotou a chamada doutrina da proteção integral dos direitos da criança e do adolescente. Tal doutrina tem por escopo, consignar um conjunto de mecanismos e instrumentos jurídicos de conotação interna e internacional, com vistas à garantia e proteção dos direitos dos infantes.
A marca essencial desta doutrina encontra-se na perspectiva de ser o Direito de crianças e adolescentes, um direito universal. Não se faz mais acepção à categoria outrora mencionada, de menor, que possa ser classificado em menor carente, abandonado, ou delinqüente e infrator; a amplitude da doutrina passa a dirigir-se à totalidade de crianças e adolescentes (LIBERATI, P.14, 2007).
A legislação infraconstitucional aplicada ao caso concreto, tem por fundamento e consonância o texto da Constituição Federal de 1988, mais precisamente em seu artigo 227, a qual, como asseveramos anteriormente, procurou romper totalmente, com a ideologia e legado normativo do Direito do Menor.
A disciplina constitucional aplicada ao tema do menor ampara e distribui atribuições e obrigações às instituições sociais, contudo, apresenta-se nitidamente em contraponto de "discurso ideologicamente vazado" e contraditório. É o legislador constitucional no artigo 226, erigindo a família ao patamar de base da sociedade e cominando ao Estado sua proteção, e dialeticamente no artigo 227 e 230, "empurrando" a família como instituição encabeçadora das cruciais responsabilidades, in casu, ao menor e seus dilemas. Por oportuno, matéria tão relevante, jamais deveria encarregar primordialmente a família, de tamanha carga e solução (Delinqüência Juvenil), ao revés, para toda a sociedade organizada, e especialmente o Estado:
"Constituição Federal de 1988:
Art. 226. A família, base da sociedade, tem especial proteção do Estado.
parágrafo 8º O Estado assegurará assistência à família na pessoa de cada um dos que a integram, criando mecanismos para coibir a violência no âmbito de suas relações.
Art. 227. É dever da família, da sociedade e do Estado assegurar à criança e ao adolescente, com absoluta prioridade, o direito à vida, à saúde, à alimentação, à educação, ao lazer, à profissionalização, à cultura, à dignidade, ao respeito, à liberdade e à convivência familiar e comunitária, além de colocá-los a salvo de toda forma de negligência, discriminação, exploração, violência, crueldade e opressão.
Art. 229. Os pais têm o dever de assistir, criar e educar os filhos menores, e os filhos maiores têm o dever de ajudar e amparar os pais na velhice, carência ou enfermidade.
Atecnia legislativa jurídico-social? Incongruência normativa, ou descompasso ante a realidade jurídica posta, e o exercício pleno das funções estatais? É com base em tais preceitos constitucionais, questionáveis jusfilosoficamente argumentando, foi construída a normativa jurídica de proteção à criança e ao adolescente no Brasil. O Estatuto da criança e do Adolescente (ECA), adotou o primado da doutrina da proteção integral ao infante, mormente, ao menor que tecnicamente comete os chamados Atos Infracionais.
Com base nesta assertiva que, LIBERATI, anteriormente citado assim manifesta-se oportunamente:
"As leis brasileiras anteriores à Constituição de 1988 emprestavam ao menor uma assistência jurídica que não passava de verdadeiras sanções, ou seja, penas, disfarçadas em medidas de proteção; não relacionavam nenhum direito, a não ser aquele sobre a assistência religiosa; não traziam nenhuma medida de apoio à família; cuidavam da situação irregular da criança e do jovem, que, na verdade, eram seres privados de seus direitos. Na verdade, em situação irregular estão a família, que não tem estrutura e que abandona a criança; o pai, que descumpre os deveres do pátrio poder (hoje a terminologia empregada no direito brasileiro é poder familiar); o Estado, que não cumpre as suas políticas sociais básicas, nunca a criança ou o jovem (grifos, itálico e sublinhado meu)."
A citação de LIBERATI, é deveras oportuna, esclarecedora, estarrecedora e reflexiva ante a confusão conceitual, e a omissão das políticas públicas sociais daqueles que sempre foram privilegiados na sociedade e do Estado, inclusive como instrumento a serviço de interesses escusos das classes mais abastadas do Brasil.
A doutrina da proteção integral á criança e ao adolescente, é bem verdade, um bom programa, sobretudo de "boas intenções", mas, como diz o brocado popular: "de boas intenções, o inferno está cheio"! O que fazer, se o Direito, por si só, não concentra o primado da "solução em passe de mágica" da problemática do menor? E, que dizer do Estado, primordialmente encarregado através da execução de suas políticas públicas, quando simplesmente "cruza os braços", e se omite em cumprir suas obrigações constitucionalmente postas?
Esses e outros questionamentos passam a integrar aspectos importantíssimos da "ordem do dia" nas sociedade contemporâneas. A temática do menor, além de atualíssima, é ao mesmo tempo, interdisciplinar e transversal. Quando a sociedade civil, através de seus canais e aparelhos ideológicos de reprodução, como a mídia, passam a noticiar, formar e influenciar padrões de comportamento social, então, tornam-se perceptíveis e graves as questões da violência, insegurança, inclusive jurídica, quão real, cruel e desafiadora é a realidade da criança e do adolescente no Brasil.
Os artigos 1º e 4º do ECA assim estabelecem como finalidade primaz da norma:
Art. 1º Esta Lei dispõe sobre a proteção integral à criança e ao adolescente;
Art. 4º É dever da família, da comunidade, da sociedade em geral e do Poder Público assegurar, com absoluta prioridade, a efetivação dos direitos referentes à vida, à saúde, à alimentação, à educação, ao esporte, ao lazer, à profissionalização, à cultura, à dignidade, ao respeito, à liberdade e a convivência familiar e comunitária.
Parágrafo único: A garantia de prioridade compreende:
a) primazia de receber proteção e socorro em quaisquer circunstâncias;
b) precedência de atendimento nos serviços públicos e ou de relevância pública;
c) preferência na formulação e na execução das políticas sociais públicas;
d) destinação privilegiada de recursos públicos nas áreas relacionadas com a proteção à infância e à juventude.
Mais uma ilação de natureza marcadamente ideológica, profundamente constrangedora. Demonstra a incapacidade, irresponsabilidade e insensibilidade do legislador pátrio ao estabelecer na redação do referido artigo como dever inicial de cuidado à criança e ao adolescente, a família, quando por ordem de preferência e objetivo preferente deveriam estar a sociedade em geral, e, especificamente o Estado. Uma omissão tipicamente inerente às corruptelas e imperfeições do capitalismo ao inverter a responsabilidade e o caráter social das instituições. É o discurso ideologizado da norma jurídica do direito positivo, ao consignar desproporção e irrealidade na atuação dos agentes sociais.
No tema em comento, ao menos, na concepção de direito posto e não do direito pressuposto, como bem prelecionou o Ministro do STF, Eros Roberto Grau (negrito em destacado meu) a mudança de paradigma existente na legislação da criança e do adolescente contemplou a positivação dos direitos universais e fundamentais para infantes, mas como garantir a eficácia de tais direitos, numa sociedade cada vez mais complexa, plural e globalizada?
Para Valter Kenji Ishida, em sua obra Estatuto da Criança e do Adolescente (ISHIDA, p. 6 e ss. 2006) ao estabelecer comentários doutrinários e jurisprudenciais a cerca da doutrina da proteção integral da criança e do adolescente no Brasil, apresenta roteiros possíveis para as perguntas acima levantadas:
"Existem direitos que são destacáveis da pessoa humana, como a propriedade, e outros que são inerentes, ligados à pessoa humana de modo permanente. São os denominados direitos da personalidade, incluindo a vida, a liberdade física e intelectual, o nome, o corpo, a imagem e aquilo que crê como honra. O Estatuto (ECA) prefere falar em dignidade, não deixando contudo, de se referir ao tratamento condigno que esperamos dos outros."
Considerado por muitos, como um dos trabalhos de pesquisa comparativa, realizado com jovens em situação de risco mais bem estruturado e elaborados, já apresentados na doutrina criminológica, intitulado: Pesquisa Acerca da Delinqüência juvenil, levado a cabo pelo professor Jorge Trindade, e publicado em sua obra, Delinqüência Juvenil, compêndio transdisciplinar (TRINDADE, 2002), representa efetivo contributo científico para o debate, pois além de seguir os passos do rigor teórico-metodológico, avança em diversos matizes do conhecimento, da atualidade e realidade do tema.
Trata-se de pesquisa de campo, ultrapassando os limites do direito, e adentrando na contribuição de disciplinas e ciências auxiliares, como a psicologia, a criminologia, entre outras, e com o qual, neste artigo limito-me tão somente a citar alguns dados e reflexões por acreditar na sua contribuição efetiva para abordar a chamada criminalidade juvenil.
Embora a pesquisa tenha sido realizada, há mais de uma década, e tendo por objetivo específico comparar grupos de delinqüentes jovens do Brasil e da Espanha, tomando por base de coleta, grupos de Porto Alegre e de Sevilha. Dos dados colhidos, e analisados restou demonstrado, um fator importante na constituição e evolução da delinqüência juvenil, qual seja, a ausência e privação da figura paterna na vida dos jovens em situação de risco (negrito e sublinhado meu).
Para não ser prolixo e omisso, pois outros fatores também importam, tanto quanto, ou até mais que este (de natureza e influenciação psicológica), limito-me até em função dos objetivos desse artigo a citar algumas das observações gerais apontadas no estudo de Trindade (TRINDADE, P.151 e ss. 2002) por considerá-las relevantes:
"1) A delinqüência juvenil predomina no sexo masculino em uma proporção de 4 para 1.
2) No âmbito das populações estudadas, a delinqüência juvenil polariza-se em torno dos 15 anos de idade.
3) Os jovens delinqüentes de Porto Alegre procedem mais da periferia urbana do que em Sevilha. Porém, a delinqüência é predominante mente urbana, tanto em Porto Alegre, quanto em Sevilha.
4) Tanto em Porto Alegre, quanto em Sevilha, a delinqüência juvenil está associada a uma renda familiar identificável com o nível de pobreza.
5) O fenômeno "meninos-de-rua é específico da amostra brasileira, onde um (1) de cada cinco (5) delinqüentes juvenis é carente de residência, e um (1) de cada cinco (5) não têm residência fixa.
6) O analfabetismo é maior nos jovens delinqüentes de Porto Alegre do que nos delinqüentes de Sevilha.
7) Os delinqüentes juvenis, tanto em Porto Alegre quanto em Sevilha, provêm de famílias numerosas.
8) A desestruturação familiar é um fator influente na delinqüência juvenil, sendo a separação dos pais mais expressiva em Porto Alegre do que em Sevilha.
9) A ausência e a privação da figura paterna são elementos importantes na configuração da delinqüência juvenil, tanto em Porto Alegre, como em Sevilha.
10) O desemprego do pai parece ser um fator contributivo para a delinqüência juvenil em ambos os grupos estudados.
11) A freqüência escolar dos delinqüentes, tento em Porto Alegre, quanto em Sevilha, é consideravelmente inferior em relação aos não delinqüentes.
12) Os maus-tratos físicos e psíquicos parecem afetar, tanto em Porto Alegre quanto em Sevilha, delinqüentes e não-delinqüentes.
13) O consumo de drogas alcança a totalidade dos delinqüentes, e aproximadamente a terça parte dos não-delinqüentes.
É importante ressaltar que tais dados foram coletados, tratados e analisados em 1998, e já decorridos mais de uma década, os resultados acima apontados, parecem demonstrar a atualidade do tema mais e mais perceptível.
Quando os meios de comunicação expõe as cenas chocantes relacionadas à onda de violência, mormente àquela relacionada à criança e ao adolescente, mais confirmam-se estas e outras circunstâncias, primordialmente as condições nas quais a família está inserida, e no "entorno" da delinqüência juvenil.
Como afirma TRINDADE (2002, p.175.):
"Como se evidenciou, a tentativa de buscar relações de causalidade entre a ausência da figura paterna e delinqüência juvenil não constitui novidade. Cohen (1968) já apontou para ela. Estudos mais recentes, alguns confrontados por decisões dos tribunais de menores, procuram, com maior segurança, demonstrar que a ausência paterna é muito mais significativa em grupos de delinqüentes juvenis do que na população jovem em geral."
Ora se é crível aceitar os resultados de dados e de observações colhidas nos grupos de risco, objeto de estudo das pesquisas acima, tomando por base a questão do pai, da escola, das drogas, como possíveis "variáveis" intrinsecamente relacionadas com a questão da delinqüência juvenil, é dedutível então apontar para a família, e ao Estado, como potenciais "loci" de produção e reprodução da questão do menor.
Na assertiva de que a idéia central apontada para a família como instituição organizadora da transmissão de valores, que fracassa no delinqüente, e nas mais das vezes, tal fracasso ou perda de tais referenciais conduz a criança ao desatino de perder sua identidade, ou não saber efetivamente quem ela de fato é (a questão do ser). Essa quebra de referências e valores, agravada pela crise das instituições, num mundo cada vez mais policêntrico e multifacetário, constitui efetivamente sérios riscos a criança e ao adolescente, mormente, em situações de risco.
Tais questões parecem não ater-se diretamente ao universo jurídico, mas ao viés psico-social no qual a família, e por tabela a criança e o adolescente. Ledo engano, pois acabam por desaguar no ambiente jurídico, vez que, a conduta delitiva, ou melhor, o ato infracional, é tecnicamente, conduta urgida das relações sociais, e familiares, assim como não há que negar que a produção jurídica, e portanto, o Direito é um fato social.
Para realçar tal entendimento, mais uma vez, recorro ao percuciente trabalho de TRINDADE (2002, P. 178 e 179), o qual, em ensaio criminológico, toma por empréstimo teorias psicológicas e questões sociais muito pertinentes, que encerram a noção de transgressão, falta, ilícito, tão elucidativas no universo científico do menor não somente carente, mas também, por conseqüente, via de regra delinqüente:
"Para nós, além das teorias da transgressão , da oralidade, do conteúdo narcisista marcado pelo 'eu faço', e da teoria da falta, fica, de um lado, a idéia de que a impossibilidade da aquisição da noção de lei decorre de uma falha ou prejuízo no processo de internalização do grande não paterno fundante da cultura e da ordem, que a criança, não encontrando dentro de si, vai buscar fora, no mundo exterior, pois é imprescindível um continente para seus conteúdos; de outro, o fracasso do pai, aquilo que Grunspung (1997) denomina pai desertor, típico de um pacto perverso, vivenciado como uma oceânica fata de pai, em que se produz a convocação do pai- ausente, que é chamado pela conduta transgressiva, na qual se dá um pseudo-trunfo sobre um pseudo-objeto.
Primeiramente essa busca se dá dentro da família, mas se ela também falhar, o caminho seguinte será buscar os limites externos, heteronomicamente estabelecidos na medida em que vêm de fora para dentro, na escola. Se essa pauta acessória de educação por acaso também não satisfizer os anseios da criança, ela recorrerá ainda a instituições mais severas, conseqüentemente de funcionamento mais primitivo, tais como a polícia, a justiça ou o hospital. Porém, se nessa trajetória de errâncias as deficiências se acumularem, a delinqüência se estabelece como um conflito de vida, como um grito de socorro, um pedido de ajuda, uma tentativa desesperada de contenção externa para impulsos irruptivos incontroláveis
Não podendo suportar o sofrimento psíquico de um viver mutilado pela ausência da lei, agora interna e já externa, restará para a criança, inscrita num mundo que é social e cultural, a alternativa inconsciente da delinqüência como sintoma. Em medidas extremas, encontrará o caminho da loucura, enquanto forma de se alienar do mundo para aplacar o sofrimento a que a condenação de estar marcado pela lei primeva o sentencia; ou, então, buscará a via do suicídio, praticando diretamente a interrupção de sua própria existência, carregada de uma dor psíquica insuportável, ou, indiretamente, realizando atividades perigosas de confronto com as forças punitivas implacáveis; em qualquer das duas hipóteses, destruindo-se a si mesma antes de ser destruída."
Se a realidade esboça-se num quadro dantesco de multiformes causas muito embora o jurista, mormente, de formação positivista encare o problema basicamente sob o olhar da condição da norma de per si; a boa razão, a "sã doutrina", pugna de forma crítica e radical para um complexo de fatores transcendentes e imanentes ao âmbito jurídico.
Tão relevante é a questão da criança e do adolescente para a vida em sociedade, que a dimensão do debate ampliou-se e consolidando-se no sentido da emergência e do embasamento da questão a nível dos princípios. Nesse condão, o princípio a ser exaltado é a dignidade da pessoa humana.
Exaltar o primado da dignidade da pessoa humana sem deslocá-la da discussão econômica e política, é questão essencial no debate posto (delinqüência juvenil). A pobreza, questão fulcral oriunda das idiossincrasias do Sistema Econômico, é de natureza político-ideológica e apresenta desdobramentos na vida em sociedade. Constitui-se num dos geradores e potencializadores por excelência da criminalidade; avilta drasticamente todas dimensões da dignidade da pessoa humana.
Nas palavras do professor Ingo Sarlet (SARLET, p. 97 e 98), pobreza e exclusão social são nítidas violações aos direitos humanos fundamentais. Assim passo a citar:
"Nesse contexto, vale lembrar, ainda, que o ponto de ligação entre a pobreza, a exclusão social e os direitos sociais reside justamente no respeito pela proteção da dignidade da pessoa humana, já que - de acordo com Rosenfeld - 'onde homens e mulheres estiverem condenados a viver na pobreza, os direitos humanos estarão sendo violados'. (...) implica uma violação da dignidade, que, no entanto, resta configurada sempre que a pobreza resultar em exclusão e déficit efetivo de autodeterminação, o que se verifica na pobreza e na exclusão, em função de decisões tomadas por outras pessoas no âmbito dos processos políticos, sociais e econômicos (grifo e sublinhado meu) ."
Se foi relegada à família, seja pelo fator acima descrito (pobreza, exclusão social, etc.), e por extensão, ainda em grande proporção à figura paterna a "chave" do nexo causal da tragedia juvenil, no que foi consignado nessa abordagem criminológica (viés psíquico), o que dizer da omissão das nossas elites políticas dominantes, e em última análise inferindo: qual a parcela de culpa, ou responsabilidade estatal no desiderato do menor em risco?
Contudo, na busca de possíveis respostas para tais questionamentos, faz-se mister entender o que é o Estado na contemporaneidade, como se comporta o mesmo numa perspectiva em tempos da crise dos paradigmas da modernidade, primordialmente ante a realidade crítica do menor em abandono ou mesmo diante como agente que pratica atos infracionais.

O QUE É, ONDE E COMO ATUA O ESTADO?

Como tema de profundas ilações, o Estado, sua definição bem como, sua evolução ao longo do tempo, constitui assunto de vastíssima profundidade e amplitude. Destarte, ocupa posição de centralidade e especificidade, estando mais afeito aos cânones da ciência política, da teoria geral do estado e do direito constitucional.
Como foi asseverado anteriormente não se constitui como premissa deste simples artigo aprofundar sua natureza, razão de ser ou finalidade (Estado). Portanto, convêm tão somente recolher e citar alguns ensinamentos oportunos e direcionados à problemática do menor, tomando o Estado como ente, agente e partícipe da sociedade organizada; evidenciar a responsabilidade Estatal na promoção do bem comum, e analisar alguns de seus instrumentos político-jurídicos passíveis de utilização na questão do menor, são alvos.
Um grande doutrinador argentino Carlos Cassagne (CASSAGNE, p.37), no âmbito do direito administrativo e da responsabilidade do Estado assim preleciona:
"(...) el Estado es una institución que se configura como una comunidad organizada con fines superiores y permanentes.
A su vez, en la dimensión normativa, el Estado se concibe como una persona jurídica que reviste de juridicidad positiva a la realidad que exhibe el orden existencial y que se traduce en su reconocimiento como sujeto de derecho, o sea, como um ente susceptibile de adquirir derechos e contraer obligaciones, actuar en juicio como actor o demandado, etc. En este sentido, no obstante que en el Estado reposa la unidad del poder de la Nación, su integración es compleja ya que se compone tanto de órganos como de entes con personalidad jurídica diferenciada."
O direito administrativo acompanha por assim dizer o nascimento do Estado de Direito, aos dias atuais. È por definição o ramo do direito público que tem por objeto os órgãos, agentes e pessoas jurídicas administrativas que integram a Administração Pública, a atividade não contenciosa que exerce e os bens que se utiliza para a consecução de seus fins, de natureza pública (DI PIETRO, p. 47).
Quanto à responsabilização do Estado por atos comissivos e omissivos a eminente jurista brasileira assim preleciona (DI PIETRO, 1999):
Por outro lado ao falarmos de Estado e de suas funções, o conotamos na perspectiva do Estado Democrático de Direito, vez que anteriormente, ao atrelar o princípio da proteção integral à criança e ao adolescente, só se justifica tal emprego (termo Estado) diante de conjuntura inerente ao primado da Constituição, e das garantias efetivas aos direitos nela postos.
A garantia da proteção jurídica no entorno da noção de Estado de Direito, pressupõe segundo a lição de GERHARD ROBBERS (p. 30 e 31) poderosa noção jusfilosófica, e de conotação ética:
"Otro princípio básico de la idea de Estado de derecho está dado por la garantía de la protección jurídica: todos deben tener la possibilidad de obtener sus derechos por la vía judicial. No se trata sólo de la protección ante un acto de arbitrariedad del Estado, sino también de la protección que debe proveer el Estado mismo (...) La primacía del derecho como postulado básico del Estado de derecho exige que la lucha política se desarrolle en un marco de respeto por el Estado de derecho, y no con actos de violación del mismo. La política puede introducir modificaciones al derecho por la vía del procedimiento democrático; pero ése es a la vez el único procedimiento al que puede remitirse."
O problema do Estado como ente social encarregado da aplicação de políticas públicas voltadas para a promoção do bem comum, e in casu, a proteção integral da criança e do adolescente, refere-se nas mais das vezes em garantir efetivamente a execução da previsão normativa.
Em se tratando de responsabilidade do Estado, os doutrinadores pátrios relacionam o dano resultante do comportamento do Executivo, do Legislativo ou do Judiciário pela ação ou omissão causada por seus agentes, e naturalmente a obrigação de reparação dos danos. Há que se falar então da responsabilização do Estado como pessoa jurídica, e por ter o mesmo capacidade de representar-se jurídicamente e tendo a responsabilidade natureza civil, de natureza ressarcitoria pecuniária. É a responsabilidade extracontratual do Estado.
MARIA SYLVIA ZANELLA DI PETRO (DI PIETRO, p.408) arremata a responsabilidade estatal assim:
"Pode-se, portanto, dizer que a responsabilidade extracontratual do Estado corresponde à obrigação de reparar danos causados a terceiros em decorrência de comportamentos comissivos ou omissivos, materiais ou jurídicos, lícitos ou ilícitos, imputáveis aos agentes públicos."
No caso brasileiro, a efetivação da proteção integral via aplicação de políticas públicas voltada para o menor, passa para o mundo real, quando da aplicação dos recursos orçamentários definidos para tal segmento da população. O grande problema é que a destinação das verbas orçamentárias, não implica na sua efetiva aplicação pelos agentes políticos do Estado (governantes).
A mídia brasileira tem exibido repetidas matérias nas quais o Poder Executivo é noticiado como descumpridor contumaz das políticas públicas voltadas para o equacionamento das questões da criança e do adolescente.
Grande parte das matérias jornalísticas tem se voltado para atos de corrupção perpetrados por agentes políticos (p.ex. um governante que desvia verbas destinadas a suprir a merenda escolar, para a saúde publica, etc.), nos mais variados níveis da federação brasileira. Tais situações, são verdadeiros propulsores do aumento da criminalidade, mormente, da criminalidade juvenil, posto que, denota ampliação da exclusão social, e por conseguinte, matriz geradora de pobreza e crime.
Na disciplina jurídica do ordenamento brasileiro cabe então, ao Ministério Público, exercer no âmbito de suas atribuições atuação jurídica destinada a proteção da criança e do adolescente, e o instrumento cabível passa a ser a ação civil pública contra o executivo, no sentido de garantir a reserva pública orçamentária para atendimento das demandas cabíveis ( ECA, art. 4º, par. único, alíneas, a,b,c,d).
À guisa de ilustração cito por oportuno apresento importante decisão em forma de julgado apresentado por Ishida (ISHIDA, p. 7), a qual transcrevo in verbis:
"O TJSP entendeu sobre a necessidade de se garantir o art. 4º do ECA com relação à destinação de menores abandonados aos albergues da Municipalidade, não se tratando de indevida ingerência do Poder Judiciário sobre atividade típica do Poder Executivo:
'Ora o art. 227, caput, da Constituição Federal, secundado pelo art. 4º do Estatuto da Criança e do Adolescente, ao assegura prioridade absoluta à proteção dos direitos da criança, como dever da família, da sociedade e do Estado, respalda a sentença impugnada que impôs à Municipalidade o acolhimento em três de seus albergues, de menores abandonados. Nem se vislumbra, in casu, indevida ingerência ao Poder Judiciário nas típicas atividades do Executivo, pois a absoluta prioridade na asseguração dos direitos da criança e do adolescente é ditada por normas, constitucional e legal, que a impõe ao administrador público como dever, não faculdade. Ressalte-se, a propósito, que não impôs a sentença impugnada ao Poder Executivo Municipal a construção de albergues ou a locação de prédios para tal fim, mas apenas, a destinação de três dos abrigos já mantidos pela Administração também às crianças e adolescentes abandonados. Finalmente, a Municipalidade não terá, certamente, dificuldade em destinar a tais locais servidores especializados que viabilizarão o acolhimento dos menores abandonados, como assistentes sociais, educadores, psicólogos e, quiçá, policiais que zelarão pela ordem nesses recintos.' (TJSP - Apelação Civil nº 37.609-0/5 - Comarca de São Paulo - Estado de São Paulo - v. u. - Rel. Luís de Macedo - j.31-7-1997)."
Se bases jurídicas existem e encontram-se em plena vigência; se o Estado está estruturado com receitas orçamentárias, com verbas destinadas à aplicação em programas de proteção à criança e ao adolescente abandonados e em situação de risco. Se organizações não governamentais atuam inclusive em parceria com o Estado com vistas à prevenção e recuperação de menores, perquire-se então por que só aumentam os índices de violência praticados por infantes, e, contra os mesmos nas mais variadas cidades brasileiras a despeito, frese-se: da existência de tamanha rede de proteção?
Novamente a resposta voltar-se-á não somente para o direito posto, ou o Estado, inobstante ser o mesmo Democrático de Direito. A cerca de tal fato, com muita proficiência, ULRICH KARPEN (KARPEN, p. 219, 226) assim manifesta-se:
"El moderno Estado de derecho es fuerte y viable sólo si es un Estado social de derecho. El modelo del ordenamiento económico tiene que ser el de la economia social de mercado.
El Estado de derecho con división de poderes es sólo efectivo si la voluntad popular puede también imponer y guiarn sus decisiones y controlar su realización. Cuando tal no es elcaso, es tan sólo una fachada detrás de la cual se ocultan decisores no legitimados. Esto presupone que los decisores legitimados - el pueblo, los diputados, el gobierno y los funcionários ministeriales - tienen una visión clara de los pressupuestos y alcance de sus decisiones (sublinhado meu)."
Nos moldes preconizados pelo Estado Neoliberal, dificilmente poder-se-á objetivamente construir e aplicar políticas públicas reais para diminuição das ferrenhas desigualdades sociais que ampliam e potencializam pobreza e exclusão social.
É também do conhecimento da Teoria Geral do Direito, e da Filosofia do Direito, que na ótica do normativismo jurídico Kelseniano, Direito e Estado se confundem. Portanto, não será pelo viés jurídico, unicamente, que emergirá a solução de problemas sociais e histórico-econômicos tão antigos, quanto presentes no seio das relações em sociedade.
Necessário se faz por oportuno reconhecer que a dinâmica da vida econômica e social, requerem novas leituras do fenômeno jurídico, notadamente para além do chamado paradigma do Direito formal. Já é tempo de adequar a sociedade em mutação a uma nova geração de Direitos. O Direito "achado na rua", já que o "outro" foi elaborado nas alcovas do poder, unicamente pelo e para o poder.
No dizer de KILDARE GONÇALVES CARVALHO (CARVALHO, p. 132), sobre as crises nas quais o Estado está imerso é oportuno citar:
"As crises do Estado implicarão na necessidade de sua refundação, segundo novos paradigmas, necessários para responder ao fenômeno da mundialização, orientados, sempre, para a preservação da soberania estatal, proteção e fomento da solidariedade e dignidade do ser humano."
O Direito alternativo e crítico que seja originário do debate social e da dialética condição humana, apresenta-se como ferramenta a disposição. Os princípios do Garantismo Jurídico, precisam ser efetivamente estabelecidos.
Assim, oxalá num futuro próximo as gerações do porvir, in casu especial, crianças e adolescentes possam desfrutar verdadeiramente dos princípios inerentes à dignidade da pessoa humana para serem e construírem a verdadeira cidadania, ou pelo menos algo que se pareça com a idéia de justiça social.
Para finalizar gostaria de lembrar que num mundo de tantas mudanças de paradigmas; das transformações da modernidade, o Direito não se mantém inerte a tal conjunção de fatos. A dinâmica da vida social, requer constante revisionismo e releitura jurídica, portanto, por oportuno o Ministro do Supremo Tribunal Federal, Eros Roberto Grau em obra de renomado conteúdo jusfilosófico, assim se expressa (GRAU, p. 56):
"A estruturação do 'novo direito', que há de suceder o direito moderno/formal, há de ser substancialmente informada pelos novos discursos jurídicos (discursos que falam do direito) que produzam os que não se contentam em apenas descrever o direito, aspirando a transformá-lo. A concepção do direito pressuposto enseja o robustecimento desses discursos."




À GUISA DE CONCLUSÃO

A condição da criança e do adolescente no Brasil, é deveras "sui generis". Se por um lado, o país é dotado de moderna e poderosa legislação protetiva dos direitos da criança e do adolescente, por outro, é ineficiente nos mecanismos de prevenção dos seus direitos . O Estado brasileiro, é omisso e pouco ainda faz para equacionar a grave crise da criança delinquente. Avança em progressão assustadora a criminalidade juvenil, como a exprimir um quadro desesperador de exclusão social.
O menor no Brasil, foi e ainda é estigmatizado, por meio de um discurso falacioso e ideologizado, no qual, a categoria criança-carente é nas mais das vezes confundida com a criança- delinquente.
O Estado, através de seus governantes, efetivamente só é compelido pelo Judiciário, por provocação pelo Ministério Público, na execução dos preceitos legais garantidores do mínimo jurídico para a defesa dos direitos da criança e do adolescente.
A pobreza e a exclusão social, figuram ainda no Brasil como grandes propulsores da criminalidade juvenil, a espalhar nas ruas e praças do país um contingente cada dia maior e mais exposto à criminalidade adulta tornando-se "parceira" e vítima da mesma.
E para não ser prolixo, concordo com a lição proferida com extrema pertinência e propriedade, do professor Newton Fernandes (FERNANDES, P. 499. 2002) o qual, asimm expõe:
"A perversão da criança e do adolescente é o espetáculo mais infeliz e doloroso que um povo pode oferecer. Um país que se pretende civilizado deve cuidar de suas crianças, de seus velhos, de suas famílias e de seus deficientes.
Quando as crianças se pervertem e os velhos sofrem, quase sempre é o resultado da infelicidade ou da infâmia que assola os lares, quando não da patogenia social que enseja a perversão, a torpeza e um longo caudal de situações malsãs (sublinhado meu)."
O débito social perpetrado pelas elites brasileiras ao longo dos séculos, alija na prática a eficácia, o acesso e garantia dos direitos fundamentais, que, acompanhado da omissão do Estado transformam e reproduzem o drama das crianças e adolescentes no Brasil, a tal ponto de converte-las em "potenciais incubadoras" de grande parte dos males, nos quais, a onda de violência e insegurança espalhou-se pelo país.
Urge no Brasil, a despeito, do Estatuto da Criança e do adolescente, uma verdadeira "mudança de paradigma nas consciências" não só dos agentes políticos do Estado, ou seja, dos governos, mas da sociedade civil em geral.
A tarefa converteu-se em problemática coletiva da sociedade organizada brasileira, a qual precisa estar alerta para cobrar e exigir dos que elaboram as normas, dos que julgam, e dos que executam as politicas públicas, os mecanismos de proteção e desenvolvimento do infante e adolescente.
Ademais, as mudanças de concepção e o nexo causal dos problemas sociais atuais com o passado, assume atrelamento quase que "visceral". Tornam-se, portanto, objeto constante da perspicácia e do arguto interesse do historiador/observador. Neste sentido, a lição proferida por Philippe Ariès é escolhida para dar clareza e atualidade ao debate posto (delinquência juvenil). O eminente historiador assim preleciona:
"A sociedade da metade do século XX, com os problemas que se colocam diante de nós, como a atitude diante da vida, a atitude diante da morte, os contraceptivos etc., são para mim fontes históricas. Não posso fazer abstrações das observações que faço quando saio na rua. A vida de todos os dias é apaixonante. Talvez seja essa, para mim, a maneira de entrar na História. Não digo que seja o fundamental. O fundamental é mais, como já disse, o desejo o de encontrar um mistério central, mas nunca estamos diante do mistério central, estamos no meio da rua. Então eu caminho por um mundo que é um mundo de curiosidade, excitando constantemente minha curiosidade, algumas vezes maravilhando-me: por que tal ou qual coisa? E é isso que me faz pular para o passado: eu penso que nunca segui um comportamento histórico que não tivesse como ponto de partida uma questão colocada pelo presente."
É necessário portanto, desconfiar das "certezas postas"; das pretensas "deduções"; dos pseudo-argumentos apresentados como "verdadeiros" axiomas. A realidade da criança e do adolescente no Brasil é crítica. A família, unidade primeira da sociedade, foi colocada em situação de risco. Observem-se os numerosos contingentes de brasileiros excluídos e marginalizados.
A despeito da existêcia da norma a tutelar os interesses da criança e do adolescente (do delinquente juvenil) não constitui-se em garantia o exercício ao acesso, às condições mínimas de prevenção e reinserção do jovem em situação de risco. Na verdade o que existe em muito no Brasil, juridicamente falando é um verdadeiro "descompasso" entre o direito posto e sua efetividade; do Direito Penal e da Dogmática Jurídica, e no dizer de tese doutoral Vera Regina de Andrade (A Ilusão de Segurança Jurídica, ANDRADE, p. 313):
"O controle penal capitalista, que a Dogmática se propõe a racionalizar, em nome dos Direitos Humanos e da segurança jurídica exigidos pelo Estado de Direito e o Direito Penal Liberal, é o mesmo controle que ela contribui para operacionalizar e legitimar, mesmo quando opere seletivamente e viole, sistematicamente, os Direitos Humanos, configurando um suporte importante na manutenção da desigual distribuição da riqueza e do poder.
O défict de tutela real dos Direitos Humanos é assim compensado pela criação, no público, de uma ilusão de segurança jurídica e de um sentimento de confiança no Direito Penal e nas instituições de controle que têm uma base real cada vez mais escassa."
Nada mais sério do que as palavras da mestra acima. A criança delinquente no Brasil, a despeito do ECA, em seus 20 anos de vigência, é mal tratada, e desconsiderada como pessoa em condição especial e sujeito de direitos. .
O Estado imerso na conjuntura da globalização, afrouxa seus vinculos do passado, quando representava o agente social provedor do bem comum, na figura do welfare state, adotando o modelo de mundialização dos mercados.
A sociedade organizada, através de seus canais de formação e informação precisa estar atenta afim de cobrar efetivamente a implementação da doutrina da proteção integral das crianças e adolescentes brasileiros.
O Ministério Público precisa efetivamente abraçar a luta pela defesa dos intereses daqueles que se encontram em situação real de risco, e não continuar a assumir posturas meramente formais no que diz respeito ao âmbito de suas atribuições.
O Poder Judiciário não pode mais "quedar-se", ante as pressões do Poder Executivo em quaisquer dos entes federados.
Não existirá já foi dito Estado Democrático de Direito, sem a existência efetiva e real do Estado Social de Direito. A sociedade do III milênio não será erigida sem a concepção dos cânones da justiça social.
Não foi sem razão, que, o Mestre dos Mestres, Jesus Cristo, assim referia-se às crianças:
"Deixai as crianças virem a mim e não as impeçais, pois a pessoas assim é que pertence o Reino de Deus. Eu vos digo: quem não receber o Reino de Deus como uma criança não entrará nele (Lc 17: 16,17)."
Numa sociedade de futuro, não há mais espaço para tortura, exclusão social, e, muito menos para o desrespeito aos direitos da criança e do adolescente na sua dignidade como pessoa humana.
Assim ocorrendo, poderemos colher os frutos a médio e longo prazo de uma "ardente expectativa", qual seja, conviver numa sociedade mais justa, fraterna, e, quiçá um dia, verdadeiramente igualitária.
BIBLIOGRAFIA

SIGLAS

ECA - Estatuto da Criança e do Adolescente. Lei nº 8.069/1990
CF - Constituição da República Federativa do Brasil de 1988

NOTAS
¹. MACHADO, Martha de Toledo. A proteção constitucional de crianças e adolescentes e os Direitos Humanos.
2 MACHADO, Martha de Toledo. A Proteção Constitucional de Crianças e Adolescentes e os Direitos Humanos.
3 MACHADO, Martha de Toledo. A Proteção Constitucional de Crianças e Adolescentes e os Direitos Humanos

ARIÈS, Philippe. História Social da Criança e da Família. 2ª ed. Rio de Janeiro: LTC, 2006.
ARIÈS, Philippe.Trecho de uma entrevista concedida ao Nouvel Observateur, publicada no Brasil em Ensaios de Opinião nº 2.
CASSAGNE, Juan Carlos. Derecho administrativo, tomo I, Lexis Nexis. Buenos Aires: 2001.
ROBBERS, Gerhard. El Estado de derecho y sus bases éticas. Estado de Derecho y Democracia, ed. por Josef Thesing. Mimeo, UMSA, Buenos Aires, 2010.
KARPEN, Ulrich. Condiciones de la eficiecia del Estado de Derecho - Especialmente en los países en desarrollo y en despegue. Estado de Derecho y Democracia, ed. por Josef Thesing. Mimeo, UMSA, Buenos Aires, 2010.
LIBERATI, Wilson Donizeti. Direito da criança e do adolescente. 2ª ed. São Paulo Ridel, 2007.
ISHIDA, Válter Kenji. Estatuto da Criança e do Adolescente. Doutrina e jurisprudência. 8ª ed. São Paulo, Atlas, 2006.
DI PIETRO, Maria Sylvia Zanella. Direito administrativo. 9 ª ed. São Paulo, Atlas, 1999.
CARVALHO, Gonçalves Kildare. Direito Constitucional. 12ª ed. Belo Horizonte, Del Rey, 2006.
GRAU, Eros Roberto. O direito Posto e o direito pressuposto. 2ª ed. São Paulo, Malheiros, 1998.
TRINDADE, Jorge. Delinqüência Juvenil. Compêndio transdisciplinar. 3ª ed. Porto Alegre, Livraria do Advogado, 2002.
FERNANDES, Valter. Criminologia Integrada. 2ª ed. São Paulo, Ed. Revista dos Tribunais, 2002.
SARLET, Ingo Wolfgang. Dignidade da pessoa humana e direitos fundamentais na Constituição Federal de 1988. Porto Alegre, 5ª ed. Livraria do Advogado, 2007.
MACHADO, Martha de Toledo. A Proteção Comstitucional de Crianças e Adolescentes e os Direitos Humanos. Barueri, SP, Manole, 2003.
ANDRADE, Vera Regina Pereira de. A Ilusão de Segurança Jurídica. Do controle da violência à violência do controle penal. Porto Alegre, Livraria do Advogado, 2003.

Autor: George Laurindo De Andrade


Artigos Relacionados


Os Limites Do Estatuto Da Criança E Do Adolescente

ReduÇÃo Da Maioridade X AplicaÇÃo Minuciosa Do Eca

Criança E Adolescente

A Mulher E A ProteÇÃo Aos Filhos

Abusos De Direito Do Guardião.

AplicaÇÃo Eficaz Do Eca

Direitos Fundamentais Da Criança E Do Adolescente