A Aplicabilidade Do Princípio Da Insignificância



1. INTRODUÇÃO

Quando se pergunta a qualquer pessoa que já estudou minimamente o Direito Penal qual o conceito de crime, logo vem a resposta decorada: "crime é toda conduta típica, antijurídica e culpável". Depois, pergunta-se a essa mesma pessoa: e quais são os elementos componentes do fato típico? Ela replicará: "fato típico é aquele que contém os seguintes elementos: conduta (omissiva ou comissiva, dolosa ou culposa), resultado, nexo causalidade entre a conduta e o resultado e tipicidade (subsunção da conduta humana a uma norma penal incriminadora". Novamente questionamentos: alguém que furta uma caixa de fósforos cometeu delito? Se a pessoa que responde ao questionário for um operador do direito que se apegou aos conceitos clássicos da teoria do crime, responderá que sim. Isso porque o furto de uma caixa de fósforos se adequa perfeitamente ao clássico conceito de tipicidade, de mera subsunção do fato à lei, muito embora, em seu íntimo, essa pessoa perceba que a resposta penal do Estado será muito severa para uma conduta de tamanha irrelevância.

Justamente pensando nessa desarrazoada resposta estatal, Eugênio Raúl Zaffaroni ampliou o conceito de tipicidade, agora não visto apenas pelo prisma formal da subsunção, mas somado a ela o prisma material, na qual a lesividade ao bem jurídico ganha terreno, também devendo esta ser levada em conta na caracterização da tipicidade (e consequentemente a ausência da lesividade irá levar à exclusão do crime, pela inexistência da tipicidade da conduta). O princípio da insignificância nada mais é do que uma decorrência lógica desse novo conceito de tipicidade, denominado pelo seu autor de "tipicidade conglobante".

No entanto, muito magistrados e membros do Ministério Público continuam relutantes em aplicar o referido princípio em suas decisões, pelos motivos mais estapafúrdios possíveis, causando, destarte, uma hipertrofia no sistema penitenciário e o acúmulo desnecessário de processos na justiça, os quais deveriam ter sido rejeitados no seus nascedouro ou nem mesmo oferecida a denúncia.

Deste modo, podemos afirmar que o princípio da insignificância interferirá na caracterização da tipicidade penal, entretanto, para sua aplicação, deve-se aferir todas as circunstâncias que abrangem cada caso concreto.

2. O PRINCÍPIO DA INSIGNIFICÂNCIA

Para melhor compreensão do tema em comento, é imprescindível aludir que o princípio da intervenção mínima, como limitador do Jus Puniendi, faz com que o legislador selecione, para fins de proteção pelo Direito Penal, os bens mais importantes existentes na sociedade. Neste escopo, uma vez escolhido os bens a serem tutelados estes integrarão uma pequena parcela que irá merecer a atenção do direito penal em decorrência do seu caráter fragmentário.

O princípio da insignificância repousa no princípio maior de que é inconcebível um delito sem ofensa: nullum crimen sine iniuria. Ele pressupõe o princípio da "utilidade penal", onde só é idôneo punir quando a conduta for efetivamente lesiva a terceiros.

Assim, consideram-se atípicas as ações ou omissões que, dada a sua irrelevância, ofendem infimamente um bem juridicamente protegido, só podendo justificar a punição as condutas efetivamente lesivas.

Em outras palavras, Luiz Régis Prado (2007) afirma que, "o princípio da insignificância é o instrumento para a exclusão da imputação objetiva de resultados", ou seja, é um critério para determinação do injusto penal.

Desta forma, nota-se que, ao formular o princípio da insignificância, CLAUS ROXIN propôs a interpretação restritiva aos tipos penais, excluindo a conduta do tipo a partir da insignificante importância das lesões ou danos aos interesses sociais. Sustentando ainda que não haveria necessidade de uma imposição de pena, nas infrações de bagatela, uma vez que o fato não era punível.

Nesse mesmo sentido, leciona Cezar Roberto Bitencourt (2003):

"A tipicidade penal exige uma ofensa de alguma gravidade aos bens jurídicos protegidos, pois nem sempre qualquer ofensa à esses bens ou interesses é suficiente para configurar o injusto típico.Segundo esse princípio (...) é imperativa uma efetiva proporcionalidade entre a gravidade da conduta que se pretende punir e a drasticidade da intervenção estatal."

Sendo assim, malgrado algumas condutas enquadrem-se a determinado tipo penal, sob o ponto de vista formal, estas podem não apresentar relevância material, uma vez que, em verdade, não chegam a ofender nenhum bem jurídico.

Além disso, ainda sob os ensinamentos de ROXIN, "só pode ser castigado aquele comportamento que lesione direitos de outras pessoas e que não é simplesmente um comportamento pecaminoso ou imoral; (...) o Direito Penal só pode assegurar a ordem pacífica externa da sociedade, e além desse limite nem está legitimado nem é adequado para a educação moral dos cidadãos".

3. OS CRITÉRIOS PARA APLICAÇÃO DO PRINCÍPIO DA INSIGNIFICÂNCIA

O insignificante patrimonial é aquele absolutamente irrisório – e não apenas relativamente, de acordo com as partes envolvidas – ou seja, o dano que, no dia-a-dia das relações sociais, para a maioria das pessoas, a -se como de nenhuma ou irrelevante implicação.

            Mas afinal que valor pode ser considerado como o teto da insignificância?

           Para alguns doutrinadores, se o legislador penal fixou como critério do relevante – ou do não-desprezível – o valor de 1/30 do salário mínimo, deve ser este o critério do princípio em questão. Logo, sendo o dano patrimonial – efetivado ou visado – inferior a 1/30 do salário mínimo, há de se reconhecer a atipicidade material da conduta, por ausência de lesividade ao bem jurídico tutelado pelo tipo; se superior, caracterizada restará a tipicidade.
                     
Por outro lado o STF, em seu processo de formulação teórica, apoia-se no reconhecimento de que o caráter subsidiário do sistema penal reclama e impõe a intervenção mínima do poder público em matéria penal.

Para tanto, elencou para aplicação do princípio da insignificância, a aferição dos seguintes critérios materiais, quais sejam:

vMínima ofensividade da conduta do agente;

vNenhuma periculosidade social da ação;

vO reduzidíssimo grau de reprovabilidade do comportamento;

vE a inexpressividade da lesão jurídica provocada.

4. OS RISCOS DECORRENTES DA SUA INAPLICABILIDADE

A prisão por crime de bagatela é um mal para a sociedade, uma vez que condiciona carreiras criminosas. Isto porque o encarceramento de um cidadão, a estigmatização, o afastamento da sociedade, a escassez de oportunidades legítimas, o antecedente de delinqüente fomentam a inserção ou a continuação do indivíduo numa carreira criminosa cada vez mais violenta.

Dessa forma, pode-se constatar que a aplicabilidade da prisão só se justifica quando a conduta do agente for mais nocivo que o próprio crime, ou seja, causar um mal maior na sociedade, caso contrário, estaria "estimulando" a criminalidade e não a combatendo.

A fim de evitar os danos decorrentes da prisão por crime de bagatela, foi introduzido na teoria do delito o princípio da insignificância, pelo qual tem-se que observar a relevância penal da gravidade da conduta praticada pelo indivíduo, posto que se esta conduta não tem significância não será crime, logo não deverá haver prisão.

Diante do exposto, a aplicação do princípio da insignificância não implica em legitimar a conduta, já que esta continua sendo proibida; no entanto, a aplicabilidade da prisão seria uma punição mais drástica que a própria atuação do agente. Por isso considerar que o ilícito é apenas civil, e não penal.

5. A APLICAÇÃO DO PRINCÍPIO DA INSIGNIFICÂNCIA EM CADA CASO CONCRETO

Inobstante todos os apontamentos atinentes ao princípio em estudo, não se pode esquecer que a sua aplicação efetiva-se em cada caso concreto.

As peculiaridades de cada evento são fatores de extrema relevância, que determinam a possibilidade ou não de aplicação do princípio da insignificância.

Desta forma, por mais que o bem jurídico ameaçado seja de pequena monta pecuniária, a utilização dos critérios materiais postulados pelo STF, não são suficientes.

Atrelados a estes é imprescindível analisar quem são os agentes envolvidos no litígio, quais são as suas condições econômicas e o mais importante, qual é o valor subjetivo/sentimental que a vítima atribui ao seu bem ameaçado ou violado.

Atente-se, ademais, que a aplicação desarrazoada do princípio da insignificância pode incidir na indesejável sensação de impunidade para aqueles que praticam pequenos delitos.

Para melhor demonstrar a posição aqui adotada, imaginemos que Fulano furtou um casaco velho de Beltrano, e, posteriormente, o Ministério Público decidiu pelo arquivamento do inquérito policial, não oferecendo a denúncia, alegando, o princípio da insignificância em virtude do seu valor irrisório. Entretanto, verificou-se que, ao adotar essa posição, o promotor público não se ateve ao estudo mais aprofundado do caso, ignorando o fato de que o objeto do delito, o casaco velho, era o único bem que a vítima, ora Beltrano, possuía para se proteger do frio.

Destarte, muito embora o valor pecuniário atribuído ao bem furtado seja irrisório, este critério não pode ser suficiente para a aplicação do princípio em comento. Isto porque a sua finalidade, qual seja, a de abrigar a sua dona do frio, configura-se como sendo o requisito de maior relevância para a análise do caso.

Entretanto, diferentemente do caso acima exposto, o magistrado Rafael Gonçalves de Paula nos autos nº 124/03 - 3ª Vara Criminal da Comarca de Palmas/TO, ao proferir a respeitável decisão, terminou por enquadrar perfeitamente o princípio da insignificância ao caso concreto considerando, para tanto, todos os aspectos que o compuseram.

Senão vejamos.

"Trata-se de auto de prisão em flagrante de Saul Rodrigues Rocha e Hagamenon Rodrigues Rocha, que foram detidos em virtude do suposto furto de duas (2) melancias. Instado a se manifestar, o Sr. Promotor de Justiça opinou pela manutenção dos indiciados na prisão.

Para conceder a liberdade aos indiciados, eu poderia invocar inúmeros fundamentos: os ensinamentos de Jesus Cristo, Buda e Ghandi, o Direito Natural, o princípio da insignificância ou bagatela, o princípio da intervenção mínima, os princípios do chamado Direito alternativo, o furto famélico, a injustiça da prisão de um lavrador e de um auxiliar de serviços gerais em contraposição à liberdade dos engravatados que sonegam milhões dos cofres públicos, o risco de se colocar os indiciados na Universidade do Crime (o sistema penitenciário nacional).

Poderia sustentar que duas melancias não enriquecem nem empobrecem ninguém.

Poderia aproveitar para fazer um discurso contra a situação econômica brasileira, que mantém 95% da população sobrevivendo com o mínimo necessário.

Poderia brandir minha ira contra os neo-liberais, o consenso de Washington, a cartilha demagógica da esquerda, a utopia do socialismo, a colonização européia.

Poderia dizer que George Bush joga bilhões de dólares em bombas na cabeça dos iraquianos, enquanto bilhões de seres humanos passam fome pela Terra - e aí, cadê a Justiça nesse mundo?

Poderia mesmo admitir minha mediocridade por não saber argumentar diante de tamanha obviedade.

Tantas são as possibilidades que ousarei agir em total desprezo às normas técnicas: não vou apontar nenhum desses fundamentos como razão de decidir.

Simplesmente mandarei soltar os indiciados.

Quem quiser que escolha o motivo.

Expeçam-se os alvarás. Intimem-se

Palmas - TO, 05 de setembro de 2003.

Rafael Gonçalves de Paula

Juiz de Direito" (Revista Consultor Jurídico, 2 de abril de 2004)

Portanto, observa-se que o emprego do princípio da insignificância não pode ser arbitrário. Para a sua aplicação, além do atendimento aos critérios formulados pelo STF, é imperiosa a analise minuciosa das nuanças que compõem os casos concretos: quem são os agentes, qual a sua condição financeira, as circunstâncias do fato considerado delituoso, e, principalmente, o quanto representa o bem violado para o seu proprietário. Só assim é que se tem a perfeita aplicação do princípio em comento.

6. CONCLUSÃO

Apesar do nome "princípio da insignificância", o referido princípio é de grande valia ao sistema penal. Ele tem o condão de fazer prevalecer a justiça material em face da justiça formal (legal).

Deve-se lembrar que o direito existe para promover a justiça material, ele não é um fim em si mesmo. Aplicar um conceito injusto e incompleto, somente porque ele vem sendo utilizado ao longo de décadas, vai de encontro com a própria finalidade da existência do direito.

Desta forma, a falta de vanguardismo de alguns juízes e promotores vem atingindo todo um sistema ordenado de princípios, já que estes reacionários tendem a deixar de aplicar o princípio da insignificância, juntamente porque acham que acabarão com a criminalidade se cercearem a liberdade de pessoas que praticaram condutas formalmente típicas, porém materialmente irrelevantes. Com a maestria que lhe é peculiar, manifestou-se sobre este assunto, Fernando Célio de Brito, afirmando que "o que mais fomenta a impunidade e o recrudescimento da criminalidade são muito mais a ausência de resposta efetiva aos grandes desmandos e ilicitudes da Nação, condutas que não raras vezes sangram os cofres públicos e o bolso dos cidadãos que trabalham e pagam impostos, bem como no não atendimento das necessidades básicas das pessoas" (Boletim, IBCCRIM 116/7, ano 10, julho. 2002).

7. BIBLIOGRAFIA

BATISTA, Nilo. Introdução Crítica ao Direito Penal Brasileiro. Rio de Janeiro: Revan, 1990.

BITENCOURT, Cezar Roberto. Tratado de Direito Penal. Vol. 1. 8ª ed. São Paulo: Saraiva, 2003.

GOMES, Luis Flávio. Princípio da Ofensividade no Direito Penal. Vol. 6, São Paulo: Revista dos Tribunais, 2002.

GRECO, Rogério. Curso de Direito Penal – Parte Geral. Vol. 1, 9ª ed, Niterói – RJ: Impetus, 2007.

LOPES, Maurício Antônio Ribeiro Lopes. Princípio da Insignificância no Direito Penal , 2ª ed., São Paulo: Revista dos Tribunais, 2000.

PIRANGUELI, José Henrique; ZAFFARONI, Eugenio Raul. Manual de Direito Penal Brasileiro, 7ª ed. São Paulo:Saraiva, 2007.

PRADO, Luis Régis. Curso de Direito Penal Brasileiro - vol 1 – Parte Geral, 7ª ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2007.

TOLEDO, Francisco de Assis. Princípios Básicos do Direito Penal. 6ª ed. São Paulo: Saraiva, 2002.


Autor: Daiane Pimenta | Fernanda Bahia | Mohanna Helga | Sandra Lis -


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