Breve Instante



Não devo atender seu pedido. A senhora não vai suportar e eu não quero mentir. Mesmo para quem está habituado, é terrível. Faço, quando acho necessário. Mas a senhora não está em condições psicológicas para ouvir uma descrição e muito menos para ver um caso. Trate de convencer-me, Dona Sofia, de que tem razões para isso. Daí em diante, confie em mim e não queira saber de pormenores.
A paciente enxugou os olhos e balbuciou: razões, eu tenho de sobra. Apenas não gostaria de revelá-las. Só uma mulher na minha situação poderia compreender e olhe lá. Nesses momentos, os princípios morais e filosóficos são abalados e perdem a solidez que aparentam ter quando julgamos os outros. Presenciando, vendo com meus olhos como a coisa é feita, saberei dizer se estou pronta, se suportarei a culpa. Quero saber se o feto sai vivo ou se sai aos pedaços, se é jogado num balde de lixo, para onde vai. Depois, se minha decisão continuar firme, terei certeza de que não vou me arrepender.
O doutor nunca tinha visto um caso assim. Suas pacientes não perguntavam nada, nem antes nem depois. Tentavam justificar, davam explicações e não falavam em recuar. Chegavam ao seu consultório aparentemente decididas. Mesmo assim, ele pedia que respondessem a inúmeras perguntas e só aceitava o caso se em sua consciência as razões fossem suficientes. Seus critérios não eram exatamente aqueles da legislação que considerava exagerados, mas, de vez em quando, dava conselhos e se recusava a fazer a intervenção. Algumas voltavam para agradecer-lhe. Corria o risco de ser processado e não vivia inteiramente em paz. Cobrava de acordo com as posses da paciente para aliviar o incômodo moral e dizia a si mesmo que não se expunha por dinheiro e sim por solidariedade às mulheres que o procuravam. Resolveu insistir: a senhora não quer revelar seus motivos. Bem sei que não é fácil expor a intimidade. No entanto, posso garantir-lhe que suas palavras serão guardadas em segredo absoluto e que só atendo pacientes que me convencem da necessidade da intervenção. Se deseja continuar, conte-me sua história.
Sofia respirou fundo, antes de responder: desejo continuar e o senhor inspira-me confiança. Se para qualquer mulher é difícil falar no assunto, para mim, aos trinta e oito anos e mãe de três filhos, é quase impossível. No entanto, não tenho alternativa. Vou fechar os olhos e dizer: meu marido, com quem vivo há dezoito anos, submeteu-se a vasectomia já faz muito tempo. O resto posso contar-lhe de olhos abertos. Já procurei um padre e fiz minha confissão. Ele disse que em nome de Deus poderia perdoar-me, se estivesse sinceramente arrependida do pecado que cometi, mas que em hipótese alguma perdoaria a interrupção da gravidez. Seria excomungada. Para quem já tinha dúvidas religiosas, essas palavras só me afastaram ainda mais da Igreja. Os padres não têm o que dizer diante dessas situações. Espero, expondo minha alma ao senhor, ouvir palavras mais humanas. Acredite, doutor: nunca desejei trair meu marido. O que aconteceu fugiu inteiramente ao meu controle. Tudo começou quando ajudei a um aluno de dezessete anos, vítima da crueldade de seus colegas. Não o deixavam em paz em razão de seu comportamento retraído, tímido e silencioso. Obrigavam-no a abraçar algumas colegas cúmplices, enchiam seu correio eletrônico com imagens pornográficas, exigiam que ele provasse que não era homossexual, inventavam histórias, submetiam-no a humilhações de todo tipo. Fiz tudo que estava a meu alcance para convencê-los a aceitar o garoto. Pouco ou nada consegui. Resolvi então protegê-lo a todo custo, o que o aproximou de mim, muito mais do que eu desejava. Levei-o à minha casa para favorecer alguma amizade com meus filhos. O resultado foi insatisfatório porque ele não demonstrava grande interesse. Toda a sua afetividade foi desviada em minha direção e eu procurava tratá-lo como filho. Ele, no entanto, ? só vim compreender muito depois ? via-me cada vez mais como uma mulher, não como professora ou segunda mãe. Foi seu modo de olhar que me advertiu. Não cortei logo de início porque tive receio de estar interpretando mal. Só me convenci de que era indispensável conversar abertamente sobre o assunto quando ele começou a demonstrar prazer ao tocar em mim, ao acariciar minha mão. Recomendei que procurasse um psicólogo para desfazer sua fantasia. Além de recusar minha sugestão, tornou mais explícito seu verdadeiro interesse passando a fazer versos dirigidos a mim que revelavam sua paixão. Para ser inteiramente sincera, senti-me lisonjeada, o que me fez permitir que a história continuasse. Sua beleza de adolescente, antes vista com naturalidade, começou a atrair minha atenção e a despertar meu desejo. Recriminei-me por isso e ao mesmo tempo não queria admitir que estivesse acontecendo. Tentei afastar-me, inutilmente. Ele já percebera meu descontrole e agia, para minha surpresa, com grande habilidade. Seu olhar e as poucas palavras que me dirigia pareciam um pedido de socorro. Sentia-me cruel por abandoná-lo em pleno naufrágio. Certo dia pediu-me que o ajudasse a interpretar um texto. Percebi sua intenção, mas achei que não podia recusar-me. Ficamos em minha sala, no colégio, tentando trabalhar. Quando escureceu, acendi a luz e adverti-o que não poderíamos continuar. Ele tocou no interruptor, pôs as mãos em minha cintura e me disse tocando os lábios em minha orelha: se você não me quiser, não serei de mais ninguém. A frase era convencional, mas o tremor do seu corpo era contagiante. Tremi também de cima a baixo e deixei que me beijasse. Caí em mim ao girar a chave do carro. Não queria crer no que acabara de fazer. Jurei matar-me se preciso fosse para encerrar aquela loucura. Era tarde. Duas semanas depois, começou meu desespero com receio de uma gravidez. Aguardei mais sete dias e fiz exame: positivo. Ao pensar em interrompê-la, minha desgraça aumentou. Nunca aceitara tal atitude por parte das mulheres que, em minha opinião, não tinham coragem de assumir as conseqüências de seus atos. O suicídio me parecia ainda mais inaceitável, ninguém jamais compreenderia. Eis-me aqui, doutor, prestes a desmoronar. Peço que me permita entrar na sala de cirurgia para ver até que ponto suporto a dor de presenciar a eliminação de um feto. Não sei qual será a dor maior: destruir minha família ou destruir o que está em meu útero. Se eu suportar o sofrimento na sala de cirurgia, talvez tenha condição de decidir salvar minha família. É o que lhe peço. Não precisa pedir autorização a uma de suas pacientes. Entrarei como enfermeira, se o senhor concordar.
O médico permaneceu calado por alguns instantes. Parecia olhar para as próprias mãos, concentrado, imóvel. Por fim, ergueu a cabeça e, fitando o rosto da paciente, continuou em silêncio alguns segundos enquanto se deixava contagiar pela angústia, pelo tormento que via em seu semblante. Disse apenas: está bem, Dona Sofia. A senhora vai assistir a um aborto, daqui a uma hora. Sofia disse: não sei se lhe agradeça, Dr. Gabriel, mas é o que desejo.
Viu tudo, incólume, os braços sempre cruzados, do começo ao fim. Ao saírem da sala de cirurgia, o médico pôs a mão em seu ombro e lhe disse: não é o caso de dar-lhe parabéns; mesmo assim, admiro sua firmeza. Pense mais um dia e volte amanhã com a decisão. De minha parte, estou de acordo.
Sofia sentiu-se melhor nas vinte e quatro horas que se seguiram. Voltou ao consultório e comunicou sua decisão: estou pronta e tranqüila, na medida do possível. Comuniquei à minha família que o senhor decidiu operar-me para retirar um pequeno tumor no colo do útero.
O médico disse apenas: muito bem, faça esses exames e volte para marcar a cirurgia.

A família acompanhou Sofia durante a internação e lhe deu todo o apoio e o carinho de que precisava. Para a tranqüilidade de todos, o resultado da biopsia foi negativo. Voltando ao trabalho, Sofia foi informada de que Ângelo, o aluno-amante, havia se transferido para outro estado. No escaninho, uma carta em que afirmava: "Obrigado, Senhora do meu coração e da minha alma. Deste-me a vida por breve instante, o suficiente para aprender a amar outras mulheres. Vou com meus pais viver em outro estado. Talvez jamais nos vejamos. Peço desculpa por algum aborrecimento que involuntariamente tenha te causado. Fica em paz."
Autor: César Garcia


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