Relato de uma experiência: figura e fundo de uma totalidade que se chama Quilombola.



A expectativa era grande, ouvia falar, mas não fazia idéia de como era, de quem eram e de como viviam. Entrar em contato com uma cultura diferenciada me trouxe reflexões e despertou o desejo de chegar mais perto dessa gente tão diferente, ou seriam tão iguais? Refiro-me aqui aos Quilombolas, negros descendentes de escravos que fugiram de um navio negreiro naufragado na costa sul da Bahia e hoje vivem em comunidades às margens do rio Brumado.
Segundo Álvaro Villela , esse povo vem se distanciando de suas raízes históricas, o que pude conferir ao vê-los tão distantes dos costumes de seus ancestrais. O dia-a-dia deles não se difere em quase nada de qualquer comunidade interiorana, vão à roça, vendem na feira o que cultivam, as crianças vão à escola e os adolescentes já começam a se afastar para cidades vizinhas a procura de escolas mais especializadas e há até, os que já vão à faculdade.
E o que estaria eu fazendo numa comunidade de Quilombolas situada no município de Rio de Contas, na Chapada Diamantina?
Fui acompanhar o dia de um fotógrafo que tinha como missão fotografar o cotidiano dessa gente. Gente que se preparou para um dia de festa, um dia deferente, que estava ali para encenar, já que quase não faz mais parte do cotidiano deles as vivências culturais de seu povo. Gente que se embelezou para ser fotografada, para ser vista, para representar seu povo. O interessante foi o quanto que as atividades e o dia diferente puderam oportunizar aquela gente momentos de prazer e interação, que segundo eles, dia que há muito tempo não viviam.
Chamou-me a atenção muitas coisas naquele lugar, dentre elas, às mulheres que apesar das mãos ásperas do trabalho na roça, trazem a doçura do feminino estampado na pouca vaidade e na voz fina e delicada da cantoria "as mulheres é que vão mandar no mundo", cantavam e dançavam com um sorriso escancarado no rosto enquanto olhavam para os homens. Mulheres fortes, mas que mesmo após um dia na roça, não dispensam o recostar-se em algum canto da casa, na sobrinha do fim do dia, quando todos já se recolheram e tudo já foi dado conta, e então, ponto a ponto vão tecendo suas histórias de vidas naqueles fios de linha que se transformam em adornos para o embelezamento da casa e de si próprias.
O lugar me faz voltar ao tempo, reportar as novelas de época e adentrar ao mundo de ontem. A sensação de estar no meio do nada, quando na verdade estava entre belíssimas montanhas, local onde vive essa gente de expressões grosseiras, marcadas pela vida e pela história de um povo sofrido. Mas como será que se sentem? Como se percebem enquanto moradores desse lugar? Enquanto remanescentes de um povo escravizado que deixou marcas, seja na construção de cidades próximas resididas por portugueses, seja nas estradas de pedras construídas por entre as montanhas?
E o que levava esse fotógrafo e agora a mim, a esse lugar? Conhecendo apenas a parte, revelada pelo olhar deste observador, pude adentrar a totalidade da minha imaginação e movida pela curiosidade não me contive em permanecer com a parte por ele elegida, fui conhecer o lugar que me faria compor o cenário daquilo que estava no plano da fantasia. Ao vê-lo relatar sua experiência com tamanho encantamento, instigou-me chegar mais perto e me apropriar da parte que meu olhar poderia recomendar. Ao acompanhá-lo pude ter as minhas próprias impressões e até confrontar, numa grande brincadeira, as impressões daquele que seleciona, dentro de uma totalidade, a parte que mais lhe chama a atenção e porque não dizer, a que mais lhe diz respeito.
Dentro de uma linguagem gestáltica podemos dizer que "tendemos a privilegiar a parte sempre que ela responda mais adequadamente a alguma de nossas necessidades específicas", e Ribeiro ainda acrescenta, "são as motivações internas do observador que o levarão a descobrir um objeto que passaria despercebido à maioria das pessoas (2006, p. 154; 155).
Antes da fotografia as imagens eram reproduzidas por desenhos e gravuras. Desta forma, a mão foi liberada, cabendo ao olho a responsabilidade de registrar, com a máxima fidedignidade, aquilo que ver (RODRIGUES, 2007). Para o fotógrafo, o registro que ele faz impõe fidedignidade ao que ele seleciona, dentro da sua concepção do que melhor representaria o que ver, e que ele, apenas ele, naquele momento, estabelece contato. Quando fotografa, escolhe um foco especial de interesse que se destaca contra um fundo indistinto. O que sobressai é a figura, tendo todo o resto, como fundo (Zinker, 2007).
"No congelamento de tempo ? momento único em que se toca o obturador ? surge toda a complexidade e o fascínio da fotografia, tornando-a uma forma diferenciada de formação de imagens: o presente, tornado passado após o obturador ser acionado, perpetua-se para o futuro. Um retrato geralmente sobrevive ao retratado, ao fotógrafo e aos equipamentos fotográficos que o tornaram possível; a cena documentada não se repetirá, o momento visível é irreversível" (Ribeiro, 2007, p. 39).
A fotografia, então, é o canal de comunicação entre o presente e o passado (SANTOS, 2004), e é desta forma que Álvaro Villela pretende, a partir do olhar do artista, retratar a vida dos Quilombolas, desempenhando assim, um importante meio de acesso e contato a esta realidade.
"Fotógrafo curioso", como se intitula, "homem do mundo", movido pela curiosidade e inquietação, pela necessidade de desbravar modos de vida. Ao fotografar, vai na direção daquilo que o instiga, vai de coração se buscar no que faz. Este é Álvaro Villela, documentarista de imagens, que vem desenvolvendo junto a este povo um trabalho de resgate da história e da alma humana. Segundo Ribeiro, "fotos resgatam memórias, recuperam percursos cronológicos e existenciais. E podemos também ir refletindo sobre a linha da vida e restaurando algumas conexões (2007. p. 38).
Diante da oportunidade que a mim era oferecida, não podia me furtar ao direito e tolher o meu olhar enquanto terapeuta que sou. Dentro do contexto a mim apresentado, tudo foi atentamente observado, ora o fotógrafo, ora o fotografado, se mostrando a mim "como uma possibilidade de inclusão perceptiva" (RIBEIRO, 2006, p. 123). Desta forma, posso trazer a totalidade das coisas, escolhendo a cada momento o que seria de importância como figura e como fundo, alternando-os num processo significativo, onde "os olhos vêem as partes e a consciência apreende a totalidade. (RIBEIRO, J., 2006, p. 176).
A fotografia vem sendo objeto de trabalho dos psicólogos e arteterapêutas, sendo utilizada como instrumento de acesso a emoções e memórias inconscientes. Então por que não unir psicologia e fotografia num mesmo cenário, ampliando, desta maneira, a percepção daquilo a que se pretendia. E porque não dizer também que este trabalho tem um cunho terapêutico, mesmo não sendo este o seu objetivo e mesmo que o fotógrafo não tenha consciência do que ele causa naquele que por ele é fotografado.
"Seu olhar treinado está condicionado às formalidades de sua profissão. Em geral os fotógrafos têm dificuldades em abstrair as condições técnicas e estéticas que fazem parte do seu fazer cotidiano para conseguir entrar no espaço do ?outro?, da fotografia como forma e conteúdo que não sustenta verdades nem valores próprios, da fotografia como puro estímulo e suporte de projeções subjetivas diversas" (RODRIGUES, 2007, p. 160).
Mas o que seria do trabalho fotográfico se não fosse à sensibilidade também presente na alma do artista, que apesar do seu olhar treinado, consegue estar pleno para o outro e percebê-lo na sua inteireza. Para que esta ação possa ser realizada existe a necessidade de uma proximidade, de estabelecer contato, de estar em relação com, de se mostrar para o outro para que este possa se sentir a vontade e se deixar ser fotografado. "O contato pode estar no olhar, na fala, no ouvido, no gosto, no movimento" (RIBEIRO, J., 2006, p. 92-93), contato este, que Álvaro Villela pratica com desenvoltura, se misturando aquela gente de hábitos simples, seja no bate papo, na brincadeira ou na hora do almoço "gente boa, esse cara!". É notória a relação de confiança estabelecida com o povo daquela comunidade, que já se desnuda com facilidade para este profissional.
Ao partilhar com o fotografado a imagem resultante na câmera, uma relação de troca é instituída, pois, neste momento é dada a oportunidade de notar a si próprio - o que é altamente revelador - além de poder se observar a partir do olhar do outro. Este é um momento em que o fotógrafo pode ou não estar atento ao que acontece, ampliando a dimensão da técnica de fotografar com a de um observador de gente "o que me leva a crer que os mesmos não se olham?ou não se vêem. Houve até uma senhora, negra dos olhos claros, que já tinha ouvido falar da cor dos seus olhos, mas não tinha certeza". Fotografias "são aliadas fundamentais para o resgate da autoimagem e autoestima, principalmente entre as camadas excluídas da população, pois funcionam como antídoto à invisibilidade social" (RIBEIRO, E., 2007, p. 37). Invisibilidade que desaparece diante da imagem projetada na câmera fotográfica, pois ao se verem, demonstram sinais de uma percepção sobre si mesmos, diferente da percepção do fotógrafo, por exemplo, que trás a si próprio ao buscar a imagem do outro. Demonstrações de vergonha e de espanto, de menos valia, assim como de grandiosidade são percebidos diante do que é visto "é, a velhinha ta bem".
"O ato fotográfico ? envolvendo as condições de inscrição da imagem pela ação da luz e o objeto fotografia daí resultante ? torna-se um espelho capaz de refletir a beleza da diversidade humana" (RIBEIRO, E.,, 2007, p. 38 ? grifo do autor). Ao retratar cada personagem dessa história, individualmente, o que aqui chamarei de "Retratos", por apresentar formato retangular das faces, essa diversidade passa a ser inegável ampliando a dimensão do trabalho desenvolvido e produzindo efeito surpreendente ao serem vistas seguidamente, uma após a outra.
"A importância da fotografia no processo de fabricação de identidades individuais e familiares foi experimentada desde cedo. Possuir uma foto de si mesmo tornou-se uma forma de se reconhecer, ou, ainda mais importante, de se fazer reconhecido diante dos outros" (RODRIGUES, 2007, p. 162-163).
Mas não é só o fotografado que é reconhecido nesse processo, o fotógrafo, ao se revelar surpreendente diante daquilo que faz, além de se reconhecer no seu trabalho, passa a ser reconhecido pelo que produz. Sua personalidade fica registrada em suas imagens, o que o caracteriza no seu trabalho.
Sendo assim, o trabalho fotográfico pode ser um excelente recurso no processo de resignificação, pois resgata sentimentos de autoestima e autoconfiança daquele que é retratado. As fotos "modificam e ampliam nossas idéias sobre o que vale a pena olhar e sobre o que temos o direito de observar" (Ribeiro apud Sontag, p. 39 ? grifo do autor). "Posso arriscar dizer que é um papel impregnado de imagens que, com o olhar do observador, podem brincar alternadamente, de figura tornar-se fundo e fundo tornar-se figura" (CIORNAI, 2004, p. 231).
Podemos a partir das fotografias revisitar nossa história e como diz Kossoy(2007): "Colecionar esses pedaços congelados do passado permite acessar, a qualquer momento, trechos da trajetória de vida. Ao olhar uma fotografia, descongelam-se seus conteúdos, permitindo a narrativa de histórias de vida, acrescentando, omitindo ou alterando fatos e circunstâncias retratados na foto. Fotografias são o start da lembrança, ponto de partida para narrativas de fatos e emoções, possibilitam um complexo e fascinante processo de recriação/ construção da realidade" (apud RIBEIRO, E.,2007, p. 39 grifo do autor).
Os momentos vividos nesta comunidade jamais voltarão, sabemos disso, mas a fotografia contará essa história nos permitindo o revisitar desses momentos e, principalmente, abrirá espaço a visitação, permitindo o acesso daqueles que lá não estiveram. Este é o seu papel.
Por meio deste trabalho, Álvaro Villela possibilitará a outrem a oportunidade de também chegar perto desse povo, moradores das comunidades da Barra e do Bananal, e a partir dos fragmentos por ele selecionado, adentrarem neste universo de aprendizagem que é a vida na sua mais ampla diversidade.
Obrigada pelo convite e pela oportunidade de uma vivência tão rica e grandiosa!



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REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

? RHYNE, J. Arte e Gestalt: padrões que convergem. São Paulo: Summus, 2000.
? RODRIGUES, S. O uso da fotografia e do vídeo em arteterapia. In: PHILIPPINI. A. (org). Arteterapia ? Métodos, Projetos e Processos. Rio de Janeiro: Wak, 2007.
? RIBEIRO, E. N. Cerzindo histórias com fios de luz. In: PHILIPPINI. A. (org). Arteterapia ? Métodos, Projetos e Processos. Rio de Janeiro: Wak, 2007.
? RIBEIRO, J. P. Vade - Mécum de Gestalt-terapia: conceitos básicos. São Paulo: Summus, 2006.
? SANTOS, R. A. Fotografia: ressignificando a própria história. In: CIORNAI. S. (org). Percursos em Arteterapia: arteterapia gestáltica, arte em psicoterapia, supervisão em arteterapia. São Paulo: Summus, 2004.
? ZINKER, J. Processo Criativo em Gestalt-terapia. [Título original: Creativ process in Gestlt therapy; tradução de Maria Silva Mourão Netto]. São Paulo: Summus, 2007.


Autor: Elen Paesante


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