Retornos



Parei em frente à casa e fiquei olhando. Haviam feito uma pequena modificação em sua arquitetura, inclusive na cor, mas isso não impediu que minhas lembranças se aflorassem. Eu podia ver minha mãe aguando as plantas dos vasos da garagem e o velho Antoizim de Paula abrindo o capô de seu "fusca" verde e retirando dali abóboras, milho verde e frango caipira. Às vezes vinha até um leitão piau dentro de um saco de linhagem, pra não sujar o carro. Era mais um retorno das "diligências" do perseverante oficial de justiça vindo da zona rural. Ele aproveitava essas oportunidades para comprar os produtos na fonte e às vezes passando por sítios de amigos ganhava os víveres. Acho que por isso é que não se aposentara, pois tempo de serviço havia de sobra, mas sua vida era prazerosa daquela maneira. Aposentar seria desprezar a felicidade. 

Enquanto estava ali viajando em minha nostalgia, surgiu um senhor à porta me observando com curiosidade.

- Deseja alguma coisa? – Sua pergunta trouxe-me de volta ao tempo presente.

- Bom dia, me desculpe mas é que vivi nessa casa a minha adolescência e parte de minha juventude, isso há uns vinte e cinco anos atrás. – Expliquei.

- Está tudo justo? Perguntou ele dando uma olhada para a casa e voltando a mim.

- E perfeito! Respondi. Percebendo que estava diante de uma pessoa de bons costumes o novo dono da casa não teve receio de convidar-me a entrar.

- É um prazer tê-lo aqui. Entre, veja a casa por dentro, fiz uma pequena reforma mas não mudou muita coisa. – Atendendo ao gentil convite fui entrando, com o coração um pouco acelerado pela emoção. Um pouco afoito perguntei se poderia ver o quintal. Na minha memória estava o fundo cercado por tela grossa onde eram engordados os frangos e piaus, em um espaço gramado. Decepcionei-me. Havia grama sim, mas em todo o quintal circulando uma pequena piscina. Pedi então para retornar à sala, onde estava a mais emocionante das recordações. Ali fiquei estático e as cenas do fatídico dia começaram a rodar em minha mente. 

O velho oficial de justiça ao voltar de uma de suas diligências havia se acidentado, sofrendo traumatismo craniano que lhe tirara todos os movimentos e a fala. Mas, homem persistente, conseguia comunicar-se com os olhos e às vezes arriscava dizer alguma palavra. Sem êxito, transmitia uma leve expressão de ira. Ali mesmo onde eu estava, aconteceu o fato mais significativo que me ligava às recordações do velho serventuário da justiça. Na manhã daquele dia a televisão transmitia a posse do governador eleito Íris Resende, que selava de maneira brilhante e elegante, a reconquista de seus direitos políticos. O repórter ainda anunciava o início, citava as autoridades presentes, quando senti que Antoizim estava ofegante no quarto. Entrei ali e fiquei frente a ele tentando entender o que se passava. O velho arquejava e lançava o olhar em direção à sala, voltava o olhar para mim e em seguida novamente em direção à sala. Entendi tudo. Voltei, posicionei a cadeira de fios diante da televisão, ajeitei as almofadas sobre ela, fui ao quarto, peguei-o no colo e o coloquei assentado. Fiquei de lado observando-o. Ele se acalmou fitando a televisão, profundamente concentrado. No momento do discurso de Íris, duas lágrimas desceram suavemente em sua face. Peguei a toalha e as enxuguei. Orgulhosamente ele testemunhara o retorno vitorioso de seu ídolo à vida pública. E feliz também pelo acidente ter ocorrido após ele ter contribuído com seu voto àquele histórico momento. 

À tardezinha seu quadro de saúde começou a se complicar e foi se agravando em tempo rápido. Então providenciei uma ambulância e rumamos para Goiânia, eu sentado ao seu lado. Após uns trinta ou quarenta quilômetros senti seu último respirar. Anunciei sua morte ao motorista da ambulância que me explicou que, por normas, teríamos que chegar até Goiânia para os procedimentos legais. Dois dias depois sepultamos Antoizim de Paula no cemitério de Pontalina. 

Hoje, remexendo sua velha pasta que mamãe guardou, pude ler algumas cópias de mandatos, intimações e ver duas fotos: uma de seu filho Alonso em uma cama de hospital quando, ainda estudante, fora baleado por militares em frente ao Cine Teatro Goiânia. Escapou e aposentou-se na CAIXEGO. A outra é de um comício político na Praça do Bandeirante, onde se vê Peixoto da Silveira e o casal Íris em campanha. 

Antoizim de Paula foi meu padrasto. Melhor: meu pai presente.  


Autor: Antonísio Siqueira Borges


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