RICARDO GUILHERME DICKE: SUA LITERATURA E O COMPROMISSO COM SEU TEMPO



Ederson Fernandes de Souza
Mestrando em Estudos Literários - UFMT

Ricardo Guilherme Dicke é um autor de vasta produção literária e de reconhecimento nacional, mas ainda pouco lido em território mato-grossense. Seu percurso literário teve início ao escrever Deus de Caim (1968), o qual recebeu o prêmio Walpmap (1968), tendo como jurados João Guimarães Rosa, Jorge Amado e Antonio Olinto que afirma no prefácio do mesmo livro:

Lá das bandas do Mato Grosso chega-nos agora esse estranho romancista, esse narrador sem peias, talvez ligado ao sentimento do absurdo que abala a estrutura da ficção de hoje. Eu estaria inclinado a ver, em Ricardo Guilherme Dicke, um executor marcusiano em matéria de literatura, principalmente ao surgir, como surge, numa lufada lúcida de incoerência aparente, nas letras brasileiras. (Deus de Caim, 1968 p. 9).

O uso da seguinte frase: "Lá das bandas do Mato Grosso..." nos remete, de antemão, em qual contexto estava inserido Dicke, pois nessa época, ou até os dias de hoje, Mato Grosso era visto como, ou ainda é, um local isolado distante da civilização e desprovido de qualquer qualidade artística, cultural e econômica, mesmo hoje possuindo um fluente mercado de agronegócio, que infelizmente é lucrativo para uma pequena parcela da população do estado de Mato Grosso.
Não afirmando que Antonio Olinto tenha se referido ao nosso estado com desdém, mas sim, significando resquícios de como essa região era vista pelas pessoas das áreas litorâneas e, de certo modo, ainda é observada dessa maneira.
Podemos, então, imaginar a dificuldade de se trabalhar com arte nessa época, pois mesmo na atualidade artistas, literatos e produtores culturais reclamam do pouco investimento, na maioria das vezes nenhum.
Dessa forma, onde está o compromisso de Ricardo Guilherme Dicke? Em que consiste seu engajamento social, que para alguns não existe, pois é considerado engajado aquele que levanta uma bandeira em defesa disso ou daquilo e vai para o enfrentamento se, necessário, para luta armada.
Para discutir esse assunto temos que recorrer a alguns resquícios históricos, esses apresentados por Hilda Gomes Magalhães (2005), ao se referir à produção literária de Dicke, pois em seu estudo histórico social das obras desse autor, observando a criação estética dickeana ela faz um paralelo de conflitos entre pequenos latifundiários, com cultivo de subsistência, com os grandes fazendeiros, esses municiados pelo poder público.
Dessa maneira Magalhães (2005 p.194-195) afirma que os pequenos proprietários de terra eram:

Assassinados ou expulsos por capangas contratados pelas empresas, esses habitantes resistem às ações de repressão e de expulsão, enquanto que outros desistem de suas terras e saem à procura de outra gleba onde viver. Há ainda aqueles que migram para a cidade passam a viver à margem da sociedade e em condições de miséria.
É dentro desse contexto que toma corpo a literatura de Ricardo Guilherme Dicke. Ela ilustra as relações de poder que se desenvolvem na região e que caracterizam pela presença ostensiva e repressora do Estado e do empresariado. É um estado que se revela eficaz para os ricos investidores na região, que dispõem de créditos governamentais especiais, e inexistente (ou quase) para os menos favorecidos.

Diante dessa proposição de Magalhães (2001) notamos que a literatura de R.G. Dicke apresenta esses substratos sociais na sua construção estética, pois quando lemos seus romances somos transportados para um mundo alucinante, perceptível na descrição feita pelo narrador de Toada do Esquecido (2006, p.12) na louca travessia dos personagens da obra, pelo sertão mato-grossense:

[...] enquanto a Kombi gemia na subida com seu barulho que enjoava nos ouvidos, num lugar deserto como sempre, cheio de queimadas por campos carbonizados de ambos os lados e grandes montes pretos se viam e tocos enegrecidos a se perder de vista, até os horizontes onde estacionavam as nuvens enormes e negras que prenunciavam chuvas, calados, magnéticos, enigmáticos [...]

O excerto apresenta uma situação de destruição e abandono, pois esse lugar deserto, no campo imagético, foi ocupado antes por uma civilização, por uma sociedade e destruído, talvez, por quem nela chegou logo depois. Assim se por um lado podemos relacionar essas imagens apresentadas pelo narrador, com a situação histórica da região de Mato Grosso, onde a luta pela terra foi marcada pelo assassinato de pequenos agricultores, por outro nos é apresentado o homem perdido dentro de si mesmo, pois esse sertão de ninguém pode ser relacionado com o conflito existencial de cada indivíduo, onde tais discussões saem do âmbito regionalista para esferas universais.
E com essa temática Dicke rompe com estereótipos que o enquadram como um escritor regionalista, esse rompimento se dá devido à dificuldade dos teóricos em encontrar para sua literatura um "estilo" literário unívoco, como costumávamos encontrar no fim do século XIX e metade do XX.
Outro fator que contribui ainda mais para essa "confusão" é sua aproximação estética com a literatura Latino-americana, que, com o boom literário da década de 60 impôs ao mundo uma nova maneira de se fazer literatura, essa por sua vez, se opôs a uma literatura que promovia e divulgava os preceitos da burguesia.
Diante disso, a literatura produzida nesse período apresentou a "voz" do marginalizado, do excluído, mas isso foi feito não buscando um realismo restrito e sim o mágico, o fantástico, onde as imagens falavam e transfiguravam os conflitos de poder na América hispânica, desde as ditaduras e a constante invasão da política dos países de primeiro mundo, especialmente os Estados Unidos.
Podemos fazer referência à discussão desse tipo de literatura, a qual Dicke se identificou, pois ele faz uso constante desse alicerce literário que os escritores latino-americanos usaram e usam, ou seja, na mistura do realismo mágico e o fantástico, pois as duas literaturas apresentam a realidade às avessas.
Ao se referir a essa proximidade do autor em questão, Vera Maquêa (Dos Labirintos e das águas: Entre Barros e Dickes 2009, 193) afirma que: "As literaturas na América Latina inspiraram muitos escritores a discutir o despotismo e o autoritarismo na literatura".
No caso de Ricardo Guilherme Dicke isso não foi diferente, mesmo ele não apontando diretamente para tais acontecimentos sociais, seus romances refletem esses pressupostos, em que se discute não só o controle político, mas também do fazer artístico.
Quando ele apresenta esse jogo de poder percebemos que:

"[...] Dicke, em seus romances ?pune? os opressores através da narrativa mítica, em que os capitalistas, os estrangeiros, a cultura modernizadora das metrópoles nacionais, os donos de fazenda, os padres, os ditadores sofrem as conseqüências de seus atos através dos elementos sobre-humanos". (Barbosa, 2005 p.65)


Barbosa (2006) ao apresentar esses pressupostos aproxima ainda mais a escrita dickeana dos escritores latino-americanos, pois o principal conflito entre os paises desenvolvidos e os subdesenvolvidos se fundamenta na exploração econômica. Essa temática está presente na escrita de R.G.Dicke, simbolizada na punição dos poderosos, como está descrito no excerto.
Para apresentar esses conflitos,onde o homem se perde,fica sem rumo ou é explorado, expulso da sua terra, Dicke faz o uso constante de imagens, ora do sertão mato-grossense ora de seus personagens míticos. Segundo Magalhães (2001, p.214):

O sertão dickeano é sustentado pelos conteúdos do inconsciente, traduzidos no sobrenatural, no espaço fantástico, no território mágico, enfim um sertão povoado de pessoas enlouquecidas, imagens surgidas do inconsciente e figuras mitológicas bíblicas. Um sertão-angústia, um sertão-loucura, ao contrario da versão roseana, sublimada pelo questionamento racional de Riobaldo,portanto,um setão-resposta,um sertão-apaziguamento.

Diante dessa afirmativa de Magalhães (2001), percebemos em Toada do Esquecido (2006), que esse universo ficcional, além de ser povoado por esses elementos, levanta-se uma hipótese de que o personagem El Diablo,que controla seus companheiros do início ao fim da narrativa,pois ele e seus comparsas roubaram um determinado ouro no garimpo O Esquecido e navegam em círculo e os obriga a usarem máscaras:

Ninguém pode tirar as máscaras antes de chegar a porto seguro: foi a maldita combinação entre nós aquela noite: quem tirar,morre.Serão loucos ou ainda é Carnaval? É a lei do Cão. (TOADA DO ESQUECIDO, p.13).


Esta "ditadura" comandada por El Diablo, serve-nos de metáfora, ou seja, remete-nos a toda a dominação perpetuada ou pelos paises ricos ou na oposição entre sertão e litoral, características das obras dickeanas, pressupostos que demarcam o desenvolvido e o subdesenvolvido, temática abordada tanto por R.G. Dicke como pelo os escritores da América Latina.
Isso nos leva a tentar entender o porquê dessa proximidade estética, Barbosa (2009, p.160) levanta a seguinte hipótese:

Sua literatura também sintoniza com diversas manifestações latino-americanas, como Gabriel Garcia Márquez, Juan Rulfo,Alejo Carpentier,no sentido de que há um opção na narrativa pela cultura do marginalizado,por aquilo que mais significativamente representa a cultura e o sentimento latino-americano,pela forma de conduzir a narrativa,etc.


Mas tanto a postura de Ricardo Guilherme Dicke como a dos escritores da América latina já foram questionadas, um dos casos de relevante importância é do estudante Jorje Rojas em uma mesa redonda na Universidade Católica de Valparaiso no Chile (1971), quando este questionou os escritores latino-americanos, que estavam nesse encontro, sobre o compromisso de cada um com o seu contexto social, afirmando o jovem estudante, que Cortázar não poderia ser considerado um escritor hispano-americano, pois primeiro não morava em seu país de origem, a Argentina, e segundo, o que ele escreve não discute os problemas sociais de sua pátria mãe, então, sua literatura não tem sentido.
Em resposta sobre o compromisso dos escritores, da América Latina, Alberto Escobar afirmou:

"Pero yo encuentro lo maravilloso en los libros,cuando son literatura, y cuando se justifican por ser literatura,sea cualquiera el tema,en la medida en que construye un mundo y es coherente desde adentro,trate del amor o de la muerte,o trate aparentemente de una inicidencia banal,pero capaz de descubrirnos algo."(EL COMPROMISO DEL ESCRITOR,p.57)


Isso que disse Escobar é relevante, pois nessa mesa redonda outros escritores tomaram partido em defesa de Cortázar, um deles foi Carlos Martinez Moreno escritor colombiano:

Hay uma cosa muy importante. Todos los que creen que la literatura es um subproducto,empiezan por pedirle que no sea literatura. Ese joven que habló no conoce a Cortázar o no há penetrado en Cortázar se dice o que dice él.(EL COMPROMISO DEL ESCRITOR ,1971,p.46)

Essa discussão acerca do poder da literatura e o compromisso dos escritores Latino-americanos, na Universidade Católica de Valparaiso no Chile (1971), é o reflexo da inquietude do homem em busca de respostas, pois o estudante Rojas questionava os escritores que em sua maioria viviam exilados em países da Europa ou nos Estados Unidos e ,assim, buscava entender como eles conseguiriam se posicionar politicamente em suas obras esquecendo do mar ditatorial que assolava esse continente.
Nesse contexto também surgiu a literatura de Ricardo Guilherme Dicke, sendo homem do seu tempo, e, com uma visão filosófica social, soube discutir em seus romances essa busca frenética do homem em tentar se encontrar.
A apresentação do uso das máscaras, na narrativa, pode ser observada como um mascaramento social, onde existe um véu que encobre os acontecimentos de nosso cotidiano, semelhante às ditaduras da América Latina,onde todos sabem o que está acontecendo,sabem quem são os opressores,mas de comum acordo isso é mascarado. Fato também acontecido em terras mato-grossenses na década de 70, pois o conflito por terras foi grande, segundo análises de Magalhães (2005) como discutimos em linhas anteriores.
No caso da obra Toada do Esquecido, a crítica não mais redunda apenas sobre conflitos territoriais, mas no distanciamento e estagnação do estado, ainda que a narrativa sendo lida no século XIX ela ainda remete um atraso em relação ao litoral, temática muito discutida em seus romances. Se os escritores Latino-americanos atacavam e criticavam os países de primeiro mundo, Dicke o fazia entre a oposição do litoral e o sertão, que podemos chamar de periferia brasileira.
Afirmar que a literatura de Ricardo Guilherme Dicke é apenas mitológica, labiríntica e difícil leitura, significa dizer que ela apenas é um código indecifrável, que não acontece. Pois segundo Gilvone Furtado Miguel no (Prefácio Madona dos Páramos 2008, p.7):

Para ler Dicke, é preciso emaranhar-se em sua criação, não no sentido de ser enrolado por laços desconhecidos até ser imobilizado, mas no sentido de ser envolvido pelo prazer da aventura do texto, que nos desafia a "fazer trilhas" rompendo touças de ramagens fechadas, pisando terrenos áridos e pedregosos, mas buscando satisfazer a curiosidade instigada nas encruzilhadas dos diversos caminhos do homem riscados pela linguagem criadora na geografia da densidade narrativa de sua literatura-sertão.

Diante desse e de outros argumentos podemos afirmar que Ricardo Guilherme Dicke é um autor engajado e compromissado com seu tempo e espaço e, semelhante a os escritores Latino-americanos, faz de sua literatura um "alto falante" para assuntos que inquietam cotidianamente os seres humanos, construindo dentro do universo do livro um mundo paralelo ao nosso, não para apresentar respostas, mas sim reflexões.
Portanto aceitar o engajamento do autor, neste caso R.G Dicke nas suas obras, segundo as proposições de Denis (2002) que discute o compromisso dos autores nos parâmetros de Jean-Paul Sartre é pertinente. Mas o teórico também nos apresenta os pressupostos de Roland Barthes, que defendia uma alternância entre arte pura e da arte social, afirmando que a problemática do engajamento ultrapassa de longe a perspectiva sartriana, essa postura nós encontramos nas narrativas dickeana.

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

BARBOSA, Everton Almeida. A transculturação na narrativa de Ricardo Guilherme Dicke. 2006 1... f. Dissertação (Mestrado em Estudos Literários) - Universidade Federal de Mato Grosso. Cuiabá. MT, 2006.

CARVALHO, Juliano Moreno Kersul de. Do sertão ao litoral: a trajetória do escritor Ricardo Guilherme Dicke e a publicação do livro "Deus de Caim" na década de 1960. 2005 119 f. Dissertação (Mestrado em Estudos Literários) - Universidade Federal de Mato Grosso. Cuiabá. MT, 2005.

DENIS, Benoît. Literatura e engajamento: de Pascal a Sartre/ DENIS, Benoît; tradução Luiz Dagobert de Aguirra Roncari.-Bauru,SP:EDUSP,2002.

CUADRA, René Jara. El compromisso del Escritor. Valparaiso. Chile: Ediciones Universitárias, 1971.

DICKE, Ricardo Guilherme. Madona dos Paramos. Cuiabá-MT: Carlini& Caniato; Cathedral Publicações, 2008.

_____________________Deus de Caim. Cuiabá: Gráfica Sereia, 2006.

______________________Toada do Esquecido e Sinfonia Eqüestre. Cuiabá-MT: Carlini& Caniato; Cathedral Publicações, 2006.

MACHADO, Madalena e MAQUÊA. Vera. Dos labirintos: Entre Barros e dickes Cáceres-MT, Editora Unemat, 2009- 206 páginas.

MAGALHÃES, Hilda Gomes. Historia da literatura em Mato Grosso (Séc. XX). Cuiabá: UNICEN Publicações, 2001.

Mapas da Mina: estudos de literatura em Mato Grosso-Mário César Silva Leite (org.). Cuiabá: Cathedral Publicações, 2005.
Autor: Ederson Fernandes De Souza


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