Um GB



Não pensava em nada negativo aquela menina. Mesmo que sua vida romântica sempre tenha estado uma confusão, continuou a acreditar que tudo era um processo de aprendizado incrível. Acreditava sim. Acreditava. Era o que repetia mentalmente sempre que se achava numa enrascada sentimental. Refletia sobre seus antigos namoricos de portão, de praça, de cachoeira, de trânsito, de academia, de escola. Agora, a menina de dentes e cabelos altos, se reerguia da última tentativa que fizera de encontrar um bem-querer. Reergueu-se em meio à ira e à racionalidade extrema. Característico seu era a tomada de atitude. Ser ela mesma era difícil, ainda mais quando alguma de suas amigas a chamava de doida quando ficavam sabendo das loucuras recém feitas. Assemelhava-se a um homem independente; tinha seu próprio dinheiro e, às vezes, sua doce brutalidade.
Longe da capital do país e, ao mesmo tempo, muito próximo, morava. Todas as vezes que pegava sua "mala e cuia" (herança do dialeto averno) e entrava no seu carrinho compacto preto, sabia que somente retornaria ao conforto do lar de dois andares, no mínimo, dez horas depois. Isso era a rotina da pessoa de vinte anos. Morar a vinte quilômetros da capital do país não lhe gerava maiores complicações. Chegar de madrugada e sozinha em sua chamada cidade satélite, coisa de Distrito Federal, era prática recorrente. O maior problema era encontrar algum rapaz disposto a levar e buscar, enfrentar o gasto de gasolina para agradar a pequena. E ela quase que se importava com mais esse agravante. Ainda bem que existia o prazer em conduzir aquele carrinho econômico. Tinha de ser econômica também a moça, para piorar sua situação. Sempre que ia abastecer a caranga doía-lhe o peito de uma forma incrível. Seu pai já havia lhe pedido para não economizar com meio de transporte. Ser funcionário público permitia a papai ser tranquilo com relação às finanças. Brasília era, então, a capital dos concursos públicos.
Por mais que lhe atinasse a vontade de ganhar muito dinheiro, desanimava-lhe rapidinho ver aquela porção de gente querendo a mesma coisa. Ao mesmo tempo em que lhe animava a mesma situação: se todo mundo quer, é porque é bom, disso ela tinha certeza. Essa questão da profissão tornava-se festejo em sua mente: muito barulho (vozes, ruídos, batidas), muitos fogos de artifício (a cor amarela da atenção, a vermelha do "não pode" e a verde do "siga em frente") e milhares de neurônios carregando mochilas nas costas. Há de se pensar em toda a problemática das profissões e do funcionalismo público. Ela repetia a quem lhe perguntava se realmente queria ser professora de língua portuguesa. Todas as respostas a essa pergunta já tinham perdido a lógica. A menina em profissões era um anacoluto, por enquanto.
Naquele dia de chuva, reencontra um futuro servidor público cujo codinome é Skies. Lembra-se de quando se sentaram na mesa redonda e conversaram por uns cinco minutos. E como foram bons aqueles cinco. Ela estava no período de sua vida que denominou, a posteriori, de "perda de tempo". Nesta ocasião, namorava outro Skies. Havia muitos Skies nesta festa. A grande maioria deles era da Baleia. Mas o Skies-cinco-minutos adquiriu outro sentido depois do dedinho de prosa festal. Ele já tinha preparado uma tapawer com açaí para ela em uma ocasião anterior. Até chegou a assisti-la em uma peça sem recursos, sem profissionalismo e sem originalidade no Carnaval do ano de 2009. Tento me lembrar de mais detalhes daquele dia em um apartamento das quadras cem do Plano Piloto.
Brasília era sua cidade do coração. Aquela cidade foi feita para o céu. A natureza tinha seu espaço entre os monumentos, os eixos rodoviários e as tesouras nada escolares, pois de didáticas e de fácil compreensão não tinham muito. Os canteiros centrais quase não tinham pedestres. Nunca foi uma cidade para pedestres, para o pé e a perna, e hoje os carros procuram espaço onde já não existe. Menina sempre pensa o quanto sua vida seria diferente caso Papai não lhe tivesse dado o carmãobovino. Ela era a cara de Brasília, reconhecidamente. Quando em vez, passava pela Estrutural e sentia o regredir da urbanidade, do saneamento básico e da modernidade ao contar o rodômetro. Pelo menos ela tinha consciência crítica da realidade, ressaltava, como se isso fosse muito importante.
Quer uma cidade mais moderna que Brasília? Tem sua estrutura baseada em um avião. Menina custou a entender isso. Ouvia, quando em vez, alguém comentar, feliz, de ter tido a sorte de morar em uma cidade planejada. Poderia ter sido baseada em uma embarcação do século XIX e ter o mesmo efeito no país? Talvez perderia muito de sua altitude e velocidade. Muito veloz era a vida na capital. Entrar no Eixão era sinônimo de rapidez, quem entra, supostamente, quer ir mais rápido, quem não segue a velocidade, acaba sendo inconveniente. Menina é exemplo de rapidez-capital. Sua vida acontece muito rápido. Sempre tem quem lhe pergunte as novidades, e ela mal sabe por onde começar. Tudo é história e reflexão filosófica. Tudo é emocionante. Só se lembra de um fato em sua vida em que não achou tanta emoção: o namoro com um dos Skies. Aquele fato sim, nem mesmo descendo 10 metros em queda livre. Pois era assim mesmo, logo que sua nau Skies "perda de tempo" naufragou, se achega ao Skies-cinco-minutos que conhecera há pouco. Ele também tinha velocidade no nome: tempo escasso, nomeado em concurso público, em processo de formação em curso superior, um tanto descrente, um tanto frustrado, muito ativo e movido à música e tecnologia. Com tantas características a festejar, convidou-o a uma festa. Menina transportava para seus relacionamentos o que era seu cotidiano: não esperava muito, logo fazia. Era quem primeiro respondia às perguntas em sala, saía na frente no trânsito e fazia o trabalho da universidade com antecedência o suficiente para não se preocupar tanto. Ela cogita a possibilidade de Papai lhe ter dado de beber, quando criança, na jarra, mililitros de atitude. Há a necessidade de uma terapia mais rígida. A negação de instintos básicos é a primeira coisa que ela fez. Começa hoje com o propósito de ser diferente. Durará um mês. Vá lá, Menina. Começa a se acostumar com seu modo de ser somente agora, aos vinte. Se alguém lhe desse o poder de desejar qualquer coisa no mundo, ela desejaria uma máquina para ler pensamento alheio. Mas só por algum tempo. Menina até gosta de não saber. Gosta. Ama.
Menina feia, triangular e desnivelada. Em um GB de memória RAM do laptop, ela tinha a mania, ainda assim, de deletar arquivos para, simplesmente, não guardar coisas desnecessárias. Ela não deletou Skies-cinco-minutos. Deixou-o de molho no banho-maria (conselho de sua mais nova amiga de infância). A tão esperada data daquela festa para a qual o chamara já tinha passado. Houve tanta expectativa para ser frustrada depois. Já que Cinco-minutos não tinha um minutinho sequer para ligar para Menina, ela resolveu: luta contra seus próprios instintos atitudinais com os homens que lhe interessa. É isso. Está tentando apagar de sua memória o que se tornou um hábito. Controla-se para não mandar mensagens no celular, para não dar uma ligadinha, para não mandar mensagens no Orkut. Além de ter de controlar os gastos, os horários, a alimentação, Menina estava controlando a si mesma. Isso não é tão cruel quanto se pode imaginar. Ela sabia que teria bom resultado. O senso comum lhe dizia que abrir de mão hábitos ferrenhos demonstrava seu desejo em mudar. Cansou-se de sofrer as mesmas consequências, e este era o primeiro passo para a nobreza. Existe, porém, algo importante a se considerar: diferentes são a máquina e o homem. A tecla que deletava as coisas em Menina era o chorar. Em Skies era o xingar, quem sabe. Ela estava acostumada a arriscar definições sobre ele; esta era mais uma. Arriscou bastante nos telefonemas que achou super fora de hora. No último que deu, suou bastante Menina.
Vamos beirando a existência de uma pessoa querida por todos ? Menina filha de Papai. Ela é a inocência em pessoa, talvez. Papai a chama desta forma, inclusive. Por mais que se ache madura, madura, madura, não consegue jogar aqueles joguinhos de amor que todos têm de jogar. O jogo da conquista soa inumano, frio, mecânico, robótico. Impulsividade tem sido sua mais abrangente característica. Mas a impulsividade vence o medo, o gelo. O mundo, por associação, vence-se por impulsividade? Por essa reflexão, e outras, que a calma fez-lhe necessária. Hoje caminha para uma outra-face, porém já reconhecida por alguns poucos: vamos a 80Km/h no Eixão. Não fica para trás nem é inconveniente com o contexto, temperatura no ambiente: morno.
Lembra e vê Menina que seus horizontes são como o céu de sua capital. Todos os dias os consegue ver sem muito esforço, mas, simplesmente, há as manhãs em que não tem razão em vislumbrá-los. Os horizontes são importantes quando não se abusa de sua vista, quando o poder de vê-los não é desperdiçado em um relance descomprometido. Horizonte pode ser céu ou mar. Os dois acabam se ajudando. Brasília é um meio horizonte. Frustra muitos e faz acreditar outros tantos. Menina, com sua mente de Explanada dos Ministérios às avessas: espaço aberto, verde, monumental que, em dias de festa há vaco, em dias normais, multidões. Talvez o devaneio típico de brasileiros se torne ainda mais palpável em brasilienses: a eles foi prometido Menina, fruto do funcionalismo público, da psicologia, da casa própria, de revista Capricho. Só porque assim ela é, não significa que assim deveria ser.
Autor: Junia Lorenna Da Silva


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