Análise da ideologia contida na carta-testamento de Getúlio Vargas



Este texto propõe-se a analisar a carta-testamento de Getúlio Vargas com embasamento em um aspecto contido na obra Introdução à análise do discurso, de Helena Naganime Brandão. O que será verificado, aqui, é a ideologia presente no discurso do ex-presidente. Sendo ideologia um conceito cujo campo de definições é extremamente amplo, o foco principal será duas funções definidas por Paul Ricoeur ? a função geral de ideologia e a de dominação. Será analisado, também, como o enunciador perpassa a intenção de fazer com que o enunciatário reaja a seu enunciado, com alguns apontamentos sobre o momento histórico, pois este não pode ser desvinculado do ato de produção do enunciado.
A função geral da ideologia, segundo Ricoeur, é focada em dois pontos: a ação social e a relação social, ou seja, o tu, o outro está inserido no discurso. No enunciado de Vargas isso é evidente, pois ele explicita seu enunciatário, o povo, inúmeras vezes. Com isso, ele traz o outro para dentro do seu ?discurso final?, tornando-o parte de um todo ? a história da nação. Exemplificado nestas passagens:
(...) para que eu não continue a defender, como sempre defendi, o povo e principalmente os humildes. (linha 5)
Voltei ao governo nos braços do povo. (linha 13)
Não querem que o trabalhador seja livre. (linha 21)
Não querem que o povo seja independente. (linha22)
Tenho lutado mês a mês (...) renunciado a mim mesmo para defender o povo (...) (linha 31)

Nestes cinco trechos, extraídos da carta, Vargas coloca-se ao lado do povo, é como se tivessem uma relação estreita, pois ele luta e defende a população, que o trouxe de volta ao governo, nos braços, como se ele fosse um herói. Tal proximidade realça ainda mais este elo entre enunciador e enunciatário.
Além dessa retomada constante do enunciatário, no penúltimo parágrafo, Vargas muda da palavra povo para o pronome pessoal ?vós? . Mas qual seria a intenção desta mudança? É de conhecimento geral que o pronome ?vós? é usado para enaltecer uma determinada pessoa, então o povo, aqui, é apresentado com certa elevação, garantindo, assim, uma importância à população. Ricoeur analisou o porquê disto:
Está ligado à necessidade, para um grupo social, de conferir uma imagem de si mesmo, de representar-se (...)
É exatamente isto que o discurso faz: há uma identificação do povo com o enunciado, pois a sua presença se faz constante e fundamental.
Agora, será aborda a função de dominação exercida pelo discurso do presidente Vargas. O enunciado é construído da seguinte maneira: inicialmente, ele aparece como vítima de uma situação, sendo perseguido por defender o povo; logo em seguida, ele aponta quem e o porquê da perseguição; e por último, explica as razões de uma escolha extrema: a sua própria morte. Todas estas ações reforçam a intenção ideológica de seu produtor, a de fazer agir.
Vargas tece um elo com o povo ? é como se ele tivesse dado tudo, para sempre estar ao lado dos humildes ? podendo, assim, cobrar determinadas atitudes. Como líder, ele precisa mostrar que defende a maioria pobre de seu país, por isso mesmo, era conhecido como "pai dos pobres". Ricoeur investigou a questão da dominação pelo discurso, pela imagem e pela ideologia, sendo que para ele, esta última, estava intrinsecamente ligada a um desenvolvimento social de participação no meio em que se vive.
Abordando o discurso, primeiramente, tem-se a defesa do povo feita por algumas palavras, as quais aparecem no enunciado, elas têm a função de transmitir a ideologia. Palavras como luta, força, interesse, destino, libertação e justiça, têm uma carga semântica muito forte quando relacionadas à função política porque é como se um, o presidente, direcionasse sua vida pelo todo, o povo. Vargas domina porque existe uma legitimidade para isto ocorrer; criou-se a imagem de um chefe da nação perfeito, pois ele era o presidente que fazia justiça, lutava pelos interesses e pela libertação de um povo. A visão ideológica de um político requer todas estas habilidades. Por este motivo, havia um departamento de censura (DIP ? departamento de imprensa e propaganda) que controlava para que não vazasse aspectos negativos durante o mandato de Vargas, gerando, deste modo, uma imagem de perfeição durante a sua atuação como presidente.
É através dessa ideologia que ele exerce a dominação, uma vez que fez tudo que lhe era possível pelo enunciatário, então cobranças serão feitas. Vargas oferece seu trabalho e vida como razão para que o povo lute pelos seus direitos, a sua trajetória de lutas políticas e a sua morte darão forças para que o povo reivindique seus direitos, como afirmou o mesmo: Quando vos vilipendiarem, sentireis no pensamento força para a reação. Este é o meio de haver dominação mesmo após a sua morte, pois acreditava na eternidade de suas ações, como indica a finalização de seu discurso:
Serenamente dou o primeiro passo no caminho da eternidade e saio da vida para entrar na história. (linha 58)
Portanto, chega-se a conclusão que a carta- testamento de Getúlio Vargas transmite tanto a função geral de ideologia, pois ela estabelece uma identificação entre o enunciador e o enunciatário, fazendo com que o último sinta-se parte de um grupo, dando-lhe também uma posição dentro do mesmo ? a de um ser participante de um momento histórico; quanto a função de dominação, pois apresenta as ações feitas e sofridas pelo enunciador, em busca de uma libertação e de uma reação do enunciatário perante as possíveis injustiças que algum outro governo venha a cometer.





















BIBLIOGRAFIA

BRANDÃO, Helena H. Nagamine. Introdução à Análise do Discurso. São Paulo: Editora da Unicamp, 1991.
RICOEUR, Paul. Interpretações e ideologias. Rio de Janeiro: Francisco Alves, 1990.
SCHIMIDT, Mário. Nova história crítica. São Paulo: Nova Geração, 1999.
VARGAS, Getúlio. Carta-testamento. Rio de Janeiro, 1954.



Autor: Ana Cláudia Ferreira De Queiroz


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