Nós temos medo de que?



O objeto do historiador não é o passado, mas como o passado pode responder a questões que nos são colocadas no presente (BRUGUIERE) . E são questões do presente que cercam toda a análise dos medos medievais realizada por Georges Duby no livro Ano 1000, ano 2000: na pista dos nossos medos (Editora UNESP/Imprensa Oficial do Estado de São Paulo, tradução de Eugênio Michel da Silva e Maria Regina Lucena Borges-Osório, 1999, 141 páginas).
Historiador, nascido em 1919, DUBY especializou-se na Idade Média, fez parte da 3ª. Geração dos "Annales", que se concentrou na história das mentalidades, na história cultural e na antropologia histórica. Um dos grandes pensadores da Nova História, sua obra é considerada repleta de humanismo e paixão, sendo partidário do método "micheletiano" que "fundia lucidez e paixão" .
Baseado em fontes de diferentes épocas, DUBY nos apresenta uma visão geral da sociedade medieval, desmistificando a idéia de pavor pelo fim do mundo, mas apresentando outros pavores do homem medieval, como a fome, a doença, a violência, o invasor, o inferno.
Parte de uma série de livros com grandes historiadores sobre temas específicos ? Le Goff, fala sobre as cidades, Michelle Perrot, sobre as mulheres ?, a obra busca analisar as semelhanças e principalmente as diferenças entre as sociedades medievais (o ano 1000, porém o período de análise se estende até o século XIII, em alguns casos) e as sociedades atuais (o ano 2000). O viés de análise escolhido é o do medo que a mudança de milênio teria trazido para aquela sociedade. Nos dizeres do próprio DUBY: "vivemos ainda marcados por tudo o que nossos ancestrais muito longínquos fizeram e pensaram. "
Estruturado em forma de entrevista, o livro, uma obra ricamente ilustrada com figuras de diversas fases da Idade Média, e outras atuais, criando um paralelismo entre as imagens. É dividido em 6 partes: uma Introdução e 05 capítulos, um para cada um dos medos tratados pelo autor: o medo da miséria, do outro, das epidemias, da violência e do além. A estrutura adotada cria uma intimidade maior com o leitor, que se coloca na maioria das vezes na posição do entrevistador (esta pergunta eu faria, esta não), bem como dá maior credibilidade à fala do entrevistado, visto que parece mais natural, menos elaborada, mais pessoal, ou seja, mais verdadeira.
Em cada um dos capítulos, a entrevista procura capturar a visão não só do historiador DUBY, mas também do homem DUBY, sobre a relação entre os dois períodos: o passado e o presente. A estrutura de cada capítulo busca capturar qual era a visão das pessoas da Idade Média sobre cada um desses medos, e como estes se apresentam no mundo atual.
Na introdução, "Medos medievais, medos de hoje: um paralelo legítimo?", discute-se, inicialmente, a possibilidade de relacionarmos estes dois períodos: a atualidade e o período medieval. As diferenças, no entender do autor, é que nos ensinam, são elas que nos impressionam e fazem com que discutamos o nosso presente. A inquietação do homem é vista como uma característica de ligação entre os dois períodos. A sociedade medieval, ciente da sua fraqueza diante da natureza e de sua vida rude e dolorosa, nos é apresentada como uma sociedade onde a crença em um mundo melhor, fazia com que este período (o ano 1000) fosse visto com temor, mas também com esperança de que tempos melhores poderiam surgir.
A miséria das pessoas do povo, os "laboratores", era geral, esmagados que eram pela exploração dos homens da Igreja, os "oratores", e da guerra, os "bellatores". Refletindo sobre o "medo da miséria", DUBY salienta a importância da fraternidade e solidariedade entre as pessoas, sinal que diferencia as duas épocas, principalmente pelo fato de na nossa sociedade atual o miserável ser um condenado à solidão. A solidariedade na medievalidade era vista como um dever cristão e um dever do senhor. O crescimento da miséria se dá com o crescimento das cidades, uma das possíveis aventuras a disposição dos camponeses , nas quais a solidariedade entre as pessoas se reduz; as casas de caridade são criadas como forma de reconstituir a malha de solidariedade nos novos bairros.
A favela do Rio de Janeiro é o elemento que o autor utiliza para comparar o mundo atual com os subúrbios das cidades medievais, onde esta gente miserável que migra se instala; no entanto estes miseráveis não podem ser considerados excluídos da sociedade: estes são os judeus, que no século XIII são obrigados a usar um sinal distintivo, e os leprosos, diferenciados por suas vestimentas e pelas matracas que usavam. Uma grande mudança ocorre no seio da Igreja neste momento: Francisco de Assis, com sua idéia de aproximação com os pobres, com a miséria, e a criação das ordens mendicantes, que representariam os primórdios da Reforma.
O "medo do outro" é caracterizado nesta época, por DUBY, na figura do invasor, em virtude da memória recente das invasões bárbaras, e principalmente do estrangeiro absoluto: o não cristão. Estas invasões são analisadas pelo autor também como provocadoras da extensão das relações comerciais na Europa e da atenuação das fronteiras entre os povos pagãos e a cristandade. O medo do não cristão faz com se adote uma política de converter ou exterminar, porém se verifica em alguns casos a convivência amigável com estes povos. Tornar-se cristão é a primeira maneira de se integrar , e assim a conversão se torna um ato político. A unidade do povo europeu, nos séculos XII e XIII se deve ao fato de se sentirem como um só povo, o povo cristão.
O medo do homem medieval não se apresentava somente em relação ao estrangeiro, mas também internamente, naquilo que ultrapasse a sua região e nos que queriam se afastar da vida nessa sociedade aglutinante, como por exemplo os moradores dos bosques e os eremitas.
As diferenças entre as duas épocas, quanto ao medo do outro, apresentadas por DUBY, se mostram de extrema relevância, principalmente se considerarmos a xenofobia que se vê em grande parte da Europa; naquele momento a Europa mais populosa, não temia a invasão do outro em virtude da quantidade, como hoje se pensarmos nas "hordas" de pessoas oriundas de ex-colônias e dos países do leste que "invadem" a Europa Ocidental. E também, a Europa se nutria das outras culturas, principalmente as do Oriente, muito mais ricas e desenvolvidas, ao contrário de agora em que, ainda, percebe-se uma idéia de superioridade cultural. O grande medo, naquela época, quanto ao invasor, surgia em virtude dos saques e pilhagens que acompanhavam a invasão, não da quantidade de estrangeiros que poderiam chegar à Europa ou do aculturamento.
Ao refletir sobre o "medo das epidemias", o autor tece um paralelo entre as duas épocas que se mostra de fundamental importância e impacto nos leitores, ao relacionar a AIDS e duas epidemias da época medieval: com a peste negra, na visão de alguns como uma punição pelo pecado e na busca por bodes expiatórios causadores; com a lepra, vista como sinal de desvio sexual, refletindo no corpo a podridão de sua alma . A peste, segundo o autor, apresenta um ponto positivo que é o retorno da solidariedade entre as pessoas. Na literatura e na arte o macabro se instala, como reflexo do momento de extremo sofrimento pelo qual as pessoas passam.
No ano 1000, marcado pelo "fogo de Santo Antonio", a epidemia do mal dos ardentes, epidemias eram uma constante, principalmente em virtude do problema sanitário da época. Neste ponto, o autor, como já havia feito em outros pontos, inclusive ao comparar o choque da peste à AIDS, faz relação com a África atual, como a nos lembrar do mundo em que vivemos e que às vezes esquecemos.
A "violência", assunto muito caro a todos nós viventes nas grandes cidades, é o tema do quarto capítulo. A brutalidade é uma marca do cotidiano da época medieval, na literatura, nos esportes (torneios), na presença dos cavaleiros e dos mercenários militares ("os agentes do demônio" ), nos estupros coletivos pelas associações de rapazes nas área urbana, ou seja, em todos os aspectos da vida do homem medieval; porém, segundo o autor, menos violenta do que atualmente. Alguns fatores são apresentados como limitações para esta violência: a persistente e constante campanha da Igreja; a função dos reis como mantenedores da paz e da justiça; a estrutura sólida da sociedade, com sua característica de aglutinar as pessoas; e a punição exemplar para os crimes praticados. Apesar de discutir pouco como estes fatores atuariam no presente, o autor nos traz para a reflexão o que estaria faltando em nossa época para que reduzíssemos a violência na sociedade.
O "medo do além", no homem medieval, caracteriza-se pelo medo do juízo final, da punição que adviria e dos sofrimentos e padecimentos no inferno, por toda a eternidade. O medo da morte é relativo: a morte é vista como uma passagem para a ressurreição, baseado na crença da existência de outro mundo após a morte. A isso se deve o tratamento simbólico e a solidariedade que cerca a morte no medievo, inclusive no banquete final, em contraponto com a atualidade na qual a mesma é vista como um trampolim para as trevas. A grande diferença vista por DUBY está em que nós atualmente temos medo da degradação do planeta, da extinção das espécies, de catástrofes naturais; provocados pelo próprio homem e que, como DUBY nos lembra sabiamente, parecem tentar fazer-nos lembrar-nos de quão impotente ainda podemos ser diante da natureza.
Se fossemos resumir a idéia central, o recado que DUBY procura nos passar em toda a sua análise esta seria: SOLIDARIEDADE. A idéia da solidariedade existente na Idade Média, em comparação ao individualismo de nossa sociedade atual, é mostrada na miséria, na doença, na morte. A solidariedade é uma marca do homem medieval, é um dever imposto pela cristandade. Pode não ser uma solidariedade geral, mas é, pelo menos, com os que os cercam.
O autor procura demonstrar, com a maior clareza, como somos influenciados e parecidos com uma sociedade que também vivia um momento de inquietação, apresentando em diversas passagens situações pessoais e familiares para atestar esta marca que os nossos ancestrais nos deixam, como no exemplo do medo do fim do mundo no qual ele cita sua mãe .
É um livro emocionante e fascinante tanto de se ler como de se ver, levando-nos a refletir sobre a nossa relação com o mundo que nos cerca, neste início do 3º. Milênio.


BIBLIOGRAFIA:
BURGUIÈRE, André (org.). Dicionário das ciências históricas. Tradução: Henrique de Araújo Mesquita. Rio de Janeiro, Imago Ed., 1993. pg. 8.

BURKE, Peter. O fim do mundo. 1998. Resenha de: DUBY, Georges. Ano 1000, ano 2000: na pista dos nosso medos. LE GOFF, Jacques. Por amor às cidades. Disponível em: Acesso em: 18 abr. 2010.


Autor: Marcelo Costa


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