Conto Fantástico



A MARCA DO ESCORPIÃO

Edward ancorou em terras brasileiras numa época em que o país ainda significava um sonho de fortuna para piratas, criminosos e exilados. Não importava o país de origem. Europeus, africanos, asiáticos eram todos aventureiros.
Desembarcado clandestinamente no porto do Rio de Janeiro, Edward misturou-se a essa multidão desorientada e expandiu-se país adentro. Enquanto seus camaradas buscavam fama e dinheiro, tudo o que ele queria era paz, silêncio, distância dos progressos litorâneos e, principalmente, da luminosidade que refletia naquele espaço. De onde veio, o que fazia, que idioma falava? Ninguém sabia. Era um jovem bonito, alto, magro, porém estranho. Vestia-se com uma capa preta de capuz que parecia proteger-lhe os olhos da luminosidade do sol.
Enquanto Edward e seus camaradas seguiam país adentro atrás de riqueza fácil, um aglomerado de pessoas estava voltando para seus países de origem.
- A fortuna terminou... ? a riqueza terminou...O Brasil terminou... ? eram essas informações, proferidas pela multidão desanimada, que zombavam nos ouvidos dos recém-chegados, mas que para Edward soavam como a mais perfeita notícia. Ele sabia que um lugar abandonado podia ser o lugar ideal, pois era tudo o que desejava do fundo da alma, naquele instante... o abandono, a solidão...Um lugar perverso! Ideal para ele erguer seu lar.
Por motivos políticos e medíocres, Edward deixou seu castelo na Transilvânia e, forçado, abandonou as neblinas frias para instalar-se em Londres. Apesar do lugar ideal para suas caçadas noturnas, o sol ardente e selvagem expulsava e humilhava aquele jovem.
Algum tempo se passou e, por preconceitos, Edward foi exilado para a América e entregue a um dos membros de uma das câmaras do Parlamento inglês. Menos de cinco meses depois, ele fora abandonado e torturado numa cidadezinha "vazia".
Incapaz de qualquer reação, decidiu refugiar-se continente adentro, juntando-se a um grupo de pessoas que seguiam viagem. Aos poucos, brumas conhecidas vão cobrindo as montanhas e esfumaçando as paisagens. Os companheiros se desanimam... Se dispersam... Edward se encontra agora sozinho, sem ninguém, na mais profunda solidão, num lugar que, aos poucos, foi tornando-se mais íntimo.
Uma força atroz e ancestral passou pela alma do imortal; aos poucos, seus dedos foram ganhando forma de garras, a capa enorme e preta que vestia transformou-se em grandes asas. Os morcegos, moradores das proximidades, se inquietaram. Alguma coisa com muita força e influência havia chegado. A lua, em segundos, foi coberta por um bando de asas negras.
Como o imortal calculara, aquela terra era mesmo um lugar perfeito, o lugar que ele sempre sonhara. Após alguns dias de andanças e sobrevoos pela região, Edward encontrou o que procurava. Seu desejo por ruínas sempre fora-lhe muito forte. Abandonada, em meio às montanhas ele avistou uma velha igreja e junto dela, um caixão de madeira. Apoderou-se dele e fez disso sua cama, seu lar, juntamente com os monstrinhos pretos que o acompanharam em suas peregrinações. Agora tudo estava calmo, tudo era solidão, silêncio profundo...mais nada.
No dia seguinte, Edward abriu os olhos. Que noite tranquila! Pensou, mas uma impressão impactante e intuitiva passou pela sua memória.
Que fome!... há tanto tempo...sorriu.
Levantou-se calmo e descansado e olhou pela janela da frente: apenas o crepúsculo no horizonte. Então, seus olhos brilharam como fogo. Lá do alto, avistou pequenas luzes; seu coração palpitou mais forte ? resquícios de humanos naquele imenso espaço abandonado e sinistro. Teve a sensação que escorria pela sua boca um sabor de sangue...sangue fresco...sangue humano...há quanto tempo!
Seu olhar guiava-se vagarosamente ao longo daquela grande extensão de terras, improdutivas, mas ideal para suas perseguições noturnas. Contudo, foi nascendo de seu interior um sentimento confuso, misturava-se o desejo de fome com o desejo de companhia. Talvez a tranquila noite de sono fez com que Edward não sentisse apenas o desejo de fome, mas a falta de alguém para aquecer seu coração. Inquieto, com seus dentes pontiagudos e sua velha capa preta, foi deslizando entre os pequenos montes, sobrevoando a vegetação; sentia-se em casa. Tudo estava perfeito. Mas de repente captou a presença de luzes muito próximas; a curiosidade lhe aguçava o cérebro. Foi se aproximando e deparou-se com um casarão de madeira. Tudo muito quieto, ninguém passando, apenas dois cachorros no pátio da casa.
O reflexo de luz na janela fez com que Edward se aproximasse. Pousou numa elegante árvore, que debruçava seus galhos sobre a janela e um vento maléfico soprou. Edward observou e, através dos velhos e enfumaçados vidros, notou a presença de duas pessoas. Uma senhora corcunda descansava em meio à sala. Sentada na mesa de jantar, uma moça morena, alta, estatura firme e serena. Edward, observando-as, começou a cogitar: - mãe e filha... ou patroa e empregada?
A princípio não conseguiu adivinhar, mas apaixonou-se pela beleza da moça. Mudou de planos. Voltou para seu aposento, tentou dormir, mas passou a noite consumido por pensamentos que se revezavam entre a ânsia de fome e a ânsia de companhia. Quando o dia clareou, Edward, obcecado pela imagem da jovem, voltou à sua casa. A vegetação ainda estava úmida de cerração. Parou ao lado da janela. Agora ele avistava apenas a moça. Encantado pela sua beleza, caminhou até a varanda, olhou para os lados e bateu com as palmas das mãos, despertando a atenção da princesa que costurava sentada numa poltrona rasgada. Era Laura que, assustada, pôs-se de pé. Sua mãe, a velha corcunda, ainda dormia. Não era normal chegar visitas naquela imensidão de terras pouco aproveitáveis...Aquela presença parecia um sonho para Laura. Ela não sabia o que pensar, apenas o observava...Ele se apresentara como um geólogo que fora enviado pelo centro de pesquisas da Universidade de Londres.
Após longa conversa, Edward pediu Laura em casamento. Ele estava loucamente apaixonado. Ela, perdida, admitia aquilo como um milagre; um rapaz tão esplêndido como Edward aparecer naquele lugar. Não deveria perder a oportunidade, pois era única. A moça era sorridente e parecia estar feliz por ter aparecido alguém ali, já que o lugar parecia esquecido.
O marido se deliciava com a presença da bela jovem, agora ao seu lado, sua esposa e companheira que conseguiu, inexplicavelmente, comover o coração gelado do vampiro. Laura estranhava aquela única vestimenta, uma capa preta.
- Faz parte da cultura de meu povo ? ele dissera... Nada mais.
A noite chegou. Edward abriu a geladeira e retirou de seu interior uma jarra contendo um líquido vermelho, cor de sangue, cor de fúria, cor de pôr de sol! Colocou sobre a mesa enchendo duas taças transparentes. Um brinde a nós dois. O vermelho do vinho refletia nos olhos de Edward, aguçando seus sentidos. Uma sensação estranha percorreu seu corpo, fazendo-o consumir a bebida num só gole.
Sem pensar muito, o elegante e misterioso Edward ergueu em seus musculosos braços a doce esposa. Sentiu as veias de Laura pulsarem próximas a seu corpo. Por segundos, o velho impulso ancestral quis reaparecer, seu dentes estremeceram, mas o poderoso conde foi mais forte, venceu o monstro que habitava seu interior. Uma cama expandida no quarto que fora dos avós de Laura aconchegava, agora, em seus brancos lençóis, o apaixonado casal. A primeira noite de amor. Seria mesmo amor que o imortal sentia? Ou...era o conforto por não estar mais só, na solidão?
Os dias e as noites foram se sucedendo e o eterno Edward foi resistindo a cada impulso diabólico que renascia e tentava sufocá-lo. O nascimento de seus cinco filhos serviu de proteção, dando forças para mantê-lo sereno. Não era fácil conviver com aquele sentimento perturbador, ora diabólico, ora tranquilo. Mas o imortal conseguiu. Resistiu à sede de sangue, ao desejo de abandono e, aos poucos, aquele coração gelado foi cedendo espaço a um coração mais humano, mais quente, que pulsava por amor.
Numa manhã ensolarada, Edward decidiu desafiar, ainda mais, aquele indivíduo desumano que habitava sua alma. Aos poucos, foi tirando dos olhos o velho e inseparável capuz; foi resistindo a cada uivo de lobo que tentava dominá-lo. Quando se sentia inseguro, corria para os braços da esposa que o acalmava. Percebia que cada vez mais estava conquistando sua condição de ser humano.
Às sete horas, o despertador tocou. Edward saltou da cama. Um insistente chamado para voltar à velha igreja o sufocava. A esposa dormia. O momento era perfeito. Caminhou apressadamente sem se controlar, subiu por entre montes e vegetações cerradas...ofegante chegou ao local. Olhou para os lados e entrou despercebido. Os raios do sol que surgiam no horizonte vieram cumprimentá-lo. Ele percebeu que a luminosidade do sol não atrapalhava mais seus olhos; os monstrinhos pretos que dormiam nas ruínas da igreja abandonaram em segundos o velho lar. Edward foi atacado por uma sensação ruim. Pensa logo na esposa. Volta correndo e, ao chegar em casa, encontra Laura desmaiada, balbuciando seu nome ? Edward.....Edward..., ela sabia que só o "misterioso" marido poderia salvá-la. Um escorpião, dos mais venenosos, num golpe preciso, acertou-lhe a veia do pescoço quando ela estava agachada, limpando as botas do marido.
Laura sabia de tudo. Em silêncio, ela observou todo o sofrimento do marido para tornar-se apenas um mortal. Ele nunca percebera. Agora Laura ia morrer. No pescoço, a marca das pinças do malvado escorpião. O sangue agora escorria pelo pescoço. Edward observava e não se conformava diante da situação. Ela ainda implora pelo marido. ?Será que em alguma parte de seu corpo ainda sobrevivia um resto de maldição?... Um desejo de sangue humano...Será que ele ainda conseguiria? No desespero, o marido concentrou seu olhar no ferimento da esposa, seus dentes recuperaram a consciência e, desnorteado, jogou-se sobre o corpo de Laura, sugando cada gota de sangue, juntamente com o veneno do maldito escorpião. Favorecida pela sorte, foi salva pelo seu grande e único amor: Edward.

TEXTO, CONTO FANTÁSTICO, PRODUZIDO PELA PÓS-GRADUANDA IVANETE TONATO, NA DISCIPLINA: LEITURA E PRODUÇÃO TEXTUAL DA UNIVERSIDADE DE CAXIAS DO SUL (UCS), MINISTRADA PELA PROFESSORA: Ms. VANILDA SALTOM KËCH.

Autor: Iva Tonato


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