MEMÓRIAS LITERÁRIAS



MEMÓRIAS LITERÁRIAS

PERSONALIDADE

Em dezembro de 1884, parti com minha família de Genova no navio Cenisio Laorsa com destino ao país "de la cuccagna": o Brasil, onde a promessa de dimensão do futuro parecia irresistível.
Com nossa família, no mesmo navio, transportamos muita fé, coragem e sonhos. Mas a fome, o sofrimento e muitas outras privações infiltraram-se naquele minúsculo espaço e seguiram viagem conosco. A embarcação abria caminho nas águas geladas, e, naquela imensidão onde o céu se juntava ao mar, eu apenas observava. A ideia de abandonar o berço não me prendia, pois a paixão pelo conhecimento sempre fora intensa, sempre fora meu combustível.
Eu era jovem, contava apenas 19 anos de idade. Meu pai, um senhor já idoso, não teve medo de arriscar tudo nas turbulentas águas do Atlântico. Para além do horizonte, vislumbrava a promessa da fortuna.
Ao chegar ao Brasil, na cidade do Rio de Janeiro, deixamos a embarcação e seguimos viagem de vaporim (barco menor) até Porto Alegre, e, de lá, fomos a cavalo até Dona Isabel, hoje Bento Gonçalves, de onde fomos expulsos, pois não havia mais terrenos à disposição; somente minha irmã Ângela conseguiu instalar-se naquela cidade. Eu fiquei desnorteado diante da situação. Resolvi, então, atravessar as montanhas para instalar-me com o resto da família na colônia Roça Reúna, hoje, Veranópolis. As estradas eram um calvário, quase que intransitáveis. Em meio aos vales rochosos e profundos, rastejava o Rio das Antas e suas imprevisíveis correntezas, um lugar perigoso e fascinante ao mesmo tempo. O destino escolhido com a esperança de encontrar, do outro lado, um país promissor começava a tirar sua máscara diante da árdua realidade.
Após uma cansativa viagem vencendo os obstáculos, fomos recepcionados por imensas e elegantes árvores, nas quais os pássaros cantavam para nos apresentar a beleza, os perigos e os desafios da nova terra. Em meio à floresta virgem, serpeavam águas tagarelas envoltas em brumas preguiçosas e, como essas brumas, meu pai ordenou que descansássemos. Lá mesmo, resolvi construir uma grande parte de minha história.
Aos poucos, o manto verde das araucárias ia cedendo lugar às minhas construções. Abrindo o ventre fecundo dos pinheiros, construí um cantinho para refugiar-me com minha família. Aproveitando o desmatamento, um ano mais tarde, juntamente com o Sr. Julio de Castilhos, instalamos a colônia Alfredo Chaves, iniciando pela construção de uma igreja. Foi então que surgiu do nada, como que vinda do além, uma inquietação profunda. Não sei se foi obra do destino, pois era assim tão natural como o perfume das flores, mas que me desestabilizava - eu queria criar, inventar.
No dia seguinte, iniciei a construção de uma pequena oficina, onde passei a fabricar os bancos e o altar dessa primeira igreja. Nessa mesma oficina, inventei a torneira para pipas (a mais vendida até hoje em Portugal), a fabricação de metros dobráveis, sendo o primeiro a fabricar esse produto no Brasil; construí instrumentos rústicos de odontologia, ferro de passar roupa, máquinas para fazer massas, instrumentos médicos, um cavalo de pau, um par de asas -meu sonho era voar.
Nunca poderei me esquecer que, no ano de1887, salvei um amigo que sofrera um acidente. Parece loucura, mas apesar das condições mais adversas da vida miserável que possuíamos, criatividade e determinação nunca me faltou. Lembro-me que embebedei o paciente, amarrando-o em uma mesa, esterilizei o serrote com fogo e amputei-lhe a perna. Mais tarde, arquitetei uma prótese de madeira que serviu como recurso na falta da perna. Como diz o ditado: "quem não tem cão, caça com gato". Jamais se ofuscou o brilho daquela façanha, que tenho na memória.
Aos poucos, com trabalho árduo, fui evoluindo. Nos meados de 1894, firmei contrato para construção da minha segunda casa, agora de tijolos . Construí outra oficina, num espaço maior. Minha família reclamava uma bomba para água. Foi então que comprei uma. Apresentando defeito, após três meses de uso, desmontei-a para consertá-la, contudo, percebi um grave erro de construção. A necessidade me aguçava o cérebro.
Os dias me pareciam não ter mais fim enquanto eu não solucionasse o problema. A partir da necessidade e do modelo mal fabricado, elaborei uma bomba hidráulica de minha autoria. A engenhosa deu certo; foi patenteada nos Estados Unidos, no Brasil e no Canadá, e considerada pelos americanos, na época, como o "invento mais perfeito do mundo" no gênero.
Aos poucos, tornei-me um notável industrial; minhas inventividades ultrapassaram as fronteiras estaduais e nacionais. Sentia-me orgulhoso.
Contudo, distante dos centros industriais, minha oficina não foi considerada pelas autoridades. Sem auxílios, estudando minuciosamente com muita força de vontade, continuei meu trabalho. Inventei meu mais desejado "filho", uma turbina a vapor, que também fora enviada aos Estados Unidos para patenteá-la. Mas dói-me falar sobre esse invento, que seria indiscutivelmente revolucionário. Há um ano, mais ou menos, não tendo notícias da empresa Norte América referentes ao meu mencionado invento, pedi ajuda aos representantes da força convincente. Dos poderes públicos do meu município, só recebi provas de pouco caso, que muito me magoaram; dos poderes estaduais e federais, o silêncio, e do exterior o que levei foi um tiro à queima roupa. Foi, então, que os americanos arrancaram, como quem arranca um filho dos braços de uma mãe, a minha meticulosa turbina a vapor. Uma parte de mim morreu nesse instante. Hoje, olho para trás e vejo que tudo o que fiz devo à minha constância e força de vontade.
Percebi que o tempo foi passando e, com ele, veio a ganância dos homens. A ânsia de mais poder não mediu as consequências e foi passando por cima de tudo, destruindo momentos únicos vividos por mim.
Basta, senhores, porque se começo a "desfiar o rosário", não termino mais. Vamos tomar um copo de vinho que é excelente. Sei fabricar torneiras, metros, bombas hidráulicas e turbinas a vapor, mas sei também fabricar vinho. De fato, tomei muito vinho, nada inferior aos vinhos estrangeiros.

Texto de Ivanete Tonato, Pós-Graduanda da UCS, escrito com base no depoimento de Therezina Girardi, neta de Fiorindo Dalla Coletta, narrador-personagem dessa história.
Autor: Iva Tonato


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