Deus, um delírio: de Darwin à loucura.



Jorge L. Sperandio

Reflexão sobre o pecado e a salvação - no conjunto do cristianismo, a partir da crítica formulada por Richard Dawkins em Deus, um delírio.

(1) A teologia de Dawkins
Senhor Dawkins:
Li o seu livro Deus, um delírio . Sem dúvida uma grande provocação que, espero, não deverá ficar sem resposta. Dirijo-me também, e mais propriamente, nesta carta, a todos os cristãos, conclamando-os para uma firme e urgente tomada de posição. É hora de nos alinhamos frente ao fanatismo dawkinsano da obra. Somar forças. E que Deus nos ajude! -sem Ele, aliás, o que podemos fazer?

Apesar de compartilharmos, Sr. Dawkins, do mesmo interesse na compreensão dos mecanismos da vida - pesquisa e biologia como é o seu caso e medicina e cirurgia como tem sido o meu, não concordo com o ateísmo evolucionista incendiário que defende na obra. Tem outras coisas que também não concordo, mas, sinceramente, não valeria a pena citá-las: seria perda de tempo. Reconheço, contudo, que, sem dúvida, foi esforçado na defesa de seus pontos de vista.

Provocação
Entendo que sua provocação deve ser estendida a todos os segmentos de estudo e trabalho do cristianismo. Uma avaliação retardada do que temos feito na tarefa de interpretar e aplicar o ensino bíblico.

De outra forma, o que dizer das afirmações que seguem abaixo, encontradas no capítulo sete do livro?
Apesar de seus valores familiares meio estranhos, os ensinamentos éticos de Jesus foram ? pelo menos em comparação ao desastre ético que é o Antigo Testamento ? admiráveis; mas existem outros ensinamentos no Novo Testamento que nenhuma pessoa de bem apoiaria. Refiro-me especialmente à doutrina central do cristianismo: a da "expiação" do "pecado original" [...] O pecado original em si vem diretamente do mito de Adão e Eva, do Antigo Testamento. O pecado deles ?comer do fruto da árvore proibida ? parece merecedor de não mais que uma simples bronca.

Mas a natureza simbólica do fruto (o conhecimento do bem e do mal, que na prática se revelou o conhecimento de que eles estavam nus) foi o suficiente para transformar a travessura na mãe e no pai de todos os pecados. Eles e todos os descendentes foram expulsos para sempre do Jardim do Éden, privados do dom da vida eterna e condenados a gerações de trabalhos dolorosos, no campo e no parto, respectivamente. [...]

Acredita-se que o pecado de Adão e Eva tenha sido transmitido ao longo da linhagem masculina -transmitido pelo sêmen, de acordo com santo Agostinho. Que tipo de filosofia ética é essa que condena todas as crianças, mesmo antes de nascer a herdar o pecado de um ancestral remoto? Agostinho, por sinal, que com razão se considerava uma espécie de autoridade pessoal em pecado, foi o responsável por cunhar o termo "pecado original". Antes dele era conhecido como "pecado ancestral". Os pronunciamentos e debates de Agostinho exemplificam, para mim, a preocupação pouco saudável dos primeiros teólogos cristãos com o pecado. Eles podiam ter dedicado suas páginas e seus sermões a exaltar o céu estrelado, ou as montanhas e florestas, os mares e os coros do amanhecer. Essas coisas são mencionadas às vezes, mas o foco cristão está sempre no pecado pecado pecado pecado pecado pecado pecado. Que preocupaçãozinha chata para dominar sua vida. [...]

Agora o sadomasoquismo. Deus encarnou-se como homem, Jesus, para que pudesse ser torturado e executado em expiação do pecado hereditário de Adão. Desde que Paulo expôs essa doutrina repugnante, Jesus vem sendo adorado como o redentor de todos os nossos pecados. Não apenas o pecado passado de Adão: pecados futuros também, decidam ou não as pessoas futuras cometê-los!

Paulo, como deixa claro o intelectual judeu Geza Vermes, estava impregnado do velho princípio teológico judaico de que sem sangue não há expiação. Em sua Epístola aos Hebreus (9,22), aliás, ele diz exatamente isso. Os estudiosos progressistas da ética hoje em dia já acham difícil defender qualquer tipo de teoria retributiva da punição, imagine então a teoria do bode expiatório ?executar um inocente para pagar pelos pecados dos culpados. De qualquer maneira, (não dá para não questionar), quem é que Deus estava querendo impressionar? Presumivelmente ele mesmo ?juiz e júri, além de vítima de execução. E, para completar, Adão, o suposto executor do pecado original, nem existiu: um fato estranho ?tudo bem que Paulo não soubesse, mas um Deus onisciente supostamente saberia (e Jesus também, se acreditar que ele era Deus) -que mina fundamentalmente a premissa de toda essa teoria tortuosa e nojenta. Ah, mas é claro, a história de Adão e Eva era apenas simbólica, não era? Simbólica? Então, para impressionar a si mesmo, Jesus fez-se torturado e executado, numa punição indireta por um pecado simbólico cometido por um indivíduo inexistente? Como eu disse, loucura de pedra, além de cruelmente desagradável.

Hebreus e Romanos
A que fundo de poço chegamos! O cristianismo como loucura de pedra! Aliás, por falar em delírio, loucura e histeria, ficou faltando Freud! Não encontrei nenhuma referência a ele no livro; nem sequer falando mal, como era de se esperar. E olha que tem muita coisa interessante, sobre ancestralidade e infância, por exemplo, em Totem e tabu ou Moisés e o monoteísmo. Seria uma desqualificação do adversário na corrida pelo primeiro lugar da explicação de tudo? Ou será que ele não atinge o padrão ouro do pensamento científico aprovado? Ou, então, quem sabe, porque fala muito em problema problema problema problema problema problema problema - uma preocupaçãozinha chata demais para o competentíssimo relojoeiro cego da evolução? Uma indignidade, talvez, para o grande resolvedor de imperfeições, ou o supremo provedor de todas as maravilhas que já existiram, desde sempre - na imensidão do tempo geológico, e para sempre -na extensão inteira do universo?

Deixando de lado, entretanto, o desconforto e a paixão, que resultam do veneno que destila na obra, é possível encontrar coisas interessantes em sua tagarelice. Refiro-me ao olhar especulativo que dirige à Escritura, especialmente às considerações da seção O NOVO TESTAMENTO É MELHOR? . Ressalvando-se a incerteza sobre a autoria da Carta aos Hebreus , o raciocínio teológico que desenvolve me parece de profundidade comparável ao de Paulo na Carta aos Romanos. Que ironia: como se retardasse uma avaliação crítica interna - conduzida corajosamente pelo próprio cristianismo, eis que ela surge agora, impiedosa, vinda de fora dos seus muros! ? fico imaginando como seria se Deus trouxesse, também, o Sr. Dawkins para o nosso lado.

De fato, não tem sido comum encontrarmos considerações com tamanha acuracidade e argumentação tão vigorosa. O que temos freqüentemente é um questionamento mais leve, que não vai muito além do conhecimento infantil: o material de estudo reservado às crianças é limitado e incompleto, incapaz, portanto, de atender as dúvidas de uma percepção adulta. Assim, com um conhecimento superficial, não conseguimos ir além de comentários como este de Daniel Dannet : O Deus Bondoso que amorosamente moldou cada um de nós (todas as criaturas grandes e pequenas) e salpicou o céu com estrelas brilhantes para o nosso encanto ? esse Deus é como o Papai Noel, um mito da infância, nada que um adulto de mente sã e sem ilusões, possa acreditar literalmente. É preciso transformar esse Deus em um símbolo de algo menos concreto ou então abandoná-lo.
Por outro lado se, quando adulto ? na posse de um conhecimento maior, há o interesse em aprofundar-se no questionamento, o que encontramos beira à frustração, como se pode ver, por exemplo, no comentário de abertura da Bíblia de Jerusalém. Ao explicar o texto da criação se diz que ele utiliza uma ciência ainda incipiente. Afirma que não devemos estabelecer concordâncias entre ele e nossa ciência moderna, mas que, mesmo assim, ele nos apresenta um ensinamento revelado, que tem valor permanente, sobre Deus, único, transcendente, anterior ao mundo, criador .

O "guindaste" Dawkins
Seu questionamento, Sr. Dawkins, nos leva, com a força de um guindaste, a outras perguntas. Por que o texto bíblico da criação deve ficar apartado do estudo das ciências, como sugere a explicação acima? Porque é que não devemos estabelecer concordâncias entre o plano da criação e a nossa ciência moderna? Uma e outra não se interessam em dar a conhecer o mesmo mundo? Aprendemos que é pela fé que se conhece o único e verdadeiro Deus, revelado pela Escritura. Mas, como é possível atribuir fé a uma revelação que não soa verdadeira? Uma ciência que, antes de ser revelada, criou o céu e a terra, em nenhuma hipótese poderia ser incipiente. Assim, é difícil aceitar um ensinamento que se pretende permanente, se ele não se deixa investigar com o mesmo rigor destemido que é utilizado, por exemplo, na astronomia ou biologia. Se a Escritura é, de fato, obra do mesmo Deus que fez o céu e a terra, não faz sentido tratá-la de forma marginal em relação a outras ciências ? que não querem outra coisa senão entender o céu e a terra.

Criação (a)
Acreditar num Deus criador, anterior e superior ao mundo, não é tão difícil - como reconhece o Sr. Dawkins , talvez pela mesma razão que nos faz entender que a existência de uma casa requer a existência de alguém que a construiu. O problema é que a história bíblica da criação, conforme temos interpretado, de fato, é uma história que não tem muito sentido . Inicialmente, no capítulo um, se diz que a obra da criação se desenvolve dos animais aos seres humanos - homens e mulheres; no capítulo dois, o desenvolvimento é outro: primeiro se cria o homem, depois os animais e por último a mulher. Nos primeiros três dias existem tardes e manhãs, mas ainda não existem astros no firmamento que possam ser relacionados a elas, o que ocorrerá somente no quarto dia. Ou, então, pretendendo descrever a criação do mundo, fala de coisas que não existem -ou que nos são estranhas, como por exemplo, um vapor que sobe da terra, e, por outro lado, deixa de citar coisas que de fato existem, e nos são bem conhecidas, como a chuva que, pelo contrário, cai na terra, ou a luta dos seres vivos pela sobrevivência, alterações do meio ambiente, doenças, etc.

Pecado (b)
E sobre o pecado? O que dizer do pecado que, parecendo não ter mais qualquer significado, se tornou, no dizer do Sr. Dawkins, uma preocupação pouco saudável, uma preocupaçãozinha chata para nossas vidas. Como explicar essa insignificância prática tão grande para o pecado, diante da importância teórica, tão elevada, que a Escritura atribui a ele?
Como aprendemos, o pecado significou a queda do homem e isto tem sido uma herança que deforma de alguma maneira todos os descendentes do primeiro casal, homens e mulheres. Sem considerar a pouco provável transmissão ao longo da linhagem masculina, fica a pergunta: se nascemos imperfeitos, pela herança de um pecado, de que tipo seria esse defeito -orgânico ou moral? Se for orgânico, devemos encontrá-lo em que parte do corpo? E, sendo assim, como poderia ser tratado ou corrigido? Ou então, se for moral ou ético, como poderia ser transmitido, infalivelmente, por tantas gerações, em todos os tempos e lugares?
Pode ser que haja pecado, é claro, quando uma pessoa adultera ou quando, num homicídio, tira-se a vida de outra pessoa; ou, até, quem sabe, quando hostilizamos o mundo em que vivemos - poluindo o meio ambiente, o que, de fato, pode trazer doenças e morte. Mas, antes disso, será que o próprio mundo não nos tem sido hostil? Quando chegamos ao mundo já encontramos à nossa espera a dor, a doença, a velhice e a morte. Será que seria correto afirmar que o homem arruinou o mundo feito, no início, muito bom pelo criador? Teria o homem a capacidade de inventar a doença e a morte? A morte, aliás, aparece como necessidade própria da existência, imprescindível à vida, pois, como alimento o homem mata animais; como alimento, animais matam animais e, também, como alimento, vírus e bactérias matam homens e animais. E se o ecossistema que hoje conhecemos bem melhor, graças à lente das ciências naturais, precisa ser alimentado, ou mantido, pela morte, porque ela não figura dentre os feitos criativos de Deus na primeira semana?

Salvação (c)
Tem mais. Com o pecado herda-se também a culpa e a condenação diante de Deus. Por exemplo: na lei de Moisés proíbe-se que um homem mate outro homem e, entre outras coisas, proíbe-se também a infidelidade sexual que, aliás, o Sr. Dawkins, compreensivelmente, considera difícil de se cumprir . Pois bem, num homicídio realmente faz sentido culpar aquele que matou, pelo pecado de tirar a vida daquele que morreu -e por isso merece condenação. O Novo Testamento, porém, ensina que um rápido olhar para uma mulher desejando-a , ou, mesmo, um simples xingamento imaginado contra um semelhante são, ambos, tão igualmente pecado diante de Deus, quanto o homicídio que, efetivamente, tirou a vida de outra pessoa. Se no homicídio, de fato, cabe considerar culpa e condenação, como atribuir culpa, equivalente ao homicídio, a alguém que, num momento de ira, absolutamente normal e esperado para qualquer ser humano, mentalizou um xingamento inofensivo contra alguém? Pior: se o desejo sexual for obra de um criador, a fim de cumprir o mandamento de crescer e multiplicar-se , como atribuir culpa e condenação pelo desejo sexual que surge no olhar? Se não se pode ter culpa por um ato que nos é normal, e sem que haja qualquer dano real, porque ser culpado e condenado por isso?

E o que dizer da atribuição de culpa e condenação a um homem pelo pecado cometido por outro. Será que seria correto, ou divinamente justo, por exemplo, condenar o Sr. Dawkins pelo ato ancestral de Darwin? Por que deveria o Sr. Dawkins pagar pela culpa de Darwin em desobedecer à teologia do século dezenove, quando optou pelo fruto original do naturalismo? Provavelmente, por isso, o Sr. Dawkins não deve ser culpado ou condenado. Espera-se de um julgamento justo, que cada um seja o responsável, culpado ou não -condenado ou não, pelos atos que cometeu, de acordo com o seu respectivo universo de opções.

Portanto, se a herança do pecado, da culpa ou condenação, não deve ser estendida a todos os homens; e se não há, também, como atribuir culpa ou condenação, por atos normais, que não causam qualquer dano ao próximo, qual a finalidade da salvação? Será que o que nos resta é desistir, então, de tudo e seguir o ateísmo racionalista, pregado tão insistentemente pelo Sr. Dawkins? Penso que não; acredito que talvez não haja, ainda, motivo para desesperos.

(2) A ciência de Adão
Se a teologia perdeu, no século dezenove, quando Darwin trocou-a pelo naturalismo, ganha agora, no século vinte e um, com a chegada do Sr. Dawkins ao areópago teológico: seu enorme saber o levou à loucura . Ao chamar a atenção para a importância da incompatibilidade, insuportável, entre o simbolismo de Adão, de um lado, e a veracidade do Novo Testamento, de outro, o Sr. Dawkins presta-nos, na realidade, um imenso auxílio. Selecionando e comentando os principais temas do cristianismo ? criação, pecado e salvação - ele não apenas identifica nossos equívocos de interpretação, mas, vai além: mostra, com precisão assustadora, como eles têm sido perniciosos na leitura e interpretação de toda a Bíblia.

Antes de chegar à loucura, o Sr. Dawkins conta que costumava ouvir uma vozinha , que vinha do seu íntimo, dizendo-lhe que, diante de coisas incompreensíveis, é preciso admitir a ignorância e até mesmo exultar na ignorância, já que ela é um desafio para conquistas futuras; ou, então, que deve haver uma explicação totalmente cabível. Mas sou ingênuo demais, ou pouco observador e pouco criativo demais para pensar nela11. Se com relação à doutrina do cristianismo a vozinha nada falou para ele - até agora, em seu livro ela tem "gritado" para nós.

Fato, interpretação e ciência
Seja lá como for, o Sr. Dawkins tem feito a parte dele naquilo que ele se propôs a fazer; temos nós também que fazer a nossa, naquilo que se espera de nós. Aliás, acredito que possa chamá-lo simplesmente de Dawkins; não faz sentido chamá-lo de Sr. sem empregar o mesmo tratamento para Paulo, Agostinho e Freud, por exemplo.

Partindo, assim, de nossa ignorância e ingenuidade, talvez possamos dissecar na argumentação de Dawkins, três componentes distintos para cada um dos temas selecionados: o primeiro refere-se ao fato em questão, que é o objeto da descrição bíblica (o evento da criação - com o paraíso e Adão-, o pecado e a salvação); o segundo refere-se aos textos que tratam do fato questionado (as narrativas bíblicas, desde a criação, no Gênesis, até a salvação no Novo Testamento); e o terceiro, a ciência que podemos ter, do respectivo fato, a partir da interpretação escolhida (ou, a maneira como imaginamos, ou entendemos, o evento da criação, a existência do pecado e o papel da salvação). Portanto, se adotamos a interpretação simbólica, a ciência do fato será uma; se adotamos a interpretação literal, a ciência do fato será outra. É como se cada tema representasse um conjunto diferente de fato a ser fotografado-máquina fotográfica-e a imagem obtida na fotografia.

A conclusão a que chega Dawkins (a ciência que tem do fato) é que Adão não existiu (ou o texto não reporta à verdadeira existência de Adão), porque adota a interpretação simbólica . Entretanto, provavelmente, uma coisa não tem nada a ver com a outra. O que Dawkins faz é negar a existência do fato porque a máquina fotográfica que utiliza não consegue registrar adequadamente a fotografia do fato. Isto é significativo porque mostra a importância da interpretação do texto na busca pela ciência do fato bíblico. Não se poderá voltar no tempo, por exemplo, e presenciar a veracidade dos eventos, nos diálogos entre Deus e Adão ou, muito menos, inventar uma imagem qualquer para o fato - como se inventam imagens de fadas - esperando que ela seja aceita, ou empurrada obrigatoriamente, ainda que não carregue dentro de si o convencimento próprio da verdade.

Dawkins, ao escolher a interpretação simbólica chegou à loucura de pedra porque a ciência que conseguiu ter dos fatos, realmente, não faz o menor sentido. E esse parece ser, naquilo que nos interessa, a utilidade do livro: reconhecer e divulgar, como fez muito bem, que a interpretação simbólica do texto é incompatível com o entendimento adequado dos fatos bíblicos. Isto significa dizer, então, que só restaria a Dawkins, e a nós também, a leitura fundamentalista, ou literal, do texto? Talvez nem tanto, mas é preciso dizer que, assim, chegamos a outro problema, mais antigo: foi justamente por causa da incapacidade da interpretação literal, em responder adequadamente as dúvidas de um questionamento mais criterioso, que a interpretação simbólica surgiu e se firmou. Contudo, é confortante imaginar que, também aqui, possa haver, mais coisas entre o céu e a terra, do que sonha nossa vã filosofia, conforme a lembrança de Hamlet, pelo biólogo J.B.S.Haldane, quando fala da estranheza relacionada ao entendimento do universo .

Algumas regras
Se, entretanto, pretendemos buscar uma ciência bíblica mais satisfatória, é necessário verificar, inicialmente, com quais certezas iremos trabalhar. Seja na (re) leitura do texto, na valorização dos achados ou para qualquer sugestão de interpretação, será preciso que ela seja aprovada, não apenas pelo confronto com a Escritura e com o mundo que conhecemos, mas, acima de tudo, pelo crivo do entendimento.

Não devemos aceitar algo como verdadeiro, apenas porque sempre fora aceito como verdadeiro (... se tem sido assim, é porque tem de ser assim...). Se Deus nos deu a capacidade de compreensão, devemos utilizá-la, para entender aquilo que nos é dado a entender; assim, se os textos existem para que sejam entendidos é preciso procurar entendê-los.

Não devemos nos restringir apenas aos textos específicos de cada tema, mas é preciso buscar na Bíblia inteira elementos que possam auxiliar na compreensão dos eventos em questão (o Antigo Testamento deve ser utilizado para se entender a salvação do Novo Testamento e, vice-versa, o Novo Testamento deve ser utilizado para se entender a criação e o pecado descritos no Velho Testamento).

Se a Bíblia diz ser a Palavra de Deus e se Deus diz ser a verdade, então o que está escrito deve ser verdadeiro; se, ao contrário, o texto não parecer verdadeiro é porque, neste caso, não se tem conseguido entendê-lo adequadamente e, sendo assim, é preciso insistir na sua compreensão, ao invés de descartá-lo como falso.

Se Deus criou o mundo e criou também a Bíblia, então ela deve permitir ser investigada como tem sido investigado o mundo hoje, pelos métodos de entendimento que estão ao nosso alcance na interpretação:

a) é preciso que haja consistência nas afirmações: se uma coisa é, então de fato ela é; ou seja, se alguém diz que carrega uma pedra não devo imaginar que carrega uma planta;

b) coerência na exposição: se uma coisa é, deverá continuar sendo o que é, e não outra coisa ? uma pedra será sempre uma pedra e,

c) conseqüência na sucessão dos eventos: se deixar de ser o que é, então terá de ser outra coisa: uma pedra moída não será mais pedra, e sim areia.

Muito bem, Dawkins, até onde posso entender, estas certezas me parecem necessárias para um encadeamento razoável da discussão ? se queremos superar a "timidez" da interpretação literal, sem se perder na "liberalidade" que inviabiliza a interpretação simbólica. Acredito, portanto, que se recomeçarmos pela culpa ? e tendo estas certezas em mente, podemos caminhar com segurança na busca de uma ciência melhor dos eventos, na salvação e na criação - antes e depois do pecado. E ao tratarmos, aqui, da culpa, temos que deixar de lado a culpa que decorre dos danos efetivamente causados ao próximo - no exercício prospectivo da vida adulta; essa culpa, ainda que esteja realmente relacionada ao pecado e tenha o contraponto da condenação, seria melhor estudada em outra oportunidade - pois, além da relação individual com Deus, se deverá incluir, também, aspectos de alcance coletivo ou social, que, no momento, fogem do nosso interesse. A preocupação que temos, agora, será com a idéia que nos atribui culpa individual, em relação a Deus e logo que nascemos, pela herança de um pecado "original" ? cometido, no passado, por um ancestral humano comum.

(3) A culpa em Adão
Não concordo que a Escritura diga que eu tenha que herdar alguma culpa pela falta de Adão ou, em relação a Deus, tenha que ser culpado, também, pelos pecados que eu cometo. E se não temos que herdar, nem nós e nem as crianças - nascidas ou por nascer , qualquer culpa pela falta de Adão, que importância teria ele na história da humanidade? Na carta aos Romanos se diz que, por meio de um só homem, o pecado entrou no mundo e, pelo pecado, a morte, e assim a morte passou a todos os homens, porque todos pecaram . Esta parece ser, de fato, a importância de Adão: trazer a morte a todos os homens e, dentro dela, o pecado.

De Adão não se herda, assim, culpa, mas morte: e por isso todos pecaram (e continuam pecando): porque todos nasceram na morte; e, na morte, não há como não pecar. O que herdo de Adão, portanto, é morte e um corpo pecador; e não culpa: nem pelo pecado que ele cometeu, e, aliás, em relação a Deus, nem pelo pecado que eu cometo! Contudo, esta ausência de culpa não melhora minha condição em relação a Deus - pelo contrário, evidencia, ainda mais, a gravidade do meu afastamento: ou seja, se Adão, tendo a opção de não pecar (pois a morte ainda não existia), entrou na morte através do pecado, no meu caso, além de não ter a opção de não pecar, eu entro no pecado através da morte.

Culpa e graça
De acordo com a interpretação habitual, ou histórica, temos atribuído à culpa o mesmo sentido que a Escritura reservou para a graça. Ainda na Carta aos Romanos, um pouco antes , se diz que Abraão creu em Deus, e isso lhe foi levado em conta de justiça; e, como, aliás, também Davi proclama a bem-aventurança do homem a quem Deus credita a justiça (...). Quando se rotula o homem "culpado" pela transgressão de Adão, "creditamos" ao homem essa culpa ? que ele, na verdade, não parece ter: quem tem culpa pelo pecado de Adão é o próprio Adão! Como já se disse acima, o que herdamos de Adão é morte e um corpo pecador; e isto se aplica também a Dawkins - queira ele ou não, tendo em vista que ele, assim como eu, também morrerá (espero, aliás, que morra antes de mim, já que nasceu em 1941 e eu, muito depois, em 1958). Não fosse a Escritura, porém, não se saberia disso; não fosse a Lei de Moisés não se entenderia o pecado, que, aliás, já existia, há muito, no mundo ? mas o pecado não é levado em conta quando não existe lei . Mas a lei não vem para "creditar" culpa: o que ela deve fazer é instruir a respeito do pecado, mostrando que todos, sem exceção, pecam (é por isso que não cabe culpa: por que não há como evitar, em relação a Deus, o pecado). Assim, não parece que o interesse de Deus é ajuntar uma multidão de desgraçados, atribuindo-lhes culpa e mais culpa por causa do pecado; longe disso, a salvação do Novo testamento, no que toca ao pecado, é exatamente a possibilidade de não considerá-lo: Bem-aventurados aqueles cujas ofensas foram perdoadas e cujos pecados foram encobertos. Bem-aventurado o homem a quem o Senhor não leva em conta o pecado . E qual o pecado? O de Adão? Não, mas o pecado daqueles que não pecaram de modo semelhante à transgressão de Adão . Por que, não fosse assim, a salvação teria que incluir um exercício bem esquisito de "põe pecado fictício", em quem não tem culpa (pelo pecado de Adão) e "tira culpa fictícia" de quem, pela impossibilidade de não pecar (todos nós), não poderia mesmo ter culpa.

Se a salvação, vista desta maneira, não tira o pecado herdado ? porque ele não existe, e se, também, não tira a culpa dos demais pecados -porque ela não existe, o que muda na loucura de pedra do Novo Testamento?

Dizer que não há herança ou culpa não significa dizer que não existe pecado - que já estava no mundo antes de ser dada à lei - pois o pecado entrou no mundo por um homem, e pelo pecado a morte ? que, também ela, se não existia no mundo antes do pecado, já estava também no mundo quando veio a lei. E sob a morte, umbigo do pecado, todos pecaram ?porque todos morrem, mesmo aqueles que não cometeram pecado semelhante à transgressão de Adão . Ou seja: Adão pecou, e, depois, dele, todos, dessa geração nascida fora do paraíso, na morte, pecamos.

Salvação
Temos falado em salvação; Dawkins fala em expiação do pecado hereditário e Jesus como o redentor de todos os nossos pecados. O dicionário pode ser um apoio suficiente no tocante aos significados relacionados a estes termos. Em seus principais significados seguem, para cada um deles, as respectivas definições. SALVAÇÃO: ato ou efeito de salvar (-se), ou de remir. SALVAR: tirar ou livrar (de ruína ou perigo), por a salvo, livrar de ruína ou perda total, conservar, guardar, manter, defender, preservar, poupar, salvaguardar, livrar da morte, etc. REMIR: adquirir de novo, tirar do cativeiro, resgatar, recuperar-se de uma falta, reabilitar-se, etc. EXPIAÇÃO: ato ou efeito de expiar. EXPIAR: remir (a culpa) cumprindo pena; pagar; sofrer as conseqüências de; sofrer, padecer; purificar; purificar-se. REDENTOR: que redime; aquele que redime. REDIMIR: Remir e, finalmente, REDENÇÃO: ato ou efeito de remir; ajuda ou recurso capaz de livrar ou salvar alguém de situação aflitiva ou perigosa .

Salvação, portanto, seja ela qual for, vai pedir sempre duas perguntas: (1ª) salvar o quê? e, (2ª) de quê? -pois, o que não existe não precisa ser salvo; e também não precisa de salvação aquilo que existe e não tem dano ou risco de perda. Assim, com relação às coisas que existem, "salvação" tem dois significados: não deixar perder o que tem risco de perda (salvar), ou recuperar aquilo que, depois de feito, se perdeu (remir).

Paulo nos diz em outra carta , que a Escritura encerrou tudo debaixo do pecado. Isto significa dizer que o pecado de Gênesis 3:6 dividiu a Escritura em duas partes: a primeira, anterior ao pecado, se refere a tudo o que ocorreu até ele; e a segunda, posterior ao pecado, relata as ocorrências seguintes a ele, incluindo o Novo Testamento, o próprio Dawkins, eu, os Estados Unidos, o Talibã e tudo o que existe, ou existiu, no mundo inteiro, até hoje. Acontece, entretanto, que a gravidade desse primeiro pecado não repercutiu apenas no que viria depois dele: atingiu, também, toda a obra que já estava pronta antes dele (porque, quando o autor diz tudo, refere-se também ao que já existia) e lhe ficou sujeita, não por seu querer, mas por vontade daquele que a submeteu . E o que já existia antes do pecado? Toda a criação, pois em Gênesis 2:2,4 antes mesmo de narrar o paraíso, ficou escrito que Deus concluiu no sétimo dia a obra que fizera e no sétimo dia descansou, depois de toda a obra que fizera. Deus abençoou o sétimo dia e o santificou, pois nele descansou de toda a sua obra da criação. Esta é a história do céu e da terra, quando foram criados. Este texto é marcante e definitivo. Como teremos que ver mais adiante, a história da criação termina aqui, e isto é bem acentuado: por quatro vezes se diz que, a obra da criação havia terminado, e que Deus já havia terminado de fazer a obra inteira da criação.

A salvação da criação
E aí, Dawkins? Tranqüilo? Provavelmente a pergunta que temos pela frente, agora, seja: Qual, então, a finalidade da expiação realizada pelo Novo Testamento se o pecado de Adão não for "imputado" e se não nos cabe, também, "culpa" pelos pecados vividos depois dele? Talvez fosse mais acertado responder que a finalidade da Salvação seja salvar [o que?] a criação [de quê?] do pecado. Isso realmente parece verdadeiro, além de simples e óbvio. Mas, se de fato é assim, porque nada mudou na criação depois de concluída ou consumada a Salvação? Alguém poderia dizer que, "na verdade, veja bem, a salvação ?que só se consegue pela fé, é coisa que ainda virá no futuro, quando será dado aos que crêem, o prêmio da vida eterna!".

Ainda bem, e graças a Deus por isso, que a salvação vem mesmo pela fé, e não leva em conta o torpor, ou a arrogância, com que muitas vezes tratamos os detalhes, nem sempre sutis, do texto apresentado pela Escritura.

Temos tido, Dawkins, uma interpretação equivocada dos primeiros capítulos do Gênesis. E este parece ser nosso maior erro: não assumir as mudanças que pontuaram o cenário da criação a partir do sétimo dia . Paulo diz que por meio de um só homem o pecado entrou no mundo e, pelo pecado, a morte, e assim a morte passou a todos os homens (...) . E isto é o que precisamos assumir: que a morte não fora criada na primeira semana, mas que entrou no mundo depois que a criação estava pronta. Se o que buscamos é consistência na interpretação, temos que aceitar que a morte não existia até o pecado, só iniciando-se, na criação, depois dele; se queremos coerência na exposição, é preciso reconhecer que a morte não poderia, obviamente, figurar no cenário da criação enquanto não havia pecado; e se precisamos de conseqüência na exposição dos eventos, é preciso admitir que houve mudanças no cenário natural, depois que a obra da criação já se encontrava pronta. Nossa tarefa será a de substituir a interpretação comum, que nos dá a idéia, falsa, de que a história da criação pretende nos informar sobre tudo o que existe, atualmente - no mundo, por outra, mais adequada, que nos diz como foi que o mundo criado até o sexto dia ? e terminado "muito bom", se transformou - depois da morte, neste outro mundo que conhecemos hoje, no qual vivemos e, com ele, interagimos. Se quisermos entender, de fato, como o nosso mundo se tornou no que é hoje, temos que continuar a leitura do Gênesis até o dilúvio ? a fim de verificar as mudanças físicas que sobrevieram a ele; temos que ler os demais livros da Lei e do Antigo Testamento, se quisermos entender a dimensão e a gravidade das mudanças que surgiram com a morte; e, por fim, temos que ler o Novo Testamento, se o que buscamos é entender nossa condição humana, o mundo de um modo geral e a finalidade da Escritura.

Adão não salvou
Terminado o trabalho de criar, na primeira semana, descreve-se, no capítulo dois, a feitura do paraíso e a formação do casal de humanos ali colocados. É dado a este homem o mandamento de não comer do fruto da árvore da ciência do bem e do mal e, no caso da obediência, o poder de se evitar a morte. Paulo fala em Adão como figura daquele que devia vir... Ou seja, Adão também fora chamado para desempenhar um papel salvador ? o de salvar a criação que estivera pronta até ali. Na seqüência do texto informa-se que não houve fidelidade: o homem comeu do fruto da árvore proibida e pecou contra o mandamento que lhe fora dado, pondo a perder o paraíso que lhe cabia preservar.

Interessante a associação que me ocorre quando digito este texto. A programação deste software incorpora o sentido bíblico exato (e literal, conforme o dicionário) do que estamos falando. O texto que digito está integralmente na tela, diante de mim, e, se não quero perdê-lo, tenho que "clicar" em salvar: ou seja, para não perdê-lo, devo salvá-lo. Note-se que quando aciono salvar o texto não está perdido, mas corre o risco de perder-se. A idéia que posso ter dessa argumentação de Paulo é que Adão, o primeiro salvador não cumpriu seu papel de salvar, deixando perder, com sua não obediência no paraíso, a criação inicial. O Cristianismo tem entendido, e me parece coerentemente, Jesus como o segundo Adão, na história da salvação . Entretanto, além de salvador, Jesus é chamado também de Redentor, como Dawkins se refere a Ele em seu livro. Vimos acima que Remir tem um significado um pouco diferente de Salvar: se salvar tem a ver com algo que ainda não se perdeu (mas corre o risco de perder-se), remir tem um sentido mais próprio de recuperar o que já é dado como perdido. Neste mesmo software que utilizo, diante de uma falha eventual de energia, a integridade do documento é prejudicada e o material digitado que não fora salvo até aquele momento se perde; mesmo assim, o documento é sustentado precariamente pela máquina até que, no retorno da normalidade da energia, o programa peça que (o documento avariado) seja salvo (agora no sentido de remir), sob outro nome de arquivo. Novamente a imagem é adequada para o conteúdo do Novo Testamento: a integridade que se perdeu, com a falha da energia (infidelidade/Adão), pôde voltar à existência - ainda que danificada, sob outro nome de arquivo - conforme se pede em recuperar, ou salvar como (fidelidade/Jesus).

Voltemos a Paulo: o salário do pecado é a morte . Se Adão pecou, teria de morrer; e ele, de fato, morreu. O que nem sempre atentamos é que, quando ele pecou, ainda não tinha descendência: a descendência lhe foi dada, depois do pecado. Se hoje somos da sua descendência, pode parecer que a Lei "não fora" cumprida; isto sem considerar que o próprio Deus desconsiderou sua palavra ou "descumpriu" sua própria Lei. O que o Novo Testamento parece mostrar é que esta "tolerância" ? a de permitir que houvesse descendência para Adão, mesmo na vigência do pecado e da morte, teve um custo, um preço: uma fidelidade até a morte ? e morte de cruz, na própria arena do pecado - levada a efeito pelos descendentes que vieram depois dele (eles não sabem o que fazem ). Pudemos ganhar existência, assim, dentro da morte que sobreveio a Adão; vivendo, no corpo, a morte "inaugurada" por Adão. E se nesse corpo de morte tenho alguma espécie de vida - e nela continuo pecando, deve ser porque já recebemos algum perdão, alguma remissão, ou nosso pecado foi encoberto ? e isto vale, inclusive, para Dawkins, é claro, na graça comum.

Até onde sei, a Escritura não diz como isto teria sido decidido, entre Jesus e Deus, mas me vem à lembrança os diálogos anteriores entre Moisés e Deus - numa situação parecida, quando, depois de um episódio de infidelidade coletiva, Deus iria por fim ao projeto de levar o povo do Egito para outra terra,. Disse Deus a Moisés: Agora, pois, deixa-me, para que se acenda contra eles a minha ira e eu os consuma; e farei de ti uma grande nação. Moisés, porém, disse-Lhe: (...) Abranda o furor de tua ira e renuncia ao castigo que pretendias impor ao teu povo (...). No dia seguinte Moisés disse ao povo que iria novamente a Deus, para tratar de expiar o vosso pecado. E Deus, na seqüência, lhe disse: Farei ainda o que disseste por que encontraste graça aos meus olhos e conheço-te pelo nome . Se a contrapartida pontual para o pecado referido seria o término, ali mesmo, do projeto de levá-los à nova terra ? já que morrendo todos não haveria descendentes, a expiação de Moisés garantiu que a empreitada continuasse, ainda que o pecado deles não tenha sido desconsiderado: a geração participante daquele pecado morreu - sem conhecer a nova terra, mas a redenção conseguida por Moisés garantiu a posse dela para a geração seguinte.

Deus parece adotar um princípio federativo, falando com representantes, como se pode ver por esta ilustração de Moisés (e, em se tratando do livro de Dawkins, é preciso ressalvar que me refiro apenas ao período coberto pela Bíblia, não tendo em mente, portanto, qualquer representante dos Estados Unidos ). O mérito que teve Moisés, em conseguir manter o propósito inicial de assegurar uma nova terra, faltou a Adão, que não conseguiu garantir-nos a posse do paraíso, ainda que, como veremos mais adiante, pôde entender que alguma redenção estaria sendo providenciada a partir de Eva. Conforme diz o Novo Testamento, Jesus, como Moisés, reuniu mérito suficiente para garantir a redenção de muitos, e da própria criação, que, mesmo depois do pecado, e apesar da morte, puderam conhecer a existência. E esta garantia parece estar assegurada, segundo a Escritura, antes mesmo do início da criação. Isto, porém, não tem sido sem custo, como já vimos, tal qual a redenção provida por Moisés, que também custou - no perdão, o derramamento de sangue daqueles que não tomaram posse da terra ? o salário do pecado é a morte.

Em nosso caso, qual tem sido o derramamento de sangue ? já que continuamente pecamos e, ainda assim, permanecemos vivos. Em primeiro lugar, o sangue do próprio redentor, e, em segundo lugar, o sangue de todos nós , que, vivemos a morte, nesta existência, que só tem início, também, mediante o derramamento de sangue da maternidade.

(4) O perdão em Eva
Misturamos tudo, Dawkins, quando dizemos que Deus criou Adão e Eva. Ora, Deus não criou Eva; Deus criou a mulher. O nome Eva só aparece na Escritura depois que ocorreram fatos bem importantes, como o pecado e a infiltração da morte. Portanto, se Deus terminou a criação antes do pecado, isso quer dizer que Eva não pertence mais à história da criação, e deve ser entendida, necessariamente, como personagem de outra história, que irá ocupar toda a Escritura: a que trata da Salvação.

A redenção se inicia em Eva
A maternidade instituída em Eva, assim, parece inaugurar e dar seqüência à redenção. Como se verá mais adiante, as transformações operadas no corpo da mulher - e iniciadas logo depois do pecado para esse fim, reúne elementos típicos da história da salvação. Não teria condições, é claro de avaliar todas as dimensões desta redenção que, descrita na Escritura, e iniciando-se em Eva, transcende a História e até mesmo a Escritura. Nosso interesse, aqui, é identificar os atos que, pertencendo à redenção - porque ocorrem depois do pecado, devem ser isolados e separados da obra anterior, da criação dos seis dias.

Logo depois de pecar, e ouvir de Deus a respeito das coisas que viriam na morte, Adão dá a sua mulher o nome de Eva ? porque ela seria a mãe de todos os viventes. Levando a sério o contexto de morte provocado pelo pecado, e negando ao episódio um toque inesperado de sadomasoquismo, como diria Dawkins, (já que seria mais adequado dizer que Eva seria a mãe de todos os morrentes), essa mudança de nome, de mulher para Eva, soa como reconhecimento e profecia ? por parte de Adão, da obra de Redenção: mesmo depois do pecado, no pecado e na morte , haveria viventes, ou até mesmo, melhor seria dizer, sobreviventes.

A maternidade da mulher
Paulo diz que Deus, nosso Salvador, (...) quer que todos os homens sejam salvos , e também que Deus é o Salvador de todos os homens, sobretudo dos que têm fé . Se existe uma salvação especial para aqueles que têm fé, fica claro que todos, homens e mulheres, independente de qualquer crença, já foram alvos de algum tipo de salvação. E que salvação seria essa ? aplicada a todos, diferente daquela que vem pela fé ? reservada para alguns? Temos aprendido com o cristianismo que se trata da graça comum, estendida a todos. E em que consistiria tal graça, senão nascer e viver no mundo, e contemplar, como lembra Dawkins, a luz, as estrelas, as plantas, a vida, e os coros do amanhecer? Entretanto, como nascemos e viemos ao mundo? Pela maternidade da mulher, essa mesma que, bem conhecida pela medicina, precisa de água, de placenta, acontece na dor, em meio a riscos de morte, tribulação, envelhecimento, etc.

Um batismo de água na gravidez
A maneira incomum como Pedro descreve o dilúvio, é também significativa nesse trabalho de incluir a maternidade, como a conhecemos hoje, na história da salvação. Ele diz, "estranhamente", que na arca poucas pessoas, isto é, [apenas] oito, foram salvas por meio da água (é ela mesma Dawkins, a Arca de Noé! ). Isto é inicialmente tão esquisito quanto dizer que Ló foi salvo da destruição de Sodoma não pelo anjo que o tirou da cidade, mas pelo fogo que caiu sobre ela . E que relação isto teria com a maternidade? Assim como os tripulantes da arca foram salvos pela água do dilúvio ? que foi morte para muitos -e isso para a família de Noé foi um batismo de vida, também a tribulação da gravidez e do parto, na morte, num batismo de água, faculta o nascimento da vida. A mesma idéia é defendida também por Paulo, quando associa o batismo de água com livramento, tribulação e morte: na nuvem e no mar, todos foram batizados em Moisés ? ou seja, o batismo de água, que franqueou a redenção de Israel, custou ao Egito tribulação e a morte.

Um batismo de sangue no parto
No processamento da vida, que acontece no pecado e na morte, a salvação demanda, também, como lembrou Dawkins citando a carta aos Hebreus, o derramamento, ou efusão, de sangue. Segundo a Lei, quase todas as coisas se purificam com sangue; e sem efusão de sangue não há remissão. Na carta aos Colossenses se diz que fomos circuncidados, por uma circuncisão não feita por mão de homem [derramamento de sangue], mas [pela] circuncisão de Cristo [derramamento de sangue], que, por sua vez declara: Isto é o meu sangue, o sangue da Aliança, que é derramado por muitos para remissão dos pecados . E Paulo insiste nisso quando pergunta: Ou não sabeis que todos os que fomos batizados em Cristo Jesus, é na sua morte [derramamento de sangue] que fomos batizados?

Pois bem, seja pelo trauma genital ? que às vezes acontece, seja pelo desprendimento da placenta ? que sempre acontece, nenhum dos filhos de Eva veio ao mundo sem derramar sangue. Ora, se a maternidade tivesse sido, de fato, obra da criação, porque haveria de derramar sangue? Instituída, neste caso, antes do pecado não precisaria perder sangue, já que não necessitaria de perdão. De outra forma, porque haveria de perder "vida" ou a "alma", no parto, já que, segundo o mesmo livro de Gênesis, o sangue é a "alma" da vida; e em se tratando da humanidade, a vida que foi feita à imagem de Deus .

O pecado do parto
Um fato descrito no Evangelho sobre o nascimento de Jesus, parece atestar, com mais clareza, que o parto, que nos trouxe à vida, não deve ser produto da obra da criação: Quando se completaram os dias para a purificação deles, segundo a Lei de Moisés, levaram-no a Jerusalém a fim de apresentá-lo ao Senhor, conforme está escrito na Lei do Senhor (...) e para oferecer em sacrifício, como vem dito na Lei do Senhor, um par de rolas ou dois pombinhos . A Lei referida , trata da purificação da mulher depois do parto, quando um dos pombinhos deverá ser sacrificado para o holocausto e o outro em sacrifício pelo pecado fazendo o sacerdote, por ela, o rito de expiação e ela ficará [então] purificada . Ora, Lucas não está falando do nascimento de qualquer um de nós, mas do próprio Jesus! Porque sua mãe deveria ficar purificada do pecado? Qual pecado? De origem sexual não era, já que o texto ressalta que nascera de uma virgem. Uma resposta imediata seria que Lucas enfatiza a observação do cumprimento da Lei pelos seus pais. Isto, provavelmente, deve ser verdadeiro. Mas a pergunta é: porque purificar-se depois do parto? De todos os partos, independentemente se foram frutos de adultério ou não? Porque a expiação pelo pecado do parto (!). Pior: a Lei coloca o parto na mesma lista de impurezas que inclui também a doença da pele, o mofo das casas, ou o corrimento de doenças sexualmente transmissíveis . Se a gestação e o parto (como as outras doenças referidas) forem obras da criação, porque a necessidade da expiação, num sacrifício para o pecado? Será que a loucura de pedra é mais antiga do que imagina Dawkins?

Ou seja, a declaração acerca da maternidade em Gênesis 3, logo após o pecado, implica, necessariamente, na mudança do ordenamento reprodutivo instituído em Gênesis 1. Disse Deus à mulher: Multiplicarei as dores de tuas gravidezes, na dor darás à luz filhos. Se queremos coerência é preciso assumir que aquilo que Deus disse que iria ocorrer, de fato ocorreu; se queremos conseqüência, é preciso entender que o que veio a ser, a partir do que Ele disse, não existia antes que Ele tivesse dito; e se queremos consistência, é preciso admitir que: se o que veio a existir, antes não existia, isto só pôde ocorrer através de mudanças que foram impostas ao ordenamento reprodutivo anterior. Como teria sido a geração de pessoas, antes do pecado, ou como seria a concepção, fora do pecado, provavelmente não se poderá mais que especular. Se temos tido dificuldade em entender o que nos fora dado a conhecer, na Escritura inteira, o que dizer daquilo que não coube expor na história da primeira semana? O fato de a Escritura dizer que não havia morte antes do pecado, também não nos autoriza a imaginar para o cenário que precede o pecado a mesma disposição atual da reprodução, "isentada" das características que, como vimos, se ajuntaram posteriormente a ela.

Dois nascimentos de salvação
Pois é Dawkins, vontade de continuar não falta ? mas a carta está ficando muito longa. Teríamos que falar, um pouco mais, também, do pecado e da primeira semana. De qualquer forma, acredito ter cumprido boa parte do objetivo inicial para esta exposição, considerando que, anteriormente, já pudemos tratar da concepção dos dias na criação e do perfil das mudanças nos diversos momentos de sua história . Antes de terminar, entretanto, gostaria de citar outra passagem do Novo Testamento que relaciona a maternidade com a salvação. Disse Jesus: "Em verdade, em verdade, te digo: quem não nascer do alto não pode ver o reino de Deus". Perguntou-lhe então Nicodemos: "Como pode um homem nascer, sendo já velho?" "Poderá entrar uma segunda vez no seio de sua mãe e nascer?" Jesus, então, respondeu-lhe: "Em verdade, em verdade, te digo: quem não nascer da água e do Espírito não pode entrar no Reino de Deus; o que nasceu da carne é carne, o que nasceu do Espírito é espírito; não te admires de eu te haver dito: deveis nascer do alto" . Um pouco antes , o mesmo evangelista diz que da plenitude [do Redentor] todos nós recebemos graça por graça [ou em outra tradução graça sobre graça ]; assim, o edifício da salvação parece ser composto de dois andares: no primeiro - o da carne, se nasce pela água e pelo sangue a partir da maternidade de Eva; o segundo - o do alto, se "nasce" pelo Espírito, na salvação que se completa pela fé.

Gostaria de agradecê-lo, por esta oportunidade - trazida pelas coisas úteis do seu livro. Finalmente, agradeço a Deus pelo privilégio de poder comentá-lo.

Grande abraço,

Jorge Luiz Sperandio
[email protected]



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Autor: Jorge Luiz Sperandio


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