Dois sertões e uma tristeza



Durante minha infância, brincadeiras e jogos infantis não me ajudaram a vencer o rosário de dias cinzas que eu não queria contar. Gostava de livros. Pra matar o tempo da vida de cachorro magro lia qualquer coisa, e assim me sentia gente de verdade.

Espiava o mundo por uma pequena fresta que os livros ampliavam e Deus iluminava, multiplicando suspiros na retina de minha alma ligeiramente cega. Desse modo assistia ao caminho contorcido da massa que se arrastava como serpente pelas pedras da vida, lambendo da terra o pó. Mesmo assim o universo dos adultos me fascinava, nele eu via refletida a imagem de um sonho: Estar à frente na fila dos oprimidos, mudando o curso do mundo.

As superstições de minha mãe me intrigavam e sua religião também. A estatueta de uma santa que eu jurava que era africana mas todos afirmavam ser a mãe de Jesus, dia a dia permanecia estática como pedaço de pau, alheia aos acontecimentos ao seu redor. Aquele olhar petrificado destruía as cores da primavera, e isso era tudo que eu sabia sobre fé. Não gostava da santa, nem de rezar pra ela.

O Deus que minha mãe conhecia era carrasco e distante. Quase sempre ocultava seu favor de nossa família e de todos que eu conhecia, com exceção dos ricos, é claro. Mas eu sabia que no céu tudo seria diferente, as vezes me impacientava por ser ainda tão jovem e não poder entrar no céu, lugar de alegria verdadeira onde os velhos viveriam depois de morrer.

O bairro onde morávamos era pobre de dá dó. Quando o cascalho responsável por inúmeras derrapagens dos ciclistas recebeu um revestimento de pedras pontiagudas extraídas da pedreira do prefeito, a livre correria dos pés descalços ficou limitada a saltos curtos e rápidos, como se pisassem em brasas. Minguou-se a algazarra do fim da tarde. Quem se arriscava em brincadeiras na rua, voltava para casa quase sempre com algum ferimento. Eu preferia não brincar, nem jogar queimada. Não valia a pena sofrer por tão pouco divertimento.

Desse período nenhuma lembrança se estende na superfície de minha memória com tanta doçura como as noites de lua cheia e apagão; Tais ocasiões cobriam o céu com uma roupa festival, reunindo todos no quintal da minha casa. Um lampejo de alegria chispava em meu coração atraindo-me aos passatempos pueris.

Quando as crianças formavam um círculo e inventavam situações imaginárias, era possível suportar qualquer chatice por algum tempo, mas na brincadeira em que se passa de mão em mão um anel que não existe, eu me sentia enfadada e queria parar de brincar. Hoje eu sei que meu coração era tão triste que não se alegrava nem com cantiga de roda.

As vezes me demorava um pouco mais na tentativa de ser contagiada pela empolgação da maioria, mas acabava voltando para o interior da casa onde nada acontecia e eu podia ficar quieta em algum canto lembrando da vida que agente levava antes de vir morar na cidade.

A antiga casa era espaçosa e cercada por um grande alpendre de piso lustroso. Os camafeus empoeirados com as imagens de alguns santos e um grande quadro com o retrato de meus pais preenchiam o espaço rajado de pintura velha na parede da sala. Eu me divertia com a traquinagem do vento de agosto que destruía preciosidades e poupava coisas inúteis.

A imagem do tiú assando a barriga no pedregulho quente e as aventuras pesqueiras de meu pai cravaram um tom saudoso e engraçado em eternas tatuagens. Mas as lembranças mais constantes eram de acontecimentos marcados por aquela brancura atmosférica da caatinga em dias tórridos de um verão interminável.

Uma fragrante mistura de murici e rebenta boi despertam nas narinas da memória a comprida procissão de enfileiradas perdas. O som daqueles dias era triste como gemido de ancião. Até o canto dos pássaros fazia coro com o sussurro do rio de águas escassas que seguiam seu caminho descendo curvas e batendo nas pedras sem nunca voltar atrás.

Falando assim, parece coisa bonita de se ver, mas é lembrança triste. As cores da infância derramadas na escuridão de um silêncio que não é de paz, brilham um realce mais vibrante de onde sem querer, a tristeza salta desfigurando a beleza. É como contemplar o céu quando asas de rapina pintam de negro a maciez branca das nuvens e ninguém sabe o porquê. É tristeza lá do sertão.
Autor: Ivaneide Rodrigues De Aquino


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