PALAVRAS À BEIRA DO TÚMULO




PALAVRAS À BEIRA DO TÚMULO

Eram dois políticos que sempre militaram no mesmo partido e aos poucos foram se tornando conhecedores das bandas podres de cada um e se tornando um verdadeiro perigo um para o outro. De amigos mesmo não tinham nada, e eles mesmos sabiam disso. Eram só tapinhas nas costas quando se encontravam em churrascos, casamentos e enterros e nas seções do plenário, quando se abraçavam para saírem juntos nos jornais. Tudo aparência.
Cada um aspirava disfarçadamente os melhores lugares do picadeiro, embora aparentemente também cada um torcesse para que o outro chegasse ao topo da lona do circo. Só que o finado colega, antes muitíssimo vivo, inexplicavelmente sempre conseguia passar à frente do amigo, que ora vejam, inevitavelmente continuava sempre à sombra dele, que era homem influente, sabia, e como! - mexer com os pausinhos e findava se dando bem. Mas agora, quem sabe se as coisas não iriam mudar?
O homenageado, coitado, coberto com um montão de coroas de flores caríssimas que se esparramavam pra todo lado e faixas com as mais sinceras condolências, felizmente já não ouvia mais nada, claro. Se conseguisse ouvir alguma coisa, com certeza agora sim, morreria de vez, enfartava ali mesmo onde estava, de tanta raiva por não poder se levantar e enfiar a mão na cara daquele safado, que estava se aproveitando dos seus últimos momentos ainda sobre a terra para tripudiar à sua volta, gesticulando feito um palhaço e exercitando diante de todos a sua aculturada retórica de meia-tigela.
Trepado sobre uma laje de cimento para ficar mais alto, o homem de rosto vermelho, baixinho, gordo e barrigudo, engole em seco umas duas vezes como se estivesse com a garganta embargada pelo choro e só então começa a falar com uma voz ridiculamente empostada:
- Com certeza esta é uma perda irreparável, dizia; uma partida sem volta, deste meu amigo do peito - e batia com toda a força da mão sobre o próprio coração - que nos deixará para sempre com os corações despedaçados...
- Muito beeem.., isso mesmooo, algumas palminhas aqui, outras ali....
Parava, e quase se engasgando engolia alguns soluços mal ensaiados e continuava o discurso.
Este foi só o começo de um palavrório cheio de hipocrisias que o "companheiro de tantas jornadas" como ele próprio se intitulava, fez ecoar pelo espaço à beira do túmulo do seu grande amigo e correligionário.
E depois de desfiar todo um rosário de fingimentos, com palavras previamente escolhidas e frases plagiadas, ele ainda tinha o desplante de esfregar um lenço encardido na cara para enxugar aqueles olhos inchados, enquanto as palmas de uma dúzia de puxa-sacos faziam eco entre as catacumbas aonde todos se acotovelavam, afogueados com o calor do sol do meio dia, loucos para que o enfadonho espetáculo terminasse.
Por fim, cansado e suando em bicas, o orador enfia no bolso o lenço ensopado daquelas insossas lágrimas de crocodilo, tapa os olhos com os enormes óculos pretos e de peito lavado respira fundo, saboreando os seus mais ou menos oito minutos de glória, num mixto de exaustão e de felicidade por ter cumprido a obrigação de fazer a sua falsa homenagem póstuma ao saudoso amigo. Muito aplaudido, desce o inconsolável amigo do improvisado pedestal e amparado por algum baba-ovo enxuga a testa, ainda trêmulo de emoção.
No fundo no fundo, o que ele sentia era um grande alívio por estar se livrando para sempre daquela dura pedrinha no sapato, que sempre o incomodara tanto. Mas tinha valido a pena tudo o que aprendera a fazer em sua vida de político, que era simplesmente isso: ser político; saber se aproveitar das situações em qualquer circunstância em proveito de si mesmo, valendo-se da arte de saber fazer os outros acreditarem que estava sendo honesto, embora ele fosse o primeiro a acreditar no contrário.
- Gumercindo! Ser político é saber, diante do público, chupar limão sorrindo ou comer sal como se fosse açúcar. Nunca se esqueça disso! Dizia-lhe o falecido.
No início era difícil, mas depois tirava tudo isso de letra, graças aos ensinamentos do seu amigo, o qual, com certeza nunca lhe ensinara o sétimo pulo, que não era bobo. Quando o via meio borocoxô sempre lhe dizia: calma amigo, a sua hora vai chegar. E dando-lhe um tapinha nas costas ia logo se afastando, antes que ele lhe pedisse para dar-lhe alguma mãosinha.
Então a sua consciência, se é que ainda existia, lhe permitia fazer qualquer coisa dessas com um pé nas costas. E foi assim que debulhado em lágrimas e engasgado com os falsos soluços, ele fez o seu comovente discurso à beira do túmulo daquele que insistiu em chamar tantas vezes de amigo, talvez tentando convencer-se a si mesmo de que era verdade.
Como diria Quincas Borba, a morte do colega nada mais foi do que um princípio de humanitas..., Quem sabe se daqui pra frente ele vai realmente começar a subir, como sempre desejou? Sem a incômoda pedrinha no sapato!

Júnia - out./2010
Autor: Junia Pires Falcao


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