RESENHA DESCRITIVA: Modos de Produção e Modos de Percepção Artísticos



RESENHA DESCRITIVA

BOURDIEU, Pierre. A Economia das trocas simbólicas. 5. ed. São Paulo: Perspectiva, 2001. p.269-294.

Maria Lúcia Wochler Pelaes

Modos de Produção e Modos de Percepção Artísticos

Pierre Bourdieu é caracterizado como um importante crítico social, que desenvolveu teorias relacionadas à sociologia dos sistemas simbólicos, propondo uma análise das condições de valor estabelecidas pelos diferentes sistemas simbólicos, como a arte e a linguagem, dentro do estudo da cultura, como observa Miceli,"(...)em sua qualidade de instrumento de comunicação e conhecimento(...), como um instrumento de poder, isto é, de legitimação da ordem vigente" (introdução;p.VIII).
O autor introduz o capítulo referindo-se as obras de arte "como produtos da atividade humana socialmente designados", que podem tornar-se alvo de diferentes percepções, desde a percepção estética que carrega em si um sistema de códigos específicos, com um significado socialmente estabelecido, até uma percepção constituída de uma lógica semelhante àquela desenvolvida na vida cotidiana, aplicada à percepção dos objetos cotidianos (p.269).
Ainda no primeiro parágrafo o autor cita Panofsky, referindo-se a obra de arte como pertencente a uma classe de objetos, que teriam sua percepção guiada por uma "intenção estética", ou seja "percepção da sua forma muito mais que da sua função", sendo que a "intenção" a que o autor se refere, transpõe o universo da produção dos objetos estéticos, constituindo "(...) ela própria o produto das normas e das convenções sociais que concorrem para definir a fronteira sempre incerta e historicamente mutável entre os simples objetos técnicos e os objetos de arte(...)" (p.270).
O autor inicia o segundo parágrafo estabelecendo uma relação entre a intenção que movimenta a apreciação da obra de arte e as normas de abordagem artística instituídas num determinado contexto histórico-social e que funcionam como um sistema de códigos que rege o campo da arte e que caracteriza o sistema de bens simbólicos. Tais códigos só são acessíveis a quem detêm as categorias de percepção e de apreciação estética.
Segundo Bourdieu (p.271):

"A apreensão e a apreciação da obra dependem tanto da intenção do espectador que, por sua vez, é função das normas convencionais que regem a relação com a obra de arte em uma dada situação histórica e social, como uma aptidão do espectador em conformar-se a estas normas, vale dizer, de sua competência artística".

No terceiro parágrafo o autor comenta que a "intenção estética", capaz de reconhecer os objetos de arte como obras de arte, deriva de uma necessidade arbitrária que impõe uma categoria de disposições normativas, reconhecidas como legítimas, dentro de um arbitrário cultural, que são difundidas através da educação como um produto histórico que deve ser "reproduzido".
Segundo o autor (p.272):

"Na medida em que a cultura (o sentido de competência) que não passa de interiorização do arbitrário cultural, a educação familiar ou escolar tem por efeito mascarar de modo cada vez mais acabado, através da inculcação do arbitrário, o arbitrário da inculcação, ou seja, o arbitrário das significações inculcadas e das condições de inculcação".

No quarto parágrafo o autor comenta que a maneira legítima de abordar uma obra de arte reflete os cânones de uma "estética pura", que se origina nas condições sociais de produção de uma preferência ou um "gosto", considerado como um signo de distinção social (p.272-273).
No quinto parágrafo o autor comenta que a constituição de um campo artístico relativamente autônomo ocorre simultaneamente à "explicitação e à sistematização dos princípios de uma legitimidade propriamente estética, capaz de impor-se tanto na esfera de produção como na esfera da recepção da obra de arte", conferindo a obra de arte e ao artista a possibilidade de, utilizando as normas estabelecidas anteriormente, subverter essas mesmas normas, criando novas disposições de percepção estética constituindo "o produto de uma transformação do modo de produção artístico" (p.273).
O autor cita Arnold Hauser no sexto parágrafo, referindo-se a uma relação com a obra de arte que evoca uma "atitude puramente estética", que expulsa da pintura todo conteúdo narrativo, como caracteriza a pintura impressionista, conferindo ao pintor o direito de estabelecer uma relação puramente pictórica com a representação do objeto e de sua relação subjetiva com o próprio objeto, estabelecendo também um novo padrão de apreciação e apreensão da obra pelo espectador, que caracteriza um momento de mudança no próprio estilo de vida do final do século XIX, marcado por uma noção de arte como modelo de vida, associada à extravagâncias dispendiosas para o diletante, voltado para o culto da forma e da maneira (p.273-274).
Com a afirmação da autonomia da arte e do artista, levada às últimas conseqüências, a arte pós-impressionista "exige categoricamente do espectador uma disposição propriamente estética que antes lhe era exigida apenas de maneira condicional". Com isso o artista moderno assegura a si mesmo o domínio de sua arte e introduz uma contradição insuperável: inscreve na própria linguagem da obra de arte uma reflexão sobre a sua linguagem, através do uso eclético de diferentes formas de expressão, assim como pela destruição das formas convencionais (p.274).
Ainda no sétimo parágrafo e na mesma página citada acima, o autor comenta:
"(...) a arte moderna acaba por fazer a denúncia de si própria como efeito arbitrário da arte e do artifício, e passa a exigir uma leitura paradoxal que implica o domínio do código de uma comunicação tendente a colocar em questão o código da comunicação".

Com a autonomia da arte, como o autor apresenta no oitavo parágrafo, os artistas parecem reivindicar um controle exclusivo sobre sua arte, estabelecendo uma "competência artística" que parece realizar, no plano simbólico, a inversão da relação estabelecida nos demais campos, entre a fração dominante e a camada de artistas e intelectuais. Neste sentido, a "arte pura" nivela no mesmo plano todos os espectadores, permitindo um acesso limitado ao código que possibilita o conhecimento estético da obra, inclusive da fração não intelectualizada da camada dominante (p.275-276).
No nono parágrafo, o autor comenta a "neutralização" operada pela "arte pura", através da busca de um olhar puramente estético e voltado ao interesse puro da forma, que revestida de aparente universalidade, constituí apenas um dos mecanismos de reprodução de um consenso cultural, instituído no interior das classes dominantes e que dispõe as regras necessárias para a admissão de determinados autores e obras artísticas no "panteão da cultura consagrada" (p.276-278).
No décimo parágrafo o autor tece mais comentários sobre a "neutralização" operada pela percepção "pura" da arte, que de certa forma protege o espectador contra experiências ingênuas como a revolta. Cita também o poder mágico que a obra de arte adquire e que transcende à intenção subjetiva do artista, que mesmo buscando representar na arte a destruição da própria arte, tende se não a enaltecê-la ainda mais (p.279-280).
No décimo primeiro parágrafo o autor desenvolve comentários sobre a "ideologia da percepção ou da interpretação criadora", constituída como uma representação carismática que tende a atribuir à vocação artística, seja pela produção criadora ou pela aptidão de entendê-la e conhecê-la, um "mistério" consagrado a alguns eleitos. A instituição escolar, por uma relação de dependência com a camada dominante, tende ao "culto rotinizado do gênio", reproduzindo os ideais burgueses, que ampliam as diferenças econômicas, pela posse de bens simbólicos, como a posse de obras de arte (p.280).
Segundo o autor (p.281):

"O esquecimento das condições sociais de produção e reprodução da disposição pura exigida pelas obras de arte e das categorias de percepção que se apresentam como categorias a priori de uma estética universal, é uma das premissas em que se fundam as funções interessadas pelo desinteresse e os lucros propiciados pelos consumos simbólicos (...) uma vez que transformam as diferenças de fato em diferenças legítimas".

A obra de arte considerada como um bem simbólico, como o autor comenta no décimo segundo e décimo terceiro parágrafos, só existe, enquanto tal, para quem conhece os meios necessários para fazer sua leitura e interpretação corretas, isto é, para quem domina o código historicamente constituído e socialmente reconhecido num determinado contexto social, garantindo uma percepção estética da obra de arte, que difere da percepção ingênua, fundada numa interpretação denotativa, baseada em vivências cotidianas (p.282-283).
Ainda nos parágrafos citados, o autor explicita que a aptidão de decifrar características estilísticas é função de uma competência artística somente obtida com a contínua convivência com as obras de arte, de maneira a atribuir-lhes traços de originalidade ou semelhança com obras anteriores ou "obras-testemunha", "consciente ou inconscientemente retidas porque apresentam em grau particularmente elevado as qualidades reconhecidas, de maneira mais ou menos explícita, como pertinentes em um sistema determinado de classificação" (p.283-284).
Tal sistema se organiza segundo um conjunto de representações artísticas peculiares a um sistema de classificação dominante, numa determinada época. Com isso os indivíduos de um determinado período histórico possuem uma imagem privada de uma certa obra, segundo os princípios da imagem pública dessa obra, "que é produto dos instrumentos de percepção historicamente constituídos e, portanto, historicamente mutáveis, que lhes são fornecidos pela formação social de que fazem parte (...)" (p.285).
No décimo quarto parágrafo é abordada a questão do distanciamento entre o conhecimento do código artístico disponível para um indivíduo particular e aquele que a obra de arte objetivamente exige. Cada obra constitui um capital artístico objetivado, que abrange códigos desigualmente complexos e refinados, passíveis de aprendizagem institucionalizada ou não e de outro lado, cada indivíduo possui uma determinada capacidade de apreensão do código proposto pela obra, sendo em determinadas obras, insuficiente para a correta interpretação (p.286).
No décimo quinto parágrafo o autor enfatiza que "a estética" comum entre as classes mais desprovidas de capital cultural, se caracteriza mais pela privação do conhecimento artístico, do que pela recusa, sendo extraída de numa percepção cotidiana, que formula o valor da obra segundo um código familiar, utilizado para o deciframento dos objetos cotidianos, constituindo aquilo que segundo Bourdieu, a partir da citação de Panofsky, é observado como uma apreensão ingênua fundada na "experiência existencial", isto é, nas propriedades sensíveis da obra ou na experiência emocional baseada nessas propriedades, estando fadadas a uma "estética" funcionalista, constituindo seu ethos de classe (p.287-288).
Nos dois parágrafos, seguintes, décimo sexto e décimo sétimo, o autor afirma que tanto a compreensão baseada na interpretação assimilativa, utilizando os recursos de uma "estética popular", quanto à interpretação feita por um observador cultivado, mas que utiliza esquemas de percepção e apreciação relacionados ao convívio com obras de períodos anteriores, não se difere quanto à utilização do sentido correto do código para o deciframento da obra observada, ainda que o espectador mais avisado detenha maior compreensão do processo. Isso se dá porque, segundo o autor, "lemos o que vemos em função do que sabemos a respeito da maneira, variável segundo as condições históricas, de expressar por formas os objetos e os acontecimentos históricos" (no caso específico da interpretação de determinada obra de conteúdo religioso citada no parágrafo) (p.290).
É possível concluir que o grau de deciframento e interpretação de uma obra de arte depende do repertório do espectador, o que determina maior ou menor proximidade aos códigos socialmente constituídos, assim como maior ou menor intimidade com o gênero específico de uma determinada obra contemporânea, que requer uma atualização e adaptação dos códigos anteriores como uma referência ou uma "não referência", quando a obra se situa no plano da contestação dos códigos estabelecidos ou numa reflexão em relação à própria linguagem estética.
No parágrafo subseqüente, décimo oitavo, o autor comenta sobre as condições de acesso a obra de arte, supondo uma ruptura com a experiência inicial da obra, isto é, como se ela fosse imediatamente dotada de sentido. O deciframento da obra de arte depende, segundo o autor, do "(...) conjunto das aprendizagens insensíveis que acompanham o convívio prolongado com as obras de arte", desenvolvendo, no espectador cultivado, uma noção de familiaridade tal que ignore o próprio trabalho de familiarização, considerando como natural e espontânea a forma elaborada, que na verdade reflete as referências de uma cultura erudita (p.290).
O autor comenta, no décimo nono parágrafo, "o conservadorismo estético" comum entre as frações da classe dominante que mais distantes do domínio dos códigos exigidos pela arte moderna (que apresenta "a autonomia absoluta do modo de representação", configuram uma tendência a rejeitá-la, atitude semelhante à das classes populares, marcadas pelo gosto ao "realismo", na recusa em romper com os códigos conhecidos, baseados em obras que apresentam uma interpretação mais objetiva do mundo e, portanto, mais próxima das representações conhecidas.
O autor conclui, no vigésimo parágrafo, que o grau em que uma obra contemporânea se torna legível depende do quanto o espectador domina o código exigido pela obra, seja pela aprendizagem e convivência com obras de arte, por um período suficiente, como pela capacidade de atualizar um habitus cultivado, proporcionando a familiaridade com os novos códigos.
Segundo o autor (p.294):

"Se as formas mais inovadoras da arte não-figurativa só se deixam captar por uns poucos virtuoses (...), é porque exigem a aptidão necessária para romper com todos os códigos, desde o código da percepção cotidiana, e porque tal disposição generalizável e transferível só pode ser adquirida através do convívio com obras que exigem códigos diferentes e através da experiência da história da arte enquanto sucessão de rupturas com os códigos estabelecidos".
Autor: Maria Lúcia Wochler Pelaes


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