COMENTÁRIOS ACERCA DAS FUNÇÕES DO PLANO DIRETOR DEFINIDAS NA LEI 10.257/2001 (ESTATUTO DAS CIDADES)



1. INTRODUÇÃO

O direito urbanístico, como ramo da ciência jurídica, origina-se da ciência do urbanismo, a qual se ocupa com a sistematização e desenvolvimento da cidade ? e do campo ? tanto nos seus aspectos físico-territoriais, como nos estruturais, políticos e socioeconômicos.

Destarte, focando justamente no desenvolvimento da cidade, bem como na sua organização, tem-se, no contexto do ordenamento jurídico brasileiro, o Plano Diretor, capítulo III do Estatuto da Cidade, Lei 10.257 de 10 de julho de 2001, abrangendo os artigos 39 a 42 do referido diploma legal.

Conforme se depreende da leitura do caput dos arts. 39 e 40 da lei em análise, o Plano Diretor é instrumento básico da política de desenvolvimento e expansão urbana pelo qual se atende à função social da propriedade urbana, assegurando o atendimento das necessidades dos cidadãos quanto à qualidade de vida, à justiça social e ao desenvolvimento das atividades econômicas.


2. O PLANO DIRETOR E A FUNÇÃO SOCIAL DA PROPRIEDADE.

Nos termos da brevíssima definição do Plano Diretor apresentada na introdução supra, dentre os diversos tópicos que podem ser discutidos a partir daquela, há de se evidenciar a íntima relação entre o Plano e a função social da propriedade.

O Plano Diretor é uma regulamentação determinada pela Constituição Federal, em seu art. 182, em trecho da Lei Maior voltado especificamente para a Política Urbana. Há de ser aprovado pela Câmara Municipal, sendo obrigatório para todas as cidades com mais de vinte mil habitantes.

A função social da propriedade, sob as várias óticas em que pode ser entendida, trata-se também de uma derivação específica do Princípio da Supremacia do Interesse Público sobre o Interesse Privado no intuito de limitar as pretensões descontroladas dos princípios liberalistas, reduzindo a tensão social causada pela desigualdade entre as diferentes classes econômicas da sociedade. Buscando mais especificidade na conceituação, pode-se afirmar que se trata de forma pela qual a propriedade, seja privada ou não, deve atender a alguns requisitos para que seja, ao máximo, aproveitada em benefício não só de seu dono. Fazendo-se, logicamente, as devidas ressalvas para o direito à propriedade individual.

Trata-se, portanto, de princípio fundamental de caráter constitucional, haja vista sua expressa menção no art. 5º, XXIII, da Magna Carta. Vejamos:

Art. 5º - Todos são iguais perante a lei, sem distinção de qualquer natureza, garantindo-se aos brasileiros e aos estrangeiros residentes no País a inviolabilidade do direito à vida, à liberdade, à igualdade, à segurança e à propriedade, nos termos seguintes:
(...)
XXIII - a propriedade atenderá a sua função social;

Cientes do que se trata a função social da propriedade e revendo a definição do Plano Diretor, conclui-se que este é meio para atingir aquela, com ênfase para as diretrizes gerais apresentadas no art. 2º da Lei 10.257/2001, como, por exemplo, direito à moradia, saneamento ambiental, infra-estrutura urbana, transporte, serviços públicos, trabalho e lazer.

Entretanto, há de se esclarecer que o aproveitamento da propriedade para que esta atinja a sua função social abrange também medidas indiretamente sociais, quais sejam, políticas, estruturais e econômicas. Logo, em seu corpo, o Plano deve definir diretrizes orçamentárias a fim de se impulsionar também a expansão urbana, nos termos do art. 40, § 1º do Estatuto da Cidade.


3. OBRIGATORIEDADE DO PLANO DIRETOR.

O art. 41 do Estatuto das Cidades determina as situações em que o Plano Diretor é obrigatório, sendo grande parte dos critérios para esta obrigatoriedade suficientemente objetivos, dispensando longas explanações. Vejamos in verbis o dispositivo mencionado:

Art. 41. O plano diretor é obrigatório para cidades:
I ? com mais de vinte mil habitantes;
II ? integrantes de regiões metropolitanas e aglomerações urbanas;
III ? onde o Poder Público municipal pretenda utilizar os instrumentos previstos no § 4o do art. 182 da Constituição Federal;
IV ? integrantes de áreas de especial interesse turístico;
V ? inseridas na área de influência de empreendimentos ou atividades com significativo impacto ambiental de âmbito regional ou nacional.
§ 1o No caso da realização de empreendimentos ou atividades enquadrados no inciso V do caput, os recursos técnicos e financeiros para a elaboração do plano diretor estarão inseridos entre as medidas de compensação adotadas.
§ 2o No caso de cidades com mais de quinhentos mil habitantes, deverá ser elaborado um plano de transporte urbano integrado, compatível com o plano diretor ou nele inserido.

Pouco resta para discorrer a respeito dos incisos I e II do dispositivo transcrito. Contudo, cabem algumas observações para os demais incisos e parágrafos.

Os "instrumentos previstos no § 4º do art. 182 da Constituição Federal" constituem medidas pelas quais o Poder Público municipal, mediante lei específica para área incluída no Plano Diretor, pode exigir do proprietário do solo urbano não edificado, subutilizado ou não utilizado para que promova o seu aproveitamento. De tais medidas, tem-se destaque para a progressividade do IPTU ? Imposto sobre a Propriedade Predial Territorial Urbana e a desapropriação com pagamento mediante títulos da dívida pública de emissão previamente aprovada pelo Senado Federal, com prazo de resgate de até dez anos, em parcelas anuais, iguais e sucessivas, assegurados o valor real da indenização e os juros legais. Ressalte-se aqui a especificidade na forma de pagamento pela desapropriação, a qual apresenta maior complexidade que a tradicional "justa indenização" apresentada na legislação do Direito Administrativo.

As cidades integrantes de áreas de especial interesse turístico são aquelas que se enquadram no descrito nos incisos do art. 1º da Lei 6.513 de 20 de dezembro de 1977. Numa conceituação resumida, o art. 3º desta mesma lei, define que:

Art . 3º - Áreas Especiais de Interesse Turístico são trechos contínuos do território nacional, inclusive suas águas territoriais, a serem preservados e valorizados no sentido cultural e natural, e destinados à realização de planos e projetos de desenvolvimento turístico.

Ainda que o conceito aparente pouca eficácia, parece-nos que a intenção do legislador foi garantir a preservação de regiões cujas características são suficientemente relevantes para o desenvolvimento da atividade turística, harmonizando o seu desenvolvimento e preservação. Ficou, portanto, para as legislações "locais", como a estadual, por exemplo, uma melhor delimitação dessas áreas. No Estado do Paraná, tem-se a Lei Estadual nº 12.243, de 31 de julho de 1998 , a qual considera áreas especiais de interesse turístico, áreas e localidades situadas nos municípios de Antonina, Guaraqueçaba, Guaratuba, Matinhos, Morretes, Paranaguá e Pontal do Paraná.

O inciso seguinte, a respeito de áreas de influência de empreendimentos ou atividades com significativo impacto ambiental de âmbito regional ou nacional, segue parte da lógica apresentada no inciso anterior. A necessidade do Plano Diretor para regiões deste tipo se faz na medida em que a relevância de determinadas atividades atraídas por características da região não a afetem de modo a desnaturá-la ou destruí-la. Novamente, buscou-se uma política de preservação aliada à expansão. Complementando a regulamentação destas áreas, o § 1º do art. 41 determina que o Plano Diretor trace medidas de compensação, auxiliadas por recursos técnicos e financeiros, para as atividades de impacto que venham a acontecer na região.

Por fim, tem-se a hipótese das grandes cidades, com mais de quinhentos mil habitantes, nas quais o Plano Diretor deve conter um plano de transporte integrado ou deve haver um plano deste tipo à parte obviamente compatível com o Plano Diretor.

4. CONTEÚDO MÍNIMO DO PLANO DIRETOR.

Finalizando as disposições legais básicas a respeito do Plano Diretor, o art. 42 da Lei 10.257/2007 traz as seguintes determinações:

Art. 42. O plano diretor deverá conter no mínimo:
I ? a delimitação das áreas urbanas onde poderá ser aplicado o parcelamento, edificação ou utilização compulsórios, considerando a existência de infra-estrutura e de demanda para utilização, na forma do art. 5o desta Lei ;
II ? disposições requeridas pelos arts. 25, 28, 29, 32 e 35 desta Lei;
III ? sistema de acompanhamento e controle.


As áreas que deverão ser delimitadas, nos termos do dispositivo transcrito, tem o intuito de complementar a ação punitiva do art. 182, § 4º da CF/88, já comentado neste trabalho. Tem-se aqui claramente o propósito de fazer valer a função social da propriedade, determinando-se previamente no Plano, as áreas inutilizadas, subutilizadas ou não edificadas que poderão sofrer intervenção.

Já no inciso II, temos nova ênfase ao caráter instrumental do Estatuto da Cidade e sua condição de intermediador relevante para a viabilização da função social da propriedade. As referências diretas a dispositivos anteriores da lei confirmam tal tese, uma vez que é mencionada a necessidade de regular sobre o direito de preempção (art. 25), sobre a outorga onerosa do direito de construir (arts. 28 e 29), sobre operações urbanas consorciadas (art. 32) e sobre transferência do direito de construir (art. 35).
O direito de preempção se traduz na preferência do Poder Público Municipal para a aquisição de imóvel urbano objeto de alienação onerosa entre particulares. Parte, portanto, da premissa de que o referido ente federativo fará o melhor aproveitamento do prédio no atendimento à sua função social.

A outorga onerosa do direito de construir, por vezes chamada de "solo criado", trata-se de concessão emitida pelo Município para que o proprietário de determinado imóvel edifique acima do limite estabelecido pelo coeficiente de aproveitamento básico (indicador do quanto que pode ser construído em um lote sem que a edificação signifique uma sobrecarga infra-estrutural para o Poder Público). Ressalte-se aqui a necessidade de contrapartida financeira a ser prestada pelo beneficiário, pois este irá edificar área maior do que a inicialmente prevista e suportada estruturalmente.

Das operações urbanas consorciadas, ainda que haja várias formas de se acontecer, resumir-se-ão sempre a intervenções específicas sob a coordenação do Poder Público, contando com a participação da iniciativa privada, além de moradores e demais relacionados ao local da ação. Ocorrerão sempre no intuito de melhoria, seja estrutural, social ou ambiental.

Já a transferência do direito de construir dá ao proprietário de determinado lote a prerrogativa de fazer uso de seu potencial construtivo em lote diverso ou de vendê-lo a outro proprietário. Busca-se aqui minimizar a pressão imobiliária em algumas regiões, por questões de preservação ou interesses divergentes do proprietário, deslocando-as para outras onde as densificações sejam necessárias ou melhor toleradas.

Por fim, no inciso III, tem-se o Sistema de Acompanhamento e Controle, o qual cuida da própria garantia de aplicação do Plano Diretor. Tal sistema deverá antever instâncias de gestão e de planejamento para implementação e revisão do Plano, incentivar a chamada Gestão Participativa, integrando as três esferas do Poder Público e a sociedade civil, garantir livre acesso às informações territoriais e controlar a aplicação dos instrumentos do Plano.

4. CONCLUSÕES.

Diante do apresentado, percebe-se predominantemente o aspecto instrumental do Plano Diretor como figura chave no cumprimento da função social da propriedade. Há de se evidenciar que tal conceito, conforme discorrido, abrange tanto a propriedade urbana como a rural.

Sobre os requisitos apresentados, observa-se que não se tratam de excludentes para que apenas algumas localidades sejam beneficiadas com a elaboração e aplicação do Plano Diretor, mas são critérios que priorizam cidades e áreas nas quais a necessidade de uma política do tipo é absolutamente imprescindível.

As diretrizes mínimas do art. 42 correspondem a uma padronização mínima necessária para que o Plano atenda a questões fundamentais comuns a várias localidades de nosso País. Destarte, a partir de planos de outras cidades, um município pode ter referências na elaboração do seu, além de auxiliar no aperfeiçoamento de outros planos, uma vez que todos abordarão, no mínimo, os aspectos indicados no dispositivo referido.


5. REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS.


FIORILLO, Celso Antônio Pacheco, Estatuto da Cidade Comentado. São Paulo. Saraiva, 2002

MEIRELES, Hely Lopes. Direito Municipal Brasileiro. São Paulo: Malheiros, 1990.

SILVA, José Afonso da. Direito urbanístico brasileiro. 3. ed. São Paulo: Malheiros, 2000.

Autor: João Cavalcante Netto


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