Steak de capivara atropelada



Steak de capivara atropelada
(baseada numa história real)



-Ô sexta-feira que demorou prá chegar, amanhã tô de folga, graças a Deus!!
Lá ia apressado e contente o Tunico, doido prá chegar em casa, doido prá tomar aquela gelada no fim de semana, que prometia, porque o vizinho do terreno dos fundos, o Manoel Crispino, resolveu fazer um churrasco e chamou quase todos os vizinhos. Só que não ia ser assim de graça, sabe? Ele, com a sutileza que lhe era peculiar, foi logo avisando: "Aí seus vagabundo, eu empresto meu terreno mas cada um vai ter que trazer, ou 1kg. de carne, ou 3 cervejas, pinga, vermouth, conhaque, o que for, que é prá molhar a goela de vocês, seus pinguço!". Tunico pensou em comprar a carne, sua parte iria aliviar um pouco da fome daquela vizinhança , todos no mesmo barco, todos sobrevivendo do jeito que dava, alguns vendendo o jantar de hoje para poder comprar o almoço de amanhã. Periferia distante, ocupação recente, só 3 Km distante da linha do trem. Ruas ainda sem nome, casas ainda sem números. O trem era mais barato só que tinha que descer bem longe, nem pensar em um ramal ou uma estação nova, aquele bairro não existe oficialmente.
Tunico era ajudante de marceneiro, não dos melhores, costumava faltar de vez em quando, principalmente nas segundas após um churrasco comunitário bem caprichado, onde a pouca carne disponível convivia com muita branquinha e muita breja barata. As figuras cambaleantes que tortuosamente conseguiam chegar às suas casas no entardecer de um domingo, quase sempre esqueciam de acordar para trabalhar no dia seguinte. Pelas estatísticas oficiais o desemprego naquele triste pedaço de mundo era sempre alto. Por que será?
Linha reta, linha do trem, caminhar pelas margens era mais seguro. A fila de caminhantes crescia sempre, pois a especulação imobiliária tinha uma predileção especial por empurrar para longe quem não está habilitado a conseguir um financiamento e tornar-se depois de muitos anos o feliz proprietário de seu teto. Um ano e meio atrás o Tunico ouviu falar de uns terrenos baratos, com uma prestação que finalmente dava para caber no bolso da peãozada, conforme havia dito seu primo Ribamar. "Que terrenos são esses ô Ribamar?".
Diz que têm um sujeito lá no Jardim Mississipi, já tão chamando o bairro desse nome, que tá vendendo uns lotes. Diz que têm contrato e tudo, tudo legal, tudo direitinho.
E o Tunico decidiu se meter nesse negócio, sonhando com uma casinha só sua. Já estava mais do que farto da vaga onde morava desde que chegou do Piauí: longe, suja e insegura. Fez as contas com uma certa dificuldade, pois matemática não era seu forte, chegou a conclusão que o que ganhava era suficiente e comprou o tal do lote naquela posse. Logo se viu cercado pelos vizinhos, que sabendo da notícia logo correram ávidos para garantir seu pedacinho de terra. Em pouco tempo aquela comunidade simples foi formada, pessoas muito simples sem muitas oportunidades na vida, embrutecidas pelas dificuldades sempre maiores para quem têm pouca escolaridade e uma crença persistente na ajuda divina. Em menos de um ano várias crianças já haviam nascido, juntando-se à muitas outras que corriam soltas pelas ruas de terra e lama que desembocavam num campinho de peladas próximo da pedreira desativada, onde se dizia ainda estar cheia de cartuchos de dinamite para detonação. Como centro aglutinador da vida comunitária havia um templo evangélico comandado pelo pastor Dejair Petronilho, homem de fala fácil e olhar astuto, faro aguçado para negócios, dono de uma borracharia, uma revenda de veículos, uma padaria e uma imobiliária que comercializava terrenos na região, quase sempre em situação irregular. Com tantas ovelhinhas esperando um pastor que as conduza foi só juntar a fome com a vontade de comer.
Ribamar, primo de Tunico, era motorista de caminhão , e já perdera a conta das entregas que haviam feito na vizinhança. Sentia orgulho de si mesmo ao ver as casinhas que iam subindo ao redor da sua , a primeira daquele bairro. Sua esposa Risoneide estava sempre atarefada em limpar e manter limpa sua casinha recém construída, somando seu orgulho ao orgulho do marido. Três crianças completavam seus afazeres de mãe e dona de casa. E a vida seguia seu curso, aos tropeços, pelos dias que se seguem nas vidas destas pessoas que moram longe, que se vestem modestamente, que se expressam com dificuldade. Outros primos e aparentados foram se chegando, no fundo era como se fosse um grande clã de migrantes unidos por laços de sangue, embora não muito firmes.
Tunico se afeiçoara bastante aos filhos de seu primo, seus priminhos, crianças ativas e espertas. Ele gostava muito de crianças, e de quando em quando cruzava sua cabeça a ideia de ser pai. Risoneide começou a ver com bons olhos a atenção que Tunico distribuía aos meninos, já que o pai, de temperamento muito severo e muitas vezes ríspido, sem contar o fato de ser muito ausente, fornecia pouco afeto e pouco carinho para seus rebentos. "Num tem que ter muito chamego cum fio ômi não, se não fica tudo frouxo", esta era a síntese de suas teorias referentes à criação de filhos do sexo masculino, conhecimento milenar que passa de pai para filho e uma tradição de sua família nordestina. Tunico pensava um pouco diferente, e segundo seu primo, tinha o coração muito mole. "Esse meu primo é boa pessoa, mas é mole feito uma manga passada" dizia Ribamar para sua esposa Risoneide. Sem conhecê-lo bem, ela assentia com a cabeça, pois não gostava de contrariar o marido. Em pouco tempo de convívio mais próximo ela foi percebendo que não era bem assim, Tunico era muito atencioso e prestativo quando estava sóbrio. Quando bebia ficava alegre e levemente desbocado, depois se prostrava numa concha de melancolia, com um olhar muito distante. Risoneide percebia uma ponta da tristeza muito grande naqueles olhos quase fechados e encharcados de álcool.
Ribamar passava a maior parte do seu tempo fora de casa. As vezes fazia entregas no litoral, em Sorocaba, no Paraná e por este país afora, onde o serviço aparecece.. A vida ao volante de um caminhão é muito puxada, temos de admitir, muito da energia e do bom humor ficam pelos buracos e curvas fechadas pelo caminho. Ribamar chegava em casa e nenhum sorriso passava nem de leve pelo seu rosto cansado e curtido, sujo da poeira e da fuligem. Flores não crescem sem um mínimo de cuidado, Risoneide, ainda que uma flor de cactus seca, se ressentia desta distância e desta ausência, mesmo que o marido estivesse em casa , no sofá, roncando profundamente.
Tunico se acostumara a passar na casa do primo na volta para casa, para ver as crianças, brincar um pouco, contar suas histórias, falar de futebol com o mais velho. E trocar um dedo de prosa com Risoneide. Ela nascera numa cidade próxima da dele, possivelmente eram até primos já distantes, as saudades da terra natal eram comuns aos dois, uma melancolia pousava suas asas delgadas nas conversas saudosas dos dois vizinhos, os dois deslocados numa terra estranha às suas origens, ainda que os vizinhos, quase todos conterrâneos, preservassem um pouquinho que seja do sabor e do cheiro de seus locais de nascimento. E a vida transcorria, restrita e humilde, crivada de percalços e alimentada pela insegurança e a incerteza.
A igreja evangélica florescia, com seus cultos estridentes. As mulheres do bairro eram presença assídua, no esforço de trazer suas ovelhas desgarradas, melhor dizer seus bodes desgarrados, bodes bêbados de sábado e domingo, bebendo as contas que deveriam ser pagas na semana seguinte. A fé é um mistério e um poder que não tem explicação, mesmo na ignorância e na precariedade ela prospera, talvez mesmo em função da ignorância e da precariedade ela floresça, e sustente as pequenas esperanças e amplifique as pequenas alegrias daquelas mulheres tão simples. De volta para casa após o culto, a visão de um marido bêbado e sujo pode ser mais palatável e aceitável quando se é plantada firmemente no íntimo a ideia da salvação no poder divino e nas alegrias do pós-vida. O pastor Dejair Petronilho ria satisfeito por dentro, pois mais um nó na rede fora apertado, e seu poder e sua influência crescia a cada dia. O Congresso que o aguardasse. Não se pode deixar de reconhecer que ele era um homem que enxergava longe.

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Na mesma sexta-feira do início da história, Tunico descera do trem e vinha caminhando apressado, feliz com o seu pouco, feliz porque era sexta-feira e o churrasco de domingo prometia. Mas o que era aquilo?
Cerca de vinte metros a sua frente, na margem dos trilhos do linha férrea, um amontoado de pelos e carne retorcida chamou sua atenção. Já cercado por moscas, uma carcaça indefinida se espalhava pelo chão. Tunico chegou perto, apurou o olhar e pensou: " Uai, deve ser uma capivara, pelo tamanho..." Cerca de uns vinte quilos de carne de graça lembraram ao rapaz que quem quisesse participar do churrasco deveria levar o seu quinhão. Duas faltas em duas semanas fizeram um estrago em seu orçamento, o dinheiro estava mais curto que o normal, mas a vontade de ir no churrasco estava martelando sua cabeça. "E aí, chegar de mãos abanando vai pegar muito mal, meu primo vai falar até..." E principalmente, o que mais o estava afligindo era saber que Risoneide sentiria sua falta. Ela insistira para o vizinho Manoel chamar o primo, mesmo sabendo que ele andava liso que só.
O aspecto daquele amontoado de carne destroçada dava náusea de ver ao longe. De perto então nem se fala, mas Tunico pensou lá com seus miolos: "Hum.. tá feio que só, mas se jogar um sal grosso bem forte, e deixar torrando muito tempo os micróbios vão morrer tudinho, não vai fazer mal a ninguém. Além disso aquele povo tá acostumado a comer cada coisa que Deus me livre! Acho que o trem pegou faz pouco tempo, parece que tá quente ainda" De dentro de sua mochila ele tirou um saco plástico para lixo, daqueles de 100 litros, preto e reforçado. Embrulhou aquela carne in natura como se fosse um açougue a céu aberto e saiu andando todo contente com sua descoberta. Agora chegaria no churrasco do vizinho com as mãos cheias e arrancaria assobios de admiração da vizinhança.. E um sorriso de aprovação de Risoneide.
Antes de entrar em casa, ele passou na vendinha do Nicolau e comprou fiado uns dois quilos de sal grosso. Salgou bem a carcaça, jogou um vinagre por cima e deixou pendurada no quintal, curtindo bem até o domingo.

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Já há algumas semanas a presença de Tunico na casa de seu primo, e na ausência de seu primo, vinha ficando muito constante, constante até demais segundo a opinião da Socorro, a vizinha da casa de trás, que por ter poucos afazeres, ou por gostar pouco dos afazeres que tinha, gastava grande parte do seu tempo observando os vizinhos, principalmente Risoneide, a quem nutria uma inveja pouco escondida, pois anos atrás Socorro havia se insinuado fortemente para Ribamar, mas este ao final havia escolhido Risoneide. Quis o destino que todos viessem morar bem próximos, tão próximos que as duas acabaram por se tolerar meio a contragosto, sabe como é né?, a comunidade estava acima das desavenças e das invejas, e em algumas ocasiões uma já havia precisado da outra, um filho doente aqui, um pedaço de carne seca aí, o teto que desabou em parte na casa da Socorro, que Risoneide rápida e prestativa chamou os vizinhos para que viessem acudir a vizinha fofoqueira. Risoneide mantinha, ainda que com dificuldades, um coração puro.
Só que Socorro mantinha um coração cada vez mais carregado de maledicências. E se auto-convidara para o churrasco de domingo. Já na quinta-feira ela largara sua casa com tudo por fazer, andara os três longos quilômetros até a estação de trem , e se bandeara até Cuapevi para comprar uma roupa novinha, novinha para usar no dia do churrasco. E também comprara um brinco novo, um baton roxo vergonha e esmalte combinando com a roupa nova. Queria sobressair entre suas vizinhas, todas muito mal tratadas, todas as que se esmeravam por manter a casa em ordem e as crianças arrumadas, tarefa difícil e ingrata. Trazia consigo 2 litros de aguardente e uma receita nova de batida de limão e pimenta, que ouvira dizer que levantava até a Múmia do Faraó, muito embora ela não soubesse quem era este faraó, talvez algum pai-de-santo de algum terreiro da Bahia. Além da aguardente ela carregava bem guardada uma ideia e uma vontade de causar confusão no fim de semana.
O domingo se aproximava e a expectativa nos vizinhos começara a criar uma eletricidade que se acumulava no ar, entre aquelas casas muito simples, onde as oportunidades de recreação e festejos eram raridade. Este churrasco era diferente, ou todos começaram a perceber que seria diferente, por nenhum motivo especial. Alguém perguntou: "Ó Zenaide, o que que o cumpadre vai comemorá? Sei não! Ôxi, ele num disse ". Por fim ninguém sabia porque que o cumpadre Manoel marcara aquele churrasco, não era seu aniversário.
No sábado pela manhã Ribamar se levantara após algumas horas de um sono pesado. Ele havia chegado de madrugada depois de alguns dias de trabalho, várias entregas na região de Feira de Santana(BA), na sua labuta interminável de motorista de caminhão. Acordara de mau humor e não havia sinal de Risoneide. Na cozinha nenhum pingo de café. Foi para o quintal de casa e deparara-se com Socorro, debruçada sobre o muro, com um olhar comprido em sua direção: "Oi Ribamar, quanto tempo hein? Num pára mais em casa, assim vai acabar perdendo a patroa !" com um sorriso matreiro e uma piscadela emoldurando o rosto mergulhado numa nuvem de inveja. Ribamar acusou o golpe: "Que que você tá me dizendo muié? Que convercê é esse? Tu tá sabendo de alguma coisa?". Socorro dera seu bote certeiro e inoculara seu veneno de forma bem evidente. " Não Ribamar, foi só o jeito de falar, não se apoquente não, que isso! É que tem muito tempo que não te vejo, estava até com saudade, mesmo não sendo sua mulher. Também num tenho visto a Rosineide. Tenho visto muito é o seu primo Tunico, tá sempre aí na tua casa", disse.
Falou e saiu de lado, sabendo que a semente de erva daninha que lançara já crescia naquele jardim, que estava sem cuidados, diga-se de passagem. Ribamar em pé no quintal, com fome e cansado, ficou desconfiado do que ouvira.: "Que história é essa de meu primo sempre aqui?", "Ah Ribamar deixa prálá, pergunta prá tua muié quando ela chegá, tchau, que vou cuidá da minha vida, viu?".
Dez minutos depois Risoneide entrou pela porta da sala, com um pacote de pão e um pacote de café e se deparou com a cara azeda de Ribamar.
_ OI Riba, já levantou, você chegou tão tarde, não quis te acordar. Fui na padaria e já vou prepará um cafezinho bem gostoso.
_ Que café que nada! Que história é essa do meu primo enfiado aqui?
_ O quê!
Risoneide se assustou com o tom de voz de seu marido e ficou confusa com aquela pergunta.
_ Ué seu primo vem sempre aqui, você sabe disso, ele é seu primo!
Parece que as mulheres nascem munidas de um radar que capta más intenções. Uma pequeníssima fagulha parecia ter grudado em seu subconsciente, tomada forma de uma boca com uma língua e soprado num murmúrio em seu ouvido interno: Socorro. Ao ouvir ou pensar ter ouvido esse nome, numa reação em cadeia veio em sua mente a imagem de uma víbora cravando as presas no ouvido de seu marido Ribamar.
_ Quem é que disse isso prá você Ribamar?
_ Num interessa
_ Seu primo sempre vem ver os meninos, e me ajuda muito com isso. Você tá sempre longe...
_ Tô trabalhando muié, cumé que vai ter comida se eu num dirigir o caminhão por essas estradas pelo mundo afora? Que assunto é esse, eu hein!
_Num tô reclamando, só tô comentando. Olha deixa disso, vou preparar seu café bem gostoso, você deve tá cum fome.
Risoneide com habilidade conseguiu contornar aquela situação tensa, achou melhor não prolongar aquela conversa e se dirigiu para a cozinha. Logo a água do café já esquentava no fogão. Enquanto a água aquecia ela se aquietou e refletiu no nome sussurrado em seu ouvido.
"Aquela sem vergonha à tôa deve ter cuspido o veneno no ouvido do Ribamar, aquela safada é perigosa e invejosa, ela nunca esqueceu que ele me quis e não ela "
Ribamar, muito a contragosto, sentou-se para tomar seu café da manhã, pois morria de fome, mesmo com aquela ira que esquentava suas entranhas. Com a barriga cheia seu humor melhorou um pouco e preferiu mudar de assunto.
_ E o tal churrasco do cumpadre? Sai ou não sai?
_ É, diz que tá tudo pronto, vai ser amanhã, começa às 11:00 hs. Tem que levar bebida viu? Eu fiz uns salgadinhos, mas num pode mexer hein!, disse Risoneide aliviando mais ainda a tensão de alguns minutos antes. Fez um carinho na mão de seu marido, que relaxava.
_ Tá bão mulé, pode deixar que vou comprar umas birita... Dessa vez me pagaram direitinho e eu vou pagar minhas dívidas todas. Tô pensando até em comprar um presente prá você, mas olha lá o que tu anda fazendo hein?
_ Hômi, que besteira é essa, que num tô fazendo nada errado não, sou mulher direita! Disse indignada e muito contrariada.
Ribamar apesar de toda sua falta de sensibilidade, percebeu que havia falado demais, se envergonhou e disse baixinho: " O mulé me desculpa, acho que era a fome, num vamos ficar de mal não"
_Tá bom Riba, deixa de dar ouvido pressas vizinhas fofoqueiras, que só querem ver o mal da gente.

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O sábado transcorreu como um dia como outro naquela vizinhança, muitos foram trabalhar, as que podiam foram no salão se arrumar um pouco, as crianças brincaram porque são crianças e precisam brincar, da forma que for possível. Ribamar foi no boteco do Tião Cabrito comprar cerveja e pinga para o churrasco, pois era presença obrigatória, logo ele um dos primeiros moradores da comunidade e um dos que mais ajudaram aos vizinhos no início da ocupação. Caminhava pensativo, ruminando as palavras que ouvira de Socorro logo cedo ao despertar. E pareceu perceber olhares compridos, sorrisinhos irônicos e abafados, comentários ao pé do ouvido dos vizinhos ao longo do caminho. Uma sensação incômoda passou a lhe acompanhar de volta para casa e ao longo de todo o dia. Ao chegar em casa seu filho mais velho lhe perguntou: "Pai, cadê o Tio Tunico? Ele disse que ia jogar bola comigo hoje"
_ Uai, que história é essa minino, sei lá do Tunico ! Num quer jogá bola cumigo?
_ É que eu num sabia que o sinhô ia voltá hoje: disse o pequeno Willian, desconcertado e constrangido, como se seu pai fosse um estranho. De fato era um estranho, pois pouco parava em casa e pouca atenção dava para os filhos. Mas era mais um detalhe que somava ao sentimento incômodo que crescia na sua mente desde a manhã, o fato de seu filho perguntar por seu primo foi como um vento gelado batendo em sua nuca.
_ Ora bolas, vamo jogá bola nós dois, eu é que sou teu pai! Disse já bem irritado Ribamar. E o pequeno William meio contrariado acatou a ordem.
Socorro de longe viu Ribamar e o filho se dirigirem para o campinho de peladas, e resolveu temperar um pouco mais a salada de mentira e dúvidas jogadas na mente de Ribamar. Acompanhava de longe os dois, e ao chegar ao campinho foi logo dizendo: "Oi Ribamar, que que deu em você, resolveu brincar com o filhinho? Ainda bem, porque já tão dizendo por aí que ele se parece mais com seu primo do que com o pai.", com um sorriso malicioso que exalava um fétido cheiro de maldade. Ribamar se descontrolou mais uma vez: " Que papo é esse ?!?!, que que tu tá insinuando, o menino é meu sim!Que que tu me escondendo, fala logo disgraçada!!! A mulher invejosa e traiçoeira, sentindo uma vibração crescente como um calor em espiral ascendente, fingiu arrependimento pela insinuação e voltou atrás, num movimento calculado, um recuo, já prevendo um golpe mais forte, quem sabe mais tarde, numa ocasião mais apropriada. " Ah Ribamar me desculpe, não sei onde tô com a cabeça de falar essas coisas prá você. É claro que ele é teu filho", e saiu rapidamente, deixando um perplexo e irado vizinho, cuja mente neste momento era um campo minado de intrigas e insinuações.
Ribamar olhou para seu filho, para a bola, para o campo, para alguns vizinhos ao longe, que pareciam prestar atenção demais na cena. O que estão olhando tanto? Ribamar cai na cilada dos ardis de sua vizinha maliciosa, pois cada olhar, cada risada, cada cochicho que percebe, ele acha que é o motivo.
_ Pai, joga a bola! O pequeno William fica impaciente com a brincadeira que não acontece e grita:" Ah quero ir embora, prefiro jogar com o tio Tunico!"
O pai fica furioso com o grito do menino, pega-o pelo braço e volta quase correndo para casa. Deixa-o no quintal de casa e segue em direção ao boteco do Tião Cabrito para esfriar a cabeça.
_ O cumpadre Tião, bota uma gelada aí pra mim.
_ Tá certo cumpadre, já vai aí no capricho!
_ O cumpadre, me diga uma coisa, mas quero que tu seja sujeito-homem e não minta pra mim... Tão falando alguma coisa por aí a meu respeito...sabe, assim, coisa da minha mulher, do meu primo Tunico?
_Ô cumpadre, que qué isso? Tu sabe que o povo, se não tem inventa, né? Tem muita gente a tôa na nossa comunidade, sem um trampo, sem uma ocupação, muita vizinha que só quer saber de igreja, e de cochicho. Mas pelo teu primo eu boto minha mão no fogo, que aquele te respeita, viu? E tua mulher é muito da direita, viu? Larga mão das bobagens que te falaram, que é tudo intriga. Eu vi que o cumpadre chegou aqui muito carrancudo, mas deixa prá lá, que amanhã é dia de festa! Vamos sacudir a poeira e deixá o forró cumê solto!!
_ Tá bom cumpadre, tá bom... você me deixou mais calmo. É que tenho ficado tanto fora, viajando, que meus filhos nem querem saber de mim.
_Vai, toma tua geladinha antes que esquente, depois vai prá casa descansar um bocado, que é prá acordar outro amanhã.
Um sábado de luar impecável, de nuvens calmas, acalentou do jeito que fosse possível a cada um, de acordo com a vontade de cada um. Uma noite morna fazia a ante-sala de um domingo tão esperado.

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Até os galos da vizinhança foram camaradas naquele domingo, e deixaram para cantar um pouco mais tarde, dando assim mais tempo para as espreguiçadas e os bocejos tão merecidos de um povo que verga os ombros no dia-a-dia. A euforia já estava evidente desde cedo, os preparativos começaram cedo de manhã, muitos foram atrás do gelo, outros do carvão, uns mais em busca de cadeiras e mesas, que é para todos poderem ter um assento decente. As mulheres desde a véspera já se esmeravam nas comidas acessórias, nos salgados, no asseio das roupas. O anfitrião Manoel Crispino já saíra cedo em busca do equipamento de som, e na caça do Trio Bicho de Pé, forrozeiros dos bons, mas que costumavam encher a "zabumba" de goró depois das apresentações. Nada que um café amargo e bem forte não resolvesse, afinal eram todos conterrâneos e uma peixeira afiada, e estrategicamente escondida serviam de um estímulo a mais. Mas não foi o caso, pois os três músicos, quer dizer, dois músicos já estavam prontos e afiados, só o Netinho do triângulo bambeava no Engov.
Lá pelas onze horas o Manoel Crispino declarou iniciado o churrasco. O carvão já estava em brasa, e a fumaça já subia. O povo foi chegando, primeiro de mansinho, mas logo o alarido aumentou, muita risada, muito cumprimento, e a carne foi chegando junto com a bebida. Por volta do meio-dia o quintal já estava lotado, crianças já corriam entre as pernas dos adultos, muitos bebês de colo, as mulheres se confraternizavam, os homens já se assanhavam. Ribamar chegou às 12:15 hs, acompanhado da Risoneide e dos meninos, muito cumprimentado pelos vizinhos que já não o viam com frequência. Um Sol familiar a todos, redondinho, redondinho, distribuindo calor por igual , o mesmo Sol que nas infâncias de cada um trazia a preocupação e a sede. Porém hoje não há preocupações, hoje o Sol é só a moldura da festa, e a sede será abrandada com engradados sobre engradados de bebidas diversas.
De repente alguém grita do portão:" Lá vem o Tunico, e tá carregado gente! Vamo ajudá que o hômi tá até torto de tanto peso!" Tunico chegou com sua surpresa, e num pulo 3 colegas tiraram-lhe o peso das costas. " Vixe, que qué isso?", e o Tunico responde:" Trouxe uns 30 quilos de carne de primeira pro churrasco do cumpadre". Já próximo ao forno o pacote é desembrulhado, desmembrado, repartido, separado.
_ Que carne é essa Tunico?
_ É caça.
_ Ué num sabia que tu era caçador?
_ Eu não cacei não, eu só arrumei. É surpresa.
_ Mas que bicho é esse?
_ Diz que é capivara.
_Ó xente, mas capivara daonde? Ah deixa prá lá, vamos assar o bicho e mandar prá dentro!!!
E mais gargalhadas, brincadeiras, fofocas ao pé do ouvido são ouvidas neste domingo animado. O cheiro da carne assando já se espalha longe, o trio do forró já chegou e começou a dança, começou a música.
Três da tarde, a festa não tem hora para acabar, as obras e as faxinas vão ter que esperar pela terça-feira, pois a segunda-feira está com cara de ser um feriado forçado, feriado no Jardim Mississipi.
Todos estão contentes, muitos já com a cara vermelha dos eflúvios alcoólicos, os lábios tão relaxados que duvido que conseguissem falar a palavra "eflúvio", nem mesmo saberiam o que significa. Ribamar está tranquilo. Conversa com os companheiros, conta das últimas das estradas por este Brasil afora, conta como escapou de um acidente na BR-101 perto de Ilhéus, e como escapou de um assalto perto de Jequié. Risoneide, ao contrário, está um pouco tensa. Não sabe como nem porquê, mas pressente algo. Cruza o olhar com o de Tunico, abre-lhe um sorriso, a ternura inunda seu coração. Um súbito frescor desce-lhe pelas narinas, pelos poros, sente a amizade, o carinho e a companhia desinteressada do pobre rapaz. Rude, mas de coração puro, tão puro quanto possa, vivendo neste mundo que pouco estende a mão, este mundo que não hesita em passar por cima se ele desse um tropeção num momento de descuido. Tunico encerra dentro de si uma melancolia profunda. Risoneide também, apesar dos filhos que lhe alegram mais do que lhe dão trabalho. A melancolia os une, embora eles não consigam expressar isto de modo tão claro.
Talvez seja amor, aquele que é o verdadeiro, o que não pede nada em troca, o tal que pode afagar o coração quando as nuvens cinzas se aproximam e roubam o ar ao redor de uma pessoa que está sozinha, pois sem o amor vem o desamparo. Quando cruza seu olhar com o de Tunico, Risoneide só sente uma alegria pura. Não se formam campos de batalha onde corpos blindados se debaterão para anular um ao outro, e o objetivo é a posse. Não há o desejo cego e irracional, que perturba os sentidos e desorienta o ser. Eles apenas se sentem bem perto um do outro. A vizinhança embrutecida que tem pouca disposição para um refinamento ou uma elaboração mais aprofundada, até porque estão sempre tão cansados da labuta, não consegue perceber este amor tão desinteressado, entre um homem e uma mulher.
Uma nuvem repentina atravessa o céu e se coloca a frente do Sol. São 4 horas da tarde quando chega Socorro. Todos se viram para olhar quem chega, todos os olhares vão em sua direção. Ela está mais arrumada do que todas as vizinhas, mais perfumada que uma loja de essências. Um batom roxo vergonha cintila na tarde de domingo e por um breve instante ela é a estrela absoluta do Jardim Mississipi. Socorro chega disparando sorrisos afetados e maliciosos, cumprimentando à todos e a ninguém ao mesmo tempo. Risoneide sente um calafrio e fica nervosa..
Socorro logo arrebata uma caneca de chopp, que engole em praticamente um gole. Em seguida outra, e mais outra, e mais outra. Puxa um vizinho para dançar e o forró esquenta para valer. Os homens presentes, já bastante alegres com a festa, são todos olhos em Socorro. Em seguida se revezam para dançar com a "estrela da festa", não se importando com o olhar de reprovação de suas mulheres.
_ Ó xente que isso aqui tá o bixo solto!! É hoje que eu me acabo!! e a gargalhada corria fácil naqueles lábios borrados de baton, no remelexo do corpo coberto com um vestido tão curto quanto o salário da maioria dos vizinhos.
A festa estava no auge, a fumaça subia e aguçava as narinas de todos, o gelo farto cobria as latas de cerveja, a pinga pingava de copo em copo numa fartura pouco vista em suas vidas. Muitas crianças já dormiam nos colos de suas mães, vencidas pelo cansaço da folia. Pouco a pouco nuvens mais grossas iam chegando e turvando aquele céu antes tão iluminado. Os efeitos do álcool há muito se faziam sentir nos convidados. Alguns começavam a passar da conta. Socorro logo estava tomada pelo abraço insinuante do álcool. Começou a falar demais, cada vez mais alto, como se precisasse chamar a atenção. Quando quis puxar Ribamar para dançar com ela, ele recuou, pois estava acompanhado de sua mulher.
_ Ê muié, deixe disso. Risoneide tá logo ali sentada, ela num vai gostá nada dessa história....
_ Ah que qui tem hômi, hoje é dia de festa, tá todo mundo dançando cumigo.
_ É mas você ainda num percebeu que a muiérada tá de nariz turcido procê?
_ Ih, tô nem aí, eu quero é mais... Se elas num sabem cuidar dos maridos, problema é delas!
_ Ô muié respeita tuas vizinhas, que aqui num tem disso não!
_ Larga dessa cunversa e vem dançar cumigo, Ribamar, que eu nunca ti esqueci!, falou bem alto para todos ouvirem, e falou na direção de Risoneide, que já não sabia onde enfiar o rosto de tanta vergonha com a cena.
Ribamar estacou e deu um empurrão em Socorro, que crispou os lábios de ódio.
_ Ora seu frouxo, é por isso que teu primo num sai da tua casa, eles tão de caso, sabia?
_ O quê, sua vagabunda!
Subitamente o céu ficou tomada por nuvens cinza chumbo bem pesadas, como se fossem despencar no próximo instante. A música parou de repente, o tempo fechou no churrasco.
_ É verdade sim, teu primo tá sempre na tua casa, sempre vem de noitinha quando volta do trabalho porque sabe que tu não pára em casa. Tua muié cum cara de santinha tá ti botando uma gaiada bem grande, que é prá tu num levantar mais a cabeça!!!
Foi a gota d'água. Ribamar ficou louco da vida, pois já havia bebido bastante e o raciocínio, que nunca fora seu forte, ficou completamente turvado pela ira, pela vergonha, pela situação. E partiu para cima de seu primo, que ficara lívido com aquela mentira nojenta cuspida da boca da vizinha despudorada.. Antes que algo mais grave acontecesse, um punhado de vizinhos que anda não haviam abusado da "marvada" e conseguiam entender o que estava acontecendo, se meteu no meio dos dois parentes. Mas a confusão já estava armada. Um alarido cruzava o ar daquele terreno antes tão festivo e pacato. As vizinhas gritavam, cuspiam, choravam. As crianças corriam de medo, sem entender direito o que estava acontecendo. Risoneide chorava desconsolada e sem reação frente a maledicência gratuita e com muita vergonha de estar no olho do furacão.
Socorro estava realizada, pois atingira seu objetivo. Chegara, causara comoção e envenenara com mentiras uma família, que bem ou mal conseguia viver numa certa paz. Ribamar ainda sob o efeito do petardo que recebera, bastante alterado e sem noção precisa do momento, aproveitou um descuido dos vizinhos apaziguadores e saiu correndo na direção de sua casa. Chegando lá foi correndo buscar um galão de gasolina que deixava de reserva no caminhão. Começou a encharcar as paredes de sua modesta moradia. Alguns vizinhos perceberam sua saída brusca e foram atrás. Ele ainda teve tempo de riscar um fósforo e em poucos segundos as chamas começavam a lamber as paredes da casa que tivera tanto trabalho para levantar.
Ainda bem que quase sempre há uma reserva de bom senso e decência pairando no ar, e os vizinhos mais comedidos e avessos aos excessos do álcool começaram a combater as chamas. Um mais lúcido correu para chamar os bombeiros. Os outros se articulavam do jeito que dava, para evitar uma tragédia maior. O churrasco acabara subitamente no meio daquela confusão.
Apesar do quartel distante, uma viatura do corpo de bombeiros chegou rapidamente, e conseguiu debelar o incêndio, que já estava sendo atacado por todos os vizinhos, mesmo que alguns estivessem tão bêbados que jogavam água um no outro. O Tião Cabrito ao se deparar com Ribamar de olhar transtornado e ausente ao mesmo tempo, num momento de fúria e lucidez conjuntas ( se é que isso é possível) deu um sonoro tapa no rosto curtido de Ribamar, como se quisesse acordá-lo de um encantamento. O bofetão despertou Ribamar, que logo percebeu a besteira que iniciara. Começou a chorar convulsivamente.
_ Onde é que cê tava com a cabeça, hômi du céu!?!? gritou Tião Cabrito. - Por quê você foi dá ouvidos praquéla desqualificada, nossa conversa de ontem num adiantou de nada? Num falei prá você que tua muié é direita, que é tudo invenção da maldita da Socorro??!!!Tião Cabrito gritava e sacudia Ribamar, agora imerso numa vergonha sem tamanho.
_Ó xente cumpadri, que foi que eu fiz, valha-me Deus Nossa Senhora, Deus me defenda, aiaiai... aquela diaba me tirou o juízo...minha casa, minha casinha, tá queimando toda, ai, ai, ai... E Ribamar chorava feito criança que corta o dedo. Dava até pena de ver um homem crescido e curtido, que já viu tanta desgraça por este mundo afora se debulhar em lágrimas, sentindo tanta vergonha de si.
_ Se acalma hômi que tua casa já tá apagada, só chamuscou bastante, mas tá inteira do jeito que você tanto labutou prá deixar de pé, lembra? Lembra da trabaieira que deu botar aquelas parede de pé? Lembra do Sol quente no lombo enquanto tu mexia no cimento? Lembra do talho que tu deu no teu dedão, que o sangue jorrou? E agora tu quase bota tudo abaixo por causa duma rameira sem vergonha que quis botar minhoca na tua cabeça! Onde tu tava cua cabeça, hômi?!
_ Ai cumpadre que vergonha, cumé queu vou olhar pros vizinhos agora?
_ Ribamar, tu é hômi feito, é trabalhador, hômi honesto, num deve nada pra ninguém. Hoje foi uma disgraceira, que ninguém entende direito. Vâmu esfriar a cabeça, vâmu reunir os vizinho, acalmá todo mundo. Ninguém resolve nada de cabeça quente, pois que dá encrenca. Vâmu ver como tá a cumadre.
Risoneide ficara sozinha no quintal. Abraçara seus filhos, acalmara-os, beijou-os ternamente. Não disse uma palavra. Viu de longe a fumaça que subira e agora dissipara, com dor no coração. Houve uma debandada de toda a vizinhança. O quintal de Manoel Crispino estava vazio, em quinze minutos tudo terminara. O carvão ainda ardia, as cervejas ainda geladas nos isopores. O trio do forró saíra de mansinho. Elas já haviam presenciado muitas confusões, muito quebra-quebra, mas o cachê já estava pago, não havia mais nada o que fazer ali.
Risoneide puxava seus filhos pelas mãos em direção à casa de sua vizinha Josefina, que preferira não ir ao churrasco, pois não gostava de agitação. Ao chegar chamou a vizinha, que assustada já soubera do acontecido. Pediu que abrigasse seus filhos por uns momentos, enquanto tomava pé da situação de sua casa.
"Sim, minha vizinha pode deixar que eu olho os pequeninos", e Risoneide seguiu não em direção de sua casa, mas da casa de Socorro. A casa estava vazia, nem sinal da dona e a porta aberta convidava qualquer um a entrar. Risoneide em silêncio foi direto ao quarto único, onde estava o armário recheado com as roupas extravagantes da vizinha. Socorro adorava se exibir, e demontrava seu orgulho em exibir roupas que as vizinhas não tinham condições de ter. Mecanicamente ela joga as roupas no chão, criando uma pilha de tecidos coloridos. A pilha cresce logo. Risoneide vai até a cozinha e pega um litro de álcool e fósforos. Aquele dia estava sob o signo do fogo. Leva tudo ao quintal, encharca bem encharcada a pilha de tecidos coloridos, risca um fósforo e uma labareda voraz e crescente logo torna em cinzas o motivo de orgulho da vizinha traiçoeira. Risoneide não demonstra emoção, mas está aliviada.
Ao sair da casa ela cruza com Socorro, que chega esbaforida após ter sido avisada por outra vizinha que vira Risoneide e intuíra que algo poderia acontecer. Socorro entra correndo e se dirige para seu quintal em tempo de ver a pira simbólica, em homenagem ao churrasco desastroso e em memória da honra manchada de uma família simples mas que buscava viver em paz. Socorro fica paralisada ao ver suas roupas transformando-se em cinzas. Risoneide agira rápido mas mesmo assim ainda sobraram algumas roupas no armário. As mais extravagantes voavam agora em forma de pequenos pontos de fuligem no ar carregado do Jardim Mississipi, misturada com a fumaça remanescente da carne de capivara nos espetos da grelha abandonada no quintal do Manoel Crispino.
Quando tudo se acalmara, eis que surge o pastor Dejair Petronilho. Ele que fora avisado da confusão, se dirigiu para o templo da Igreja da Graça Revelada no Escuro, e pediu a seus comandados que reunissem os participantes do churrasco, pois precisava falar-lhes. O edifício simples funcionava como centro comunitário do bairro, ponto de encontro do rebanho, epicentro religioso e político dos domínios do hábil pastor Dejair.
Em pouco tempo dezenas de moradores já se acotovelavam, ansiosos por aguardar a palavra fácil do pastor. Um pouco antes do início do sermão chegaram Ribamar, Tunico, Tião. Só faltaram Risoneide e Socorro, uma por estar em estado de choque pela perda das roupas e a outra porque já estava envergonhada por demais com aquela situação. E então começa a sessão...

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_ Meus vizinhos, meus irmãos e irmãs, sejam bem vindos. Peço que se acomodem e fiquem tranquilos nesta casa do Senhor que lhes serve de abrigo para suas tribulações, seus infortúnios, seus medos. Quantas vezes já dirigi a palavra para o meu povo, quantas vezes minha mão serviu de consolo para aquietar seus corações apertados, eu que estou sempre à disposição para seus rogos, seus pedidos, suas queixas. Nossa casa é seu refúgio para as horas de aperto mas de alegria também. Nenhum mal há de prevalecer dentro destas portas. Mas lá fora é o império do mal, muitas vezes eu lhes disse, que o mal nunca dorme, está sempre de tocaia querendo desviá-los para a senda da escuridão. Foi o que aconteceu hoje. E por que aconteceu? Porque nossa igreja está esquecida meus irmãos e irmãs! (eleva sua voz). Nossa igreja está em segundo lugar nos seus corações! Tanto a ser feito pelo bem de nossa comunidade, e vocês preferem gastar seu dinheiro com bebida? Esse humilde servo da palavra divina está precisando de sua ajuda, mas onde está o dízimo, onde está o dinheiro para nossas obras de caridade? O mal veio para o churrasco porque vocês não estão cumprindo com suas obrigações! ( o pastor sacode os braços ). Nada neste mundo dos homens pode ser feito sem dinheiro, meus amigos, esta é a verdade, então eu preciso da ajuda de vocês. O dinheiro mal empregado é o trabalho do demônio, meus irmãos, vejam o que a bebida faz para as cabeças fracas, ela provoca a desarmonia, o desentendimento, a violência, deixa suas crianças chorando, e suas esposas feridas e envergonhadas. E a sua igreja fica desfalcada, um real empregado em nossa obra de caridade vale mais do que 100 reais que só vão adoecer o seu fígado e sair na urina, vejam o absurdo que estão fazendo com vocês mesmos!!! (o pastor Dejair se inclina e quase pula com tanta ênfase em sua colocação). Vejam todos o que eu sempre alertei , e que hoje se cumpriu. Se tivessem me consultado antes eu não teria concordado com este churrasco. Quanto foi gasto para esta festa, hein? Mil reais, mil e quinhentos? Mais do que isso é claro! Antes tivessem deixado na minha mão, pois eu sei cuidar bem do dinheiro que vocês me entregam, meus irmãos e irmãs. Vejam meu exemplo, se inspirem em mim, eu sou igual a vocês, também cheguei aqui sem nada e hoje cresci, prosperei e me vejo como seu líder, ou melhor, como um irmão mais velho que precisa levar o irmão menor pela mão.
Reflitam bem hoje em suas casas antes de dormir, e vejam se eu não estou com a razão. E não se esqueçam de contribuir com nossa igreja, seu dízimo é o que fará nossa comunidade melhorar. Pois que o teu esforço é a minha alegria...( o pastor vira-se de costas para a platéia e pisca maliciosamente seu olho esquerdo a seus ajudantes postados ao redor e atrás do palco-palanque-púlpito)... como está dito no capítulo XXX, versículo 26, de Joanias.
Suas palavras ficaram ressoando no salão do templo. Um silêncio respeitoso e envergonhado ocupava as mentes e os corações da plateia. As palavras do pastor tinham um impacto e um peso muito grande na vida destes pobres e humildes trabalhadores e donas de casa, com pouca instrução, muitas palavras nem eram compreendidas mas se o pastor falou é porque deve ser verdade, né?
_ Vão agora meus irmãos e irmãs, e pensem bem nas minhas palavras e nos acontecimentos de hoje. Pensem no rumo que estão dando para suas vidas. E nunca se afastem de sua igreja e de suas obrigações. Meus obreiros, seus verdadeiros amigos, estarão passando em seguida para recolher sua humilde contribuição. Vamos pensar em organizar o churrasco do bem, deixem por minha conta que eu farei tudo dar certo. Confiem em mim!
O domingo vai terminando, a sessão no templo se finda e todos se encaminham para suas humildes casas, cansados e envergonhados, rumo a uma nova semana tão semelhantes à que passou e a anterior á esta.

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Segunda feira logo cedo o caminhão de Ribamar já está sendo preparado para mais uma jornada pelo Brasil a dentro. Risoneide está de pé preparando o café e a marmita para seu marido. Em silêncio. Seus filhos ainda dormem e o Sol já nasceu, como aliás ele faz todo dia.


Ivan Henrique Roberto 1.11.2010

Autor: Ivan Henrique


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