Mulheres Brancas e Mulheres Negras



Paulo Ricardo Ribeiro Sant?Anna

"O ensino é o método e não o conteúdo que comunica;
a forma de se expressar é mais importante que a de assimilar."
Ashley Montagu

Resumo:
O objetivo dessa abordagem é relacionar a vivência das mulheres inglesas, brancas e livres com as negras ganhadeiras da cidade de Salvador ao final do século XIX. Para isso foi utilizado o texto de Cecília Moreira Soares AS GANHADEIRAS: mulher e resistência negra em Salvador no século XIX e Costumes em Comum de E. P. Thompson, ambos sugeridos em sala de aula, além da inclusão de idéias de outros especialistas em cultura e sociedade mundial do século XIX. O resultado é surpreendente para o contexto dos nossos alunos que aprendem uma história factual e comercial dos livros didáticos de historia.

Palavras-Chave: Conquistas ? Resistência ? Respeito ? Violência ? Determinação

Entre as diversas mudanças alcançadas pelos mais variados grupos sociais na virada do século passado, talvez nenhuma delas mereça tamanha atenção quanto às vitórias conquistadas pelas mulheres, principalmente pelo choque produzido por essas alterações na vida cotidiana da outra metade da raça humana, que são os homens. São mudanças que com certeza foram e estão sendo sentidas gradualmente pela população e que dificilmente poderão ser revertidas, além de terem sido marcadas por profundas raízes históricas.
Mas como explicar que diante de tantas conquistas alcançadas pelo movimento feminista, sejam na educação, no trabalho ou em suas garantias mais pessoais, ainda encontramos mulheres submetidas a serem negociadas como um objeto, numa feira ou em praça pública? Não me limitando ao período histórico em questão, que seria o século XIX, deparei-me em minhas pesquisas com um anúncio de venda de esposa na seção de carros de um jornal romeno datado de outubro do corrente ano:
"Esposa à venda. Modelo 1983, em boas condições. Tem todo o equipamento necessário, boas suspensões, e é espaçosa", descreveu o marido no site. Afirmou também que "este é o segundo proprietário. O preço é negociável. No preço estão incluídos também acessórios de três e cinco anos (em referência aos filhos). Solicito seriedade".
O autor do anúncio chama-se Alex, tem 20 anos e é morador da cidade de Bucareste. O anúncio inicial pedia cerca de 5.000 euros e já está em 3.750, já que pretende fechar o negócio o mais rapidamente possível. Se essa notícia tivesse sido publicada em pleno século XIX na Inglaterra, com certeza passaria despercebida diante de tantas outras que circulavam nos tablóides da época.
Depois de negociada, o objeto da venda, diga-se a esposa, seria conduzida até a praça com uma corda em torno da cintura ou do pescoço. Seu proprietário, diga-se esposo, daria cerca de três voltas em torno das pessoas com um cartaz fazendo a proposta de venda e em seguida ela seria negociada. Os detalhes da venda poderiam ser modificados, mas no geral era assim que tudo acontecia. Ao invés da praça pública ela poderia ser conduzida a uma taverna, mas a negociação deveria ser feita em alto e bom tom. O vendedor deveria se pronunciar fazendo uma declaração antes de transferir para o outro a sua esposa. O comprador também deveria se fazer ouvir, recebendo a ponta da corda e todos seriam levados ao cartório para concretizar a negociação. O preço da corda também seria negociado a parte, podendo ser vendido por preços superiores à esposa.
O nível social também era um fator de diferenciação nessa negociação. Apesar de se manter a base comercial, detalhes faziam a diferença: quase sempre o negócio era feito na casa do vendedor e ir a praça era mera formalidade. A mulher era conduzida por uma corda de seda, o marido dava as três voltas e o contrato era concretizado em cartório.
As razões que levaram aos esposos a fazer o costume inglês do Wives for Sales variam. Poderia ir do mero hedonismo à necessidade econômica. O livro de Thompson cita vários exemplos a cerca de razões para essas vendas, e em uma delas ele fala sobre um triângulo amoroso em que os envolvidos resolveram o problema com a venda da esposa ao seu amante. Mas por trás dessa negociação estavam as questões de moradia em um abrigo, e que terminou com a proibição da negociação e a prisão dos envolvidos.
Depois de descrito esse ritual posso ater-me ao meu objeto de admiração. E as mulheres como se comportavam diante de sua situação de mercadoria? A concretização desse comércio dependia 100% da concordância da esposa. Quase sempre na declaração do marido ele se referia ao interesse dos dois: "...por isso concordamos em nos separar". Em seguida era feita a pergunta: "Você está disposta a ser vendida, minha senhora? ? Sim estou!" Quase sempre o leilão acontecia de forma cômica e bem-humorada, mas às vezes se tornava degradante para os envolvidos, principalmente para a esposa que mesmo consentindo acabava sendo motivo de chacota para toda aquela multidão que presenciava o leilão. Apesar disso a esposa tinha poder de veto: se o comprador não a agradasse ela poderia cancelar o leilão e participar de outro.
A análise de outros documentos datados do século XVIII levanta muitas idéias a cerca da situação das mulheres e como a educação poderia ajudá-las a conseguir uma melhoria em suas vidas. Enquanto na França revolucionária as poucas mulheres que tentaram tomar parte na política foram ignoradas (ou guilhotinadas) na Inglaterra, aonde as mulheres gozavam de certa liberdade no seu cotidiano, Mary Wollestonecraft assumiu a causa das mulheres publicando em 1792 um livro intitulado de Reivindicação dos Direitos das Mulheres, despertando a ira de alguns segmentos sociais, principalmente dos homens, que temiam qualquer possibilidade de alteração dos papeis dos sexos. Seu livro significou uma pedra fundamental no movimento feminista moderno e alarmou a sociedade européia para as mudanças que estariam por vir.
Entre os anos de 1800 e 1914 difundiu-se a idéia de que as mulheres deveriam ser adequadamente educadas (semelhante a educação dada para os homens) e algumas delas já eram admitidas nas universidades dos Estados Unidos e de outros importantes países europeus. Aqui no Brasil podemos fazer referência a obra de Tito Lívio de Castro intitulada A Mulher e a Sociogenia aonde o autor vai de encontro aos conceitos religiosos vigentes na época de que "a inferioridade da mulher teria sido dada por Deus, e portanto, não tinha solução" afirmando que essa situação de inferioridade da mulher era resultado das escolhas erradas feitas pela sociedade ao longo da nossa história e que portanto teria solução, inserindo-a no mundo cultural, intelectual, ao mundo do trabalho, da educação, além de incentivar seu lado criativo, o que lhe permitiria alcançar o desenvolvimento intelectual do homem.
Como explicar que paralelo a essa investida dos movimentos feministas em países europeus e nos Estados Unidos ainda existiam (principalmente no interior de regiões européias) a comercialização de esposas? Apesar de aceitarem sua condição de esposas desejosas de separação, era degradante sua situação de esposa vendida. Aqui no Brasil, até as negras ganhadeiras da cidade de Salvador gozavam de certa liberdade para seguirem suas vidas e ganharem seu comércio sem a interferência dos homens, o que demonstra uma certa superioridade social delas quanto às mulheres brancas e livres de algumas cidades do interior da Inglaterra.
No ganho de rua as mulheres negras, escravas ou livres, ocuparam seu lugar no mercado de trabalho urbano aonde lutavam para sustentar-se e aos seus filhos. A rentabilidade dependia de diversos fatores como a idade, saúde e habilidade que cada uma delas possuía.
No caso das ganhadeiras postas na lida que não eram livres, deviam satisfação ao seu proprietário, mas era um tipo de controle estabelecido a distância, aonde ela vivia longe de seu senhor e o ganho estabelecia a possibilidade de alforria. Já as libertas não tinham proprietários e eram donas de seus ganhos. Não deviam satisfação a ninguém, além dos fiscais da Câmara que cobravam taxas e buscavam irregularidades punitivas com a prisão ou com multas.
Vale salientar que mesmo antes da sua chegada ao Brasil, elas já estavam habituadas a desempenhar esse papel de vendedeiras em sua terra natal: a África. Lá a elas era dado o papel de subsistência domesticas e de circulação de gêneros de primeira necessidade. Terem chegado ao seu destino e serem postas às mesmas tarefas que já desempenhavam antes pode ser considerado uma continuidade de suas atividades, garantindo a elas um papel econômico muito importante.
Eram comunicativas e sabiam lidar com a freguesia. Anunciavam a qualidade de seus produtos, barganhavam preços e atraíam para si a atenção de outros escravos que compravam para seus senhores além de outras pessoas que circulavam pelas ruas. Dá para imaginar essas negras ganhadeiras em um mercado do interior inglês vendendo esposas?
Esta "regalia" possibilitou às negras a construção de um universo próprio, formado por elas mesmas, seus fornecedores e clientes africanos. Uma rede econômica que era também social e até política. Construir este universo dependeu das oportunidades oferecidas pelo mercado, do interesse do senhor e sobretudo da ousadia em lançar-se nas incertezas da vida quotidiana de uma sociedade escravista e discriminatória, e aí conquistar algum espaço. (SOARES, P. 71)
Como entender duas situações tão pitorescas como as citadas acima? Como seria possível esboçar um conceito coerente em relação às mulheres do século XIX se não é possível encontrar certa unanimidade: num mesmo momento encontramos mulheres aparentemente livres, de origem ariano-caucasiana, casadas segundo as leis do cristianismo (anglicano, é bem verdade) submetendo-se a serem negociadas como se fossem mercadorias. Pondo de lado a civilidade eram expostas à toda a sociedade, submetidas à depreciação monetária e viam seus filhos serem negociados junto a elas, como subprodutos da venda. No mesmo momento, mas em outro espaço, temos mulheres negras vindas do continente africano totalmente postas à ?liberdade? para negociar seus produtos pelas ruas da cidade de Salvador, pagando taxas, negociando e barganhando, sendo respeitadas e garantindo seu sustento e o de sua prole.
Como pano de fundo a estas duas realidades temos as garantias obtidas pelas mulheres em todo o mundo. Como entender que isso poderia estar acontecendo no mesmo momento em que a Revolução Industrial estava proporcionando outras formas de ganhar a vida? Trabalhos no campo ou escravas domésticas (evoluindo para empregadas domésticas quando a escravidão acabou) era o fim daquelas que não tinham a felicidade de se casar. Com a indústria elas eram obrigadas a mudar para as cidades, empregaram-se nas tecelagens, e com a melhoria na educação e a ampliação do mercado de trabalho a situação das mulheres melhorou muito, ainda mais depois da invenção da máquina de escrever: datilógrafas, secretárias, telefonistas, balconistas, além das operárias de fabricas.
Mas com certeza um dos fatores mais importantes para as principais mudanças ocorridas na vida das mulheres foi o controle contraceptivo. Enquanto anteriormente buscava-se adiar o casamento ou efetuar o infanticídio como meios de conter o nascimento de crianças, a grande novidade tornava-se o desenvolvimento da tecnologia e dos meios de limitação familiar, principalmente entre os ricos: "quanto mais cultos e endinheirados mais se empenhavam na limitação do tamanho da família por meios artificiais." Embora isso fosse um fator de melhoria das condições para ambos os sexos, para as mulheres significava romper os laços limitadores que lhes eram impostos e a possibilidade de exercerem novos papéis.

REFERÊNCIAS

THOMPSON, E. P. Costumes em Comum: Estudos Sobre a Cultura Popular Tradicional, Trad. Rosaura Eichemberg, São Paulo:Cia das Letras, 1998.

SOARES, Cecília Moreira. AS GANHADEIRAS: mulher e resistência negra em Salvador no século XIX, In AFRO-ÁSIA, Nº 17, pp. 57-71; Centro de Estudos Afro-Orientais ? Bahia, Salvador: EUFBA, 1996.
Autor: Paulo Sant Anna


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