Enciclopédias



"Colocadas em fila, uma após a outra, as enciclopédias de hoje, de ontem e de transantontem representam imagens sucessivas de mundos paralisados, gestos interrompidos no seu movimento, palavras à procura do seu último ou penúltimo sentido. As enciclopédias são como ciclogramas imutáveis, máquinas de mostrar prodigiosas cujos carretes se bloquearam e exibem com uma espécie de maníaca fixidez uma paisagem que, assim condenada a ser só, para todo o sempre, aquilo que tinha sido, se irá tornando ao mesmo tempo mais velha, mais caduca e mais desnecessária." (SARAMAGO,2000: 74)

Em poucas palavras, de forma brilhante, Saramago expõe a funcionalidade ou falta de, além de algo muito mais profundo que se apresenta em suas palavras, representadas pelas ditas enciclopédias. Poderia ser utilizado outro exemplo, outro objeto, mas a enciclopédia em si traz algo peculiar a esta análise.
Pois a enciclopédia, apresenta o que foi de forma grandiosa, como se englobasse toda a realidade que um dia existiu e que pudesse assim transpor a posteriori para usufruto das gerações vindouras.
Na verdade, ela apenas traz um ínfimo generalismo que se desfaz conforme as páginas amareladas e carcomidas pelo tempo. Todo aquele passado ali, paralisado, que doce ilusão, pois se o vemos passado, já não o é.
Parecem cópias que se desprenderam ou talvez tenham se fixado, impressas e expressas diante de nossos olhos que buscam a significação dessa semiótica esotérica.
E nós observamos ali, na estante, paradas, ou movendo-se sem que possamos perceber, nos deslumbrando com a estagnação daquele tempo de outrora e nos surpreendendo com sua paralisia de agora.
Pergunta a si próprio, se um dia também irá fazer parte destes objetos, ou talvez ali, apenas estejam impressos pareceres que não lhe dizem respeito, ou que não dizem respeito a sua evidência transcrita através deles.
Os dias passam, também sinto-me escrevendo as próprias páginas dessa enciclopédia ambulante de minha vida, minha memória armazena o que julgo necessário, tais recordações também se estagnam e por mais que eu as apresente a outros, eles também observam a decrepitude de minhas lembranças diante do hoje-manifesto.
Eu continuo a me escrever enquanto tiver tempo-de-uso, vocês continuam a ler, assim como eu faço com vocês, todos enciclopédias-vivas, como disse uma vez Dostoiévski: "plágios mútuos", até o dia que chegaremos ao apêndice final, quando a nova edição será acrescida pelos que virão.
Descrevendo nossa existência como se tivesse sido uma vida, como disse Sartre: 'vivida entre parênteses", sem nunca ter sido, sendo relegada a este ciclograma imutável de uma vida sem Ente.

Referência Bibliográfica:

SARAMAGO, José. A Caverna: contos. São Paulo: Companhia das Letras, 2000.
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