Direitos Sociais e Reserva do Possível



1. INTRODUÇÃO


Ao lado dos direitos individuais, que têm por característica fundamental a imposição de um não fazer ou abster-se do Estado, "as modernas constituições impõem aos Poderes Públicos a prestação de diversas atividades, visando o bem-estar e o pleno desenvolvimento da personalidade humana, sobretudo em momentos em que ela se mostra mais carente de recursos e tem menos possibilidade de conquistá-los pelo seu trabalho" (BASTOS, 2002, p. 436). Tais prestações, positivas, que exigem atividade estatal, são concebidas como "direitos sociais", posto visam combater um dos grandes pecados concernentes ao Estado Liberal, qual seja: a desigualdade social.
Seguindo a linha constitucionalista mexicana, que, com a edição de sua constituição de 1917, passou a implementar os direitos sociais com fundamento na correção de desigualdades e na consagração da dignidade humana, diversas constituições, sobretudo as do mundo ocidental, passaram a adotar os direitos sociais como normas constitucionais, vale dizer, como critério impositor de atividades positivas do estado (e não somente de abstenção, como fora consagrado a partir das revoluções liberais ? fato que serviu como supedâneo da consagração das liberdades públicas). Não foi diferente no Brasil. "A Constituição de 1988 é, basicamente, em muitas de suas dimensões essenciais, uma Constituição do Estado social" (BONAVIDES, 2002, p. 336).
Ocorre que "Os direitos de liberdade não custam, em geral, muito dinheiro, podendo ser garantidos a todos os cidadãos sem se sobrecarregarem os cofres públicos. Os direitos sociais, pelo contrário, pressupõe grandes disponibilidades financeiras por parte do Estado. Por isso, rapidamente se aderiu à construção dogmática da reserva do possível (Vrbehalt des Möglichen) para traduzir a ideia de que os direitos sociais só existem quando e enquanto existir dinheiro nos cofres públicos" (CANOTILHO, 2002).

2. INTERVENÇÃO DO PODER JUDICIÁRIO NA EFETIVAÇÃO DOS DIREITOS SOCIAIS


As prestações positivas do Estado, no sentido de se consagrar os direitos sociais (como o direito à educação, o direito à saúde, o direito a um salário mínimo que resguarde condições de vida digna etc.) demandam, como se denota, grande quantidade de recursos, os quais o Estado por vezes admite não possuir. Instaura-se, portanto, uma crise de efetividade dos direitos sociais.
Há que se destacar, contudo, que a própria Constituição Federal estabelece como fundamento da República Federativa do Brasil a dignidade da pessoa humana (art. 1º, III). Nesse sentido, torna-se extreme de dúvida a implementação de políticas públicas positivas (consagração de direitos sociais), justamente para que se mantenha sólido o fundamento delineado . No entanto, não é difícil constatar que os Estados (e inclua-se neste o Brasil) têm encontrado dificuldade da implementação e efetivação destes direitos sociais. Não tanto pela falta de orçamento, mas, sobretudo, pela má gestão.
É a partir deste momento que passa-se a indagar: é possível que o Poder Judiciário seja invocado para fazer valer o mandamento constitucional de efetivação dos direitos sociais? Tal possibilidade não encerraria uma violação da tripartição dos poderes? Possui, o Poder Judiciário, possibilidade de diagnosticar a escorreita aplicação do orçamento público frente às prestações positivas?
Explicita Fernando Borges Mânica, que "no que se refere à jurisprudência, pode-se verificar uma linha de transição. Após longo período de entendimento segundo o qual não cabe ao Judiciário intervir na definição de quaisquer políticas públicas, por óbice decorrente do princípio da separação de poderes e da discricionariedade administrativa, algumas decisões passaram a conceber tal intervenção nos casos em que se discutisse a efetivação de direitos fundamentais. Passou-se a admitir, assim, a prevalência absoluta dos direitos fundamentais" (MÂNICA, 2007, p. 179).
Entretanto, continua Fernando Borges Mânica, aduzindo que "em face da limitação de recursos orçamentários e da consequente impossibilidade de efetivação de todos os direitos fundamentais sociais ao mesmo tempo, passou-se a sustentar, como restrição a tal intervenção do Poder Judiciário em caráter absoluto, a teoria da reserva do possível" (MÂNICA, 2007, p. 180).

3. TEORIA DA RESERVA DO POSSÍVEL E O MÍNIMO EXISTENCIAL


Nas palavras de Cármen Lúcia Antunes Rocha, "a doutrina concebeu o princípio reserva do possível, segundo o qual a prática das políticas públicas somente poderia ser responsabilizada e cobrada dos agentes, órgãos e agentes públicos quando houvesse recursos disponíveis para a operacionalização dos serviços a serem prestados à sociedade conforme a demanda a ser satisfeita. Não é que os direitos sociais somente existiriam se e quando houvesse recursos bastantes para garantir o cumprimento dos serviços públicos, como os quais as providências que os assegurassem estivessem disponíveis, mas que eles não se efetivariam pelo Estado, não podendo dele ser cobrado" (ROCHA, 2005, p. 454).
A reserva do possível tem sido utilizada, portanto, como mecanismo de defesa do Estado sempre que este se vê na possibilidade de sofrer coação, por intermédio do Poder Judiciário, consistente em fazer valer o comando constitucional de implementação dos direitos sociais.
Nesse sentido, como fazer para compatibilizar os direitos sociais e a real situação de dificuldade financeira estatal?
A doutrina tem aduzido a existência de um "mínimo existencial", que seria um padrão básico de dignidade inerente a todas as pessoas. Tal padrão estaria longe da aplicabilidade de todos os direitos sociais previstos constitucionalmente, mas deve servir como critério de aferição da possibilidade de coercibilidade da decisão judicial na discricionariedade administrativa. Cármen Lúcia Antunes Rocha, nesse sentido, estabelece que "não se pode responsabilizar o ente público ou o governante por não despender o dinheiro que não tem. Mas não há de deixar de responsabilizá-lo por traduzir mal as demandas sociais e por aplicar pessimamente os recursos financeiros, arredando-se do constitucionalmente definido como prioritário" (ROCHA, 2005, 456).

3. CONCLUSÕES


Conclui-se, portanto, que os direitos sociais, infelizmente, possuem sua efetividade mitigada por conta da falta de recursos estatais. No entanto, todo desrespeito ao comando do que é tido por essencial na aplicação do orçamento público pode e deve ser corrigido pelo Judiciário. Além disso, o Judiciário pode também ser invocado sempre que uma pessoa se veja abaixo do mínimo para uma existência minimamente digna, o que seria incompatível com os fundamentos do Estado brasileiro e dos direitos humanos já consagrados.


REFERÊNCIAS BIBLIOGRAFICAS


BASTOS, Celso Ribeiro. Curso de direito constitucional. - São Paulo: CRB Editora, 2002, p. 436.

BONAVIDES, Paulo. Curso de direito constitucional. 12. ed., rev. - São Paulo: Malheiros, 2002, p. 336.

CANOTILHO, J. J. Gomes. Direito constitucional e teoria da constituição. 6. ed. - Coimbra: Almedina, 2002.

HORTA, Raul Machado. Direito constitucional. 4. ed., rev. e atual. - Belo Horizonte: Del Rey, 2003.

MÂNICA, Fernando Borges. Teoria da reserva do possível: direitos fundamentais a prestações e a intervenção do poder judiciário. In Revista Brasileira de Direito Público. - Ano 5, nº 18. julho/setembro 2007. - Belo Horizonte: Editora Fórum, 2007, p. 179.

ROCHA, Cármen Lúcia Antunes. O mínimo existencial e o princípio da reserva do possível. In Revista Latino-americana de Estudos Constitucionais. Número 5. Janeiro/junho de 2005 ? São Paulo: Del Rey, 2005.

Autor: Helena Karoline Mendonça


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