Luther King Jr.: um pai primero?



UNIVERSIDADE FEDERAL DO ESPÍRIO SANTO
Núcleo de Educação Aberta e a Distância
Freud como teórico da modernidade bloqueada

Por
Cássia Lourdes Paradella

Luther King Jr. : um pai primevo?

Trabalho apresentado ao professor Vladimir Safatle, como requisito parcial para avaliação da disciplina: Freud como teórico da modernidade bloqueada, do curso de Filosofia e Psicanálise.

Aracruz, 2010
LUTHER KING JR

Em 1929, em janeiro, na cidade de Atlanta, nasceu aquele que se tornaria um dos líderes que lutaram pelos direitos civis dos negros, nos Estados Unidos e no mundo. Martin Mcluther King Jr., tornou-se pastor protestante e ativista político. Ao co-liderar uma campanha de 381 dias em protesto contra a segregação racial no transporte público, foi preso, ameaçado, entre outros. O motivo da campanha foi a recusa de Rosa Parks, negra, em ceder seu lugar em um ônibus a uma mulher branca, tendo sido presa por isso.1
Luther King participou da fundação da Conferência de Liderança Cristã do Sul, que tinha como objetivo organizar o ativismo em relação aos direitos civis. Suas ações estavam embasadas nos ideais de desobediência civil não-violenta de Mohandas Gandhi (Mahatma Gandhi). O tema dos direitos civis, em 1964, tornou-se o assunto político mais importante nos Estados Unidos. As manifestações que organizou tinham como objetivo a conquista do "direito ao voto, o fim da segregação, o fim das discriminações no trabalho e outros direitos básicos". Em 1964, grande parte destas reivindicações foram incorporadas à Lei de Direitos Civis, bem como, no ano seguinte, à Lei de Direitos Eleitorais. Recebeu o prêmio Nobel da Paz em função do fim do preconceito racial nos Estados Unidos e devido à sua articulação de liderança não-violenta. Foi odiado por aqueles que defendiam a segregação no sul, sendo assassinado antes de iniciar uma caminhada em Memphis. Em 1986 foi instituído um feriado nacional em sua homenagem, mas, somente em 1993 o feriado foi cumprido integralmente pelos estados do país.2
Em Washington, king proferiu seu mais importante discurso, intitulado "I have a dream", falando sobre o sonho de liberdade, expressando a situação dos negros do país, sua pobreza, a discriminação racial, o direito ao voto, da violência sofrida pelas autoridades, entre outros, e a necessidade de reivindicar por meio de atitudes pacíficas. Esse discurso foi proferido em Washington, em 1963, quando marchavam pela liberdade e pelo emprego.3
A importância desta incursão para analisar um personagem da história recente, na perspectiva freudiana para a modernidade, pode ser entendida sob vários pontos: o primeiro, diz respeito a luta de um povo em busca de direitos que a Proclamação de Emancipação já descrevia, mas que não eram assegurados (o não cumprimento da regra/da norma), em função da cor; o segundo, pela forma pacífica de se organizar manifestações, apesar das agressões sofridas. A resistência pacifica diante do desespero, aplacado pelo comando de um líder, não somente político, mas também religioso. E por fim, entre outros argumentos, a possibilidade de provocar reflexões acerca da herança primitiva de agressividade humana e a conquista de ideais de justiça e fraternidade por meio de atitudes não-violentas.
Os estudos de Freud, oferecem diversas possibilidades para reflexão acerca das mais variadas situações que envolvem o homem e os grupos sociais, muito embora não encerre outras possibilidades de aprofundamentos. Dessa forma, ainda que superficialmente, o caso apresentado pode encontrar algumas indicações à luz da teoria freudiana.
A partir da teoria do progresso pode-se observar ou ousar traçar algumas analogias relacionando-as ao caso proposto, na medida em que, para Freud, a sociedade impõe seus ideais culturais, levando os sujeitos a assumir aquilo que é socialmente permitido em detrimento de suas necessidades individuais de satisfação. Nesse ponto, pode-se fazer referência à realidade dos grupos negros americanos, quando, apesar de extinta a escravidão, estarem sujeitos a segregação e discriminação racial, como se pode observar na fala de James Eastland, em 1954, citada por João Luis de Almeida Machado:
A separação promove harmonia racial. Permite que cada raça siga seu destino, desenvolva sua própria cultura, suas próprias instituições, e sua própria civilização. Segregação não é discriminação. Segregação não é um símbolo de inferioridade racial. A segregação é desejada e apoiada pela vasta maioria dos membros das duas raças no Sul, que vivem lado a lado em condições harmoniosas. É a lei da natureza, é a lei de Deus, que cada raça tem tanto o direito quanto o dever de se perpetuar. Homens livres têm o direito de mandar seus filhos para escolas de sua preferência, livres da interferência do governo. (James Eastland, representante do estado do Mississipi, em discurso no Senado americano em 27 de maio de 1954)4.
Essa fala aconteceu quando a Suprema Corte determinou que os negros teriam direito de freqüentar escolas de brancos, o que levou os brancos a fazerem barricadas e manifestações contra essa determinação. A separação referia-se a escolas, transportes, banheiros e bebedouros públicos, instituições municipais e estaduais. As condições harmoniosas citadas por Eastland, não correspondiam à realidade, pois os recursos destinados a escolas e outros para os negros eram escassos e de baixa qualidade.
Nesse sentido, vale pensar no desenvolvimento da vida social e a forma como os sujeitos mobilizam os sistemas de crenças. A sociedade branca prevalecia em número, em qualidade de vida, oportunidades de emprego, em recursos, colocando-se superior em relação à comunidade negra, que era entendida como sub-raça, sub-povo. Acreditando nesse superioridade, remete a visão de mundo animista descrita por Freud, como aquela em que se projeta os interesses e desejos e os sistemas de crenças.5
Vale lembrar que historicamente, no mundo, os brancos subjugaram os negros, que foram retirados de sua terra natal a força, separados de suas famílias e escravizados, servindo aos interesses econômicos dos brancos, sendo comercializados como peças em mercados. Vistos assim, as gerações brancas seguintes não admitiam qualquer privilégios ou direitos de igualdade para com os negros. Acreditando serem aqueles uma raça distinta e inferior.
Argumenta-se nesse aspecto, hipoteticamente, se não seria tal ódio, tal repulsa, um mecanismo de ocultação do medo. Medo da culpa, de contaminação, medo de perder espaço, medo de reconhecer o outro ser como humano e igual, como tal, digno de usufruir dos mesmos direitos e obrigações legais. Medo da masculinidade negra, já que alguns deles eram reconhecidos, durante a escravidão, como reprodutores e ainda, as mulheres eram conhecidas pela sua capacidade de aleitamento. Talvez essa ameaça poderia estar ligada ao desejo "impuro", pois muitos "senhores de escravo" tomavam as escravas para satisfação puramente sexual. Ou ainda, a indignação, a incapacidade de aceitação da mudança da norma.
Reporta nesse ponto, a frustração de não continuar tendo o negro como serviçal, como força de trabalho não remunerada, e, não suportando, manifesta o ódio, a violência, a indignação, a repulsa. Sobre a culpa, Freud diz que "... deve necessariamente se edificar sobre a repressão e a renúncia pulsional"6. A renúncia pulsional está diretamente ligada ao conceito de pulsão, ou seja, "o ponto de articulação entre o psíquico e o somático"7, muito embora no sentido inverso. Pois é no inconsciente que se ligam o sentido e as forças psíquicas, equivalendo dizer, que na renúncia pulsional seria o desencontro ou o deixar de acontecer a pulsão.
Ao pensar na repulsa entre brancos e negros americanos, vale referir ao texto de Hobbes, em Leviathan, ao dizer, segundo Francisco Verardi, que o movimento animal é:
[...] um movimento no campo da imaginação que precede e que é apresentado como a fonte e origem interna dos movimentos externos, trata-se do que chamou de contatus ou esforço, identificado como o cerne da faculdade motriz, um tipo de motor primário de todo jogo passional, um movimento que se exerce em direção a um objeto externo que o sujeito passa a ansiar, almejar, apetecer, desejar.8
Entretanto, quando esse movimento opera em sentido contrário, ocasiona a aversão, o repúdio e ódio, que pode assim, explicar, em parte, o comportamento do grupo hostil aos negros. Em relação à suposição de os negros representarem ameaça, pode-se referenciar o princípio da realidade, de Freud, como "uma perspectiva de auto-conservação", que seria, entre outras, "uma das funções do eu no interior do aparelho psíquico"9.
Estando os negros, alvos da segregação, lembra também o sentimento do desamparo, na visão religiosa, descrita por Freud, que seria o desencantamento do mundo, de acordo com o professor Vladimir , ao explanar sobre a teoria freudiana do progresso:
Quando o homem já não se vê como participando diretamente da natureza [visão animista], aparece o sentimento de desamparo sentido ao se defrontar com a irredutibilidade da contingência de sua posição existencial, posição que em Freud está sempre ligada a uma certa antropologia da finitude através das figuras da assunção da morte, da diferença sexual ou da contingência absoluta do objeto de desejo. 10
A preocupação de Freud estava em compreender o impacto do desencantamento na vida psíquica dos sujeitos modernos. Nesse ponto, pode-se abordar o comportamento social das massas, uma vez que o desamparo também poderia significar a necessidade de buscar proteção, uma voz de defesa pela identificação de um "pai" que os pudesse então proteger, defender e representar. Freud diz que "Há nas massas humanas uma forte necessidade de uma autoridade que se possa admirar [...] trata-se da nostalgia do pai" 11.
Essa necessidade, aparentemente, pode ter sido projetada quando Luther King assumiu a defesa de ideais de conquista de direito a participação na vida política do país, por meio do voto, a luta pelo fim da segregação, entre outros. Surgiu então a figura do líder (religioso e político), que não apenas era negro, mas que se identificava pela dor, pela opressão sofrida por longo tempo, mas também pelo sonho de encontrar um sentido existencial. O modo de ser, de lutar, imposto por King a seus seguidores era a luta pacífica, não-violenta, fazendo caminhadas e discursos, em busca de diálogo com as autoridades, apoio da mídia e o reconhecimento de que os negros eram sujeitos de direitos tanto quanto os brancos.
King, nesse ponto, pode ter assumido a projeção do pai, aquele que ama e dirige seu povo, lembrando aquele que luta pela satisfação das necessidades do grupo, e sai da massa, ascende com a admiração e o respeito de seus iguais. Se propõe a ser o pai primevo, em analogia ao texto freudiano do Totem e Tabu12, que oferece liderança e união para um ideal, uma realidade sonhada (que seria então o paraíso).
Explora, possivelmente, ainda hipoteticamente, a libido individual dos negros que são ali representados por ele. Quando o ídolo morre, de forma violenta, é transformado em totem e quando suas idéias repercutem e viram leis, é criado o tabu, reverenciado depois, com um feriado nacional. Vale dizer ainda, que de acordo com o professor Vladimir13, sobre política freudiana:
Como tais instituições e figuras não são vistas simplesmente como repressivas, mas também como constitutivas [...], então minhas exigências de redistribuição são [...], demanda de reconhecimento que perpetua tais instituições e figuras enquanto acolhedoras de minhas demandas e exigências. [...] preciso acreditar que ele teria a força de me excluir de uma posição de contingência existencial, de me dizer o que, enfim, pode satisfazer meu desejo. O que nos explica porque, no mito freudiano, a morte do pai é seguida da conservação de seu lugar de representações sociais sublimadas.

REFERÊNCIAS
Freud, Sigmund. Totem e Tabu. Vol. XIII, 1950.
Gigante dos Direitos Civis .... Disponível em http://virtual.embaixada-americana.org.br/salvador/?pg=1164 Acesso em: 20-10-2010.
King Jr, Martin Luther. I have a dream. Disponível em http://dhnet..org..br/desejos/sonhos/dream.htm Acesso em: 20-10-2010.
Machado, João L de A. A luta pelos direitos civis. Disponível em http://www.planetaeducacao.com.br/portal/artigo.asp?artigo=251 Acesso em 19-10-2010.
Monzani, Roberto Luiz. Farol nas trevas. Rev. Ciência e Vida. Ano I, N. 6, São Paulo: Escala, 2010.
Safatle, Vladimir. Freud como teórico da modernidade bloqueada. Vitória: Universidade Federal do Espírito Santo, Núcleo de Educação Aberta e a Distancia, 2010.
Verardi, Francisco. A ascensão do prazer. Rev. Ciência e Vida. Ano I, N. 6, São Paulo: Escala, 2010.

Autor: Cássia Lourdes Paradella


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