Corpo Fechado



Sidney abriu os olhos, estava atrasado. Vestiu-se às pressas, Maria, a esposa, o aguardava com café passado e broa de milho. Engoliu a refeição. A roupa, a mesma do dia anterior, engomada de suor e agonia.

? Não pega bem tu ir fedendo pro serviço ? alentou a mulher. Mas, aquela altura, não pegava bem era perder o ponto e, além do mais, Sidney pagava caro por ele.
? Dá nada, Maria ? retrucou e, antes de fazer o motor do táxi roncar, lembrou-se ? me vê uma caneta, anda! Enfiou-a no bolso da camisa, a esposa sorriu. Sidney deixou com ela um até breve e perdeu-se na manhã urbana.

No trajeto Sidney ia pensando no quão engraçada foi a expressão no rosto da Maria. Ele que, por costume enfiava lápis e caneta atrás da orelha, naquele dia rendeu-se, inconscientemente, às súplicas dela:

? "Amor, desse jeito tu parece atendente de botequim" ? Sidney achava graça, mas não dava o braço a torcer e, como sempre, defendia-se:

? Dá nada, Maria, atrás da orelha é garantido!

Garantido era o aperto todo mês. Roupas, o colégio das crianças a hipoteca e mais o dentista da Maria. Ah, como negar aquele pedido, ela com os dentinhos podres, mas tão jeitosa! Único luxo que se permitiu pedir, isso quando completaram dez anos de casados. As coisas iam mudar para eles, disso Sidney tinha certeza, a Maria se virando com assados e encomendas, coisa que ainda não dava lucro, mas era esse o dinheiro do lanche dos meninos e, também da mesada. E ela ainda achava tempo de encrencar com uma caneta? Por favor! A preocupação eram as dívidas e o saldo positivo, para que pudesse concluir a laje e a pintura do casebre. Também, vacilava quando o assunto pendia para a blindagem do táxi. Os amigos comentando:

? Faz cara, tu não vai te arrepender ? Realmente não iria, se tivesse grana para fazer.
? Quando der Ramires, quando der ? desconversava.
? O Barbosinha se safou de uma boa ? o amigo falava de peito aberto ? levou balaço e nem sentiu cócegas ? rindo. Sidney também riu, ele ria à toa.

Chegando ao aeroporto repensou os planos e concluiu:

? Blindagem é coisa de fresco ? disse de si para si. Muito embora, tenha dito da boca para fora. Nisso estacionou, precisava aguardar a vez, mais que a neblina sobre a cidade atrasara os vôos, ia ser um dia daqueles ? desanimou.

Araceli e o par de coxas que flertou com ele ano passado. Ela chorosa, precisando de ombro amigo, descornada até a alma porque o infeliz do marido andava dormindo com a secretária. Mediu a mulata de cima a baixo, tão linda e cheirosa, não pensou duas vezes, em se tratando de amor, de carência afetiva, era craque. Dizia aos amigos:

? Não sou de ferro, Ramires. Depois, homê que é homê não desperdiça mulher-boa!
? Se a Maria te pega ? gracejava o colega.
? Se pegar, pegou ? dizia num desdém fingido.

Via Araceli uma vez por semana. Acertava com os colegas a troca de horário, no celular trazia a mentira na ponta da língua:

? Maria, vou ter que levar um passageiro até Tramandaí ? ou então: ? Vou dar uma força pro Aderbal, pra ele não ficar sozinho...é, ta perigoso hoje!

Aderbal era o amigo imaginário, cúmplice das desculpas esfarrapadas, em casa doía o coração ao escutar, da boca flácida e negra da esposa:

? O Aderbal vai bem?
? Vai, tirando as dores na coluna ? engasgava.
? É a saúde em primeiro lugar e tu melhorou, amor?
? Ah?
? Ontem te achei tão abatido, quando chegou. Sidney como sempre, riu. E Maria, sem dente, riu também.

Teve medo, quando ficou sabendo:

? Meu cunhado morreu de tiro, sabe como é metido com mulher de amigo!

Sidney engoliu-se. Não, não sabia coisa nenhuma. À noite, em casa, rolou na cama. A Maria quis saber o que ele tinha. Sidney desconversou, mas não pegou no sono. No fundo tinha receio, a Araceli assegurava que tudo ia bem, embora, vez outra deixasse escapar:

? Se o Zé nos pega...vai ser feia a coisa.
? Mas tu me garantiu que é caso de separação ? ele esbravejava.

A mulata, conhecedora de sua situação, adiantava que estavam na mesma e, acrescentava que o marido, dia-a-dia estava reaproximando-se dela e ela, cedendo. Sidney arrepiou, insistiu na situação deles dois, Araceli pediu para deixar como estava, precisava a medir a febre.

? Também não é pra tanto, Sidi!

Ficou com pulga atrás da orelha. Melhor evita-la. Mas não pôde. Ela veio atrás dele, viram-se duas vezes naquela semana, a Maria estranhou:

? Duas corridas a Tramandaí?
? Pois é ? remoeu ele junto com o arroz-e-feijão.

A Araceli confirmou que estavam, agora, de bem. Sidney, então, decidiu que seria o fim, a situação fugia do controle, depois, não costumava ficar muito tempo amarrado numa amante só. Ela riu, mas, naquele riso ele viu o pânico e, riu também. Ela:

? Eu falei pra ele que estava tendo um caso.
? Tu é louca? ? sem reação.
? Na boa, ele disse que agora estamos quites, mas me fez jurar que essa seria a primeira e última vez.
? Tu disse que era eu?
? Não assim...Cara, ele me forçou!
? Ta, mas agora ele vem atrás de mim.
? Não vem não! O Zé vai ficar fora da cidade o dia todo.

O coração de Sidney estava a mil. Deixou a amante no aeroporto e com ela um beijo de adeus. À frente um passageiro acenava, em seu pensamento a pele morena e macia da Araceli.Parou, meteu a cabeça para fora, quem chamava ele? Naquele instante de devaneio e, ainda sentindo a lassidão de ter estado em companhia dela, deixou-se envolver pela incerteza, por isso não percebeu que, há alguns metros o homem traído o espreitava e, na sua distração foi mais uma vítima da fúria de um marido que vinha lavar sua honra.

Desacordado, Sidney não provou do cuspe que o homem lançou a sua boca e, muito menos pôde ouvir os desaforos que o infeliz disse, tomado por um demônio senil. As gentes vieram todas em sua direção, o autor do disparo tentou correr, mas, foi envolvido por uma multidão de curiosos e, em seguida, capturado pela polícia. Sidney recebeu os primeiros socorros. Uma velha gorducha, provavelmente a mais saliente do bando indagou a um dos para médicos:

? Ele vai ficar bem?

O homem voltou-se, sem muito interesse, a ela e respondeu:

? É cedo pra saber!

Depois fechou a porta da ambulância. Acomodou-se:

? Detesto gente intrometida ? comentou.
? Culpa do ócio coletivo ? disse o outro.
? Eu posso ligar pra Maria? ? resfolegou o terceiro.

Autor: Claudia Curcio


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